O Estado e a Revolução

Vladimir Ilitch Lénine


IV. Continuação. Explicações Complementares de Engels


Marx disse o fundamental sobre a questão da importância da experiência da Comuna. Engels voltou muitas vezes a este mesmo tema, explicando a análise e as conclusões de Marx e esclarecendo por vezes outros aspectos da questão com tal força e relevo que é necessário determo-nos especialmente nestas explicações.

1. O «Problema da Habitação»

Na sua obra sobre o problema da habitação (1872), Engels tem já em conta a experiência da Comuna, detendo-se várias vezes nas tarefas da revolução em relação ao Estado. É interessante que, acerca deste tema concreto, se verificam claramente, por um lado, traços de coincidência do Estado proletário com o Estado actual — traços que dão uma base para falar em ambos os casos de Estado —, e, por outro lado, traços de distinção, ou a passagem para a supressão do Estado.

«Ora como se há-de resolver a questão da habitação? Na sociedade dos nossos dias precisamente como todas as outras questões sociais são resolvidas: por meio do gradual equilíbrio económico de procura e oferta, uma solução que gera sempre de novo a própria questão, e portanto não é solução. Como uma revolução social resolveria esta questão, isso não depende só das circunstâncias em que se realizasse, mas relaciona-se também com questões muito mais amplas, entre as quais é uma das mais essenciais a superação da oposição cidade-campo.

Como não temos de criar sistemas utópicos para a instituição da sociedade futura, seria mais do que ocioso entrar aqui no assunto. Mas uma coisa é certa, já hoje existem nas grandes cidades habitações suficientes para, com um aproveitamento racional das mesmas, se remediar de imediato todas as “carências de habitação” reais. Isto só pode acontecer, naturalmente, por meio da expropriação dos proprietários actuais, ou seja, por meio do alojamento nas suas casas de operários sem habitação, ou de operários até aqui excessivamente apinhados nas suas habitações, e logo que o proletariado tenha conquistado o poder político uma tal medida imposta pelo bem público será tão facilmente executável como o são outras expropriações e ocupações de habitações pelo Estado actual» (p. 22 da ed. alemã de 1887)(1).

Não se encara aqui uma mudança de forma do poder de Estado, mas toma-se apenas o conteúdo da sua actividade. O Estado actual ordena também expropriações e ocupações de habitações. O Estado proletário, do ponto de vista formal, também «ordenará» a ocupação de habitações e a expropriação de casas. Mas é evidente que o antigo aparelho executivo, o funcionalismo ligado à burguesia, seria simplesmente inapto para realizar na prática as disposições do Estado proletário.

«... De resto, há que constatar que a “efectiva conquista da posse” de todos os instrumentos de trabalho, a tomada de posse de toda a indústria por parte do povo trabalhador, é precisamente o contrário do “resgate” proudhonista(2). Nesta última, o operário individual torna-se proprietário da habitação, da quinta, do instrumento de trabalho; na primeira, é o “povo trabalhador” que fica proprietário colectivo das casas, fábricas e instrumentos de trabalho, e o seu usufruto é cedido, pelo menos durante um período de transição, e dificilmente sem indemnização dos custos, a indivíduos ou sociedades. Precisamente como a abolição da propriedade fundiária não é a abolição da renda, mas a sua transferência, se bem que com modificações, para a sociedade. A efectiva tomada de posse de todos os instrumentos de trabalho pelo povo trabalhador não exclui, portanto, de modo algum, a conservação da relação de arrendamento» (p. 68).

Examinaremos no capítulo seguinte a questão abordada neste raciocínio, a saber: a das bases económicas da extinção do Estado. Engels exprime-se com extremo cuidado dizendo que «dificilmente» o Estado proletário distribuirá habitações sem pagamento, «pelo menos durante um período de transição». O aluguer das habitações, propriedade de todo o povo, a diferentes famílias em troca de uma renda, pressupõe também a cobrança dessa renda e um certo controlo e estabelecimento de certas normas de repartição das habitações. Tudo isto exige uma certa forma de Estado, mas não requer de modo nenhum um aparelho militar e burocrático especial, com funcionários beneficiando de uma situação especialmente privilegiada. E a passagem para um estado de coisas em que poderão ser distribuídas habitações gratuitamente está ligada à «extinção» total do Estado.

Falando da passagem dos blanquistas, depois da Comuna e sob a influência da sua experiência, para a posição de princípio do marxismo, Engels de passagem formula esta posição da seguinte maneira:

«... Necessidade de acção política do proletariado e da sua ditadura como transição para a abolição das classes e, com elas, do Estado ...» (p. 55).

Certos amadores da crítica literal ou os burgueses «eliminadores do marxismo» verão talvez uma contradição entre este reconhecimento da «abolição do Estado» e a negação desta fórmula como anarquista na passagem atrás citada do Anti-Dühring. Não seria de estranhar se os oportunistas classificassem também Engels entre os «anarquistas»: agora está cada vez mais divulgada entre os sociais-chauvinistas a acusação de anarquismo aos internacionalistas.

Que com a abolição das classes terá lugar também a abolição do Estado, o marxismo sempre o ensinou. A passagem de todos conhecida do Anti-Dühring acerca da «extinção do Estado» acusa os anarquistas não simplesmente de serem pela abolição do Estado, mas de pregarem a possibilidade de abolir o Estado «de hoje para amanhã».

Dada a completa deturpação pela doutrina «social-democrata» hoje dominante da atitude do marxismo relativamente ao anarquismo na questão da supressão do Estado, é especialmente útil recordar uma certa polémica de Marx e Engels com os anarquistas.

2. A Polémica com os Anarquistas

Esta polémica data de 1873. Marx e Engels escreveram artigos contra os proudhonistas, «autonomistas» ou «antiautoritários» para uma colectânea socialista italiana, e foi apenas em 1913 que estes artigos apareceram em tradução alemã na Neue Zeit(3).

«... Quando a luta política da classe operária — escrevia Marx, troçando dos anarquistas e da sua rejeição da política — assume forma revolucionária, quando os operários substituem a ditadura da burguesia pela sua ditadura revolucionária, cometem o crime horrível de lesar os princípios, pois, para satisfazerem as suas tristes necessidades profanas do dia-a-dia, para quebrarem a resistência da burguesia, dão ao Estado uma forma revolucionária e transitória em vez de deporem as armas e abolirem o Estado ...» (Neue Zeit, 1913-1914, ano 32, t. l, p. 40).

Foi exclusivamente contra esta «abolição» do Estado que Marx se insurgiu ao refutar os anarquistas! Não foi de modo nenhum contra que o Estado desaparece com o desaparecimento das classes, ou será abolido com a sua abolição, mas contra que os operários recusem o emprego das armas, a violência organizada, isto é, o Estado, que deve servir o objectivo de: «quebrar a resistência da burguesia.»

Marx sublinha intencionalmente — para que não se deturpe o verdadeiro sentido da sua luta contra o anarquismo — a «forma revolucionária e transitória» do Estado necessário ao proletariado. O proletariado só necessita do Estado durante algum tempo. Não divergimos de modo nenhum dos anarquistas na questão da abolição do Estado como objectivo). Afirmamos que, para atingir este objectivo, é necessário utilizar temporariamente os instrumentos, os meios e os métodos do poder de Estado contra os exploradores, como, para suprimir as classes, é necessária a ditadura temporária da classe oprimida. Marx escolheu a maneira mais incisiva e mais clara de colocar a questão contra os anarquistas: devem os operários, ao derrubar o jugo dos capitalistas, «depôr as armas» ou utilizá-las contra os capitalistas, a fim de quebrar a sua resistência? E o uso sistemático das armas de uma classe contra a outra classe, que é isto senão uma «forma transitória» de Estado?

Que cada social-democrata pergunte a si mesmo: é assim que ele colocou a questão do Estado na polémica com os anarquistas? é assim que colocou esta questão a imensa maioria dos partidos socialistas oficiais da II Internacional?

Engels expõe as mesmas ideias de uma maneira ainda mais pormenorizada e ainda mais popular. Em primeiro lugar, ridiculariza a confusão de ideias dos proudhonistas, que se chamavam «antiautoritários», isto é, negavam qualquer autoridade, qualquer subordinação, qualquer poder. Tomai uma fábrica, um caminho-de-ferro, um navio no alto mar — diz Engels —, não é claro que, sem uma certa subordinação, portanto sem uma certa autoridade ou poder, é impossível o funcionamento de qualquer destas empresas técnicas complicadas, baseadas no emprego de máquinas e na colaboração planificada de muitas pessoas?

«... Se eu contrapuser estes argumentos — escreve Engels — aos anti-autoritários mais furiosos, eles só me podem dar a seguinte resposta: Ah, isso é verdade, mas aqui não se trata de autoridade por nós conferida aos delegados, mas sim de um encargo. Esta gente julga que pode mudar uma coisa se lhe mudar o nome...»

Depois de ter assim mostrado que autoridade e autonomia são noções relativas, que o domínio da sua aplicação varia com as diferentes fases do desenvolvimento social, que é absurdo tomá-las como absolutas, depois de ter acrescentado que o domínio do emprego das máquinas e da grande indústria se alarga cada vez mais, Engels passa dos raciocínios gerais sobre a autoridade à questão do Estado.

«... Se os autonomistas — escreve ele — se tivessem contentado com a afirmação de que a organização social do futuro consentirá a autoridade apenas nos limites que são inevitavelmente traçados pelas relações de produção, poderíamos ter-nos entendido com eles; mas eles são cegos para todos os factos que tornam a autoridade necessária, e lutam apaixonadamente contra a palavra.

Porque não se limitam os antiautoritários a gritar contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas estão de acordo em que o Estado e, com ele, a autoridade política desaparecerão em consequência da futura revolução social; ou seja, em que as funções públicas perderão o seu carácter político e se transformarão em simples funções administrativas que velam pelos interesses sociais. Mas os antiautoritários exigem que o Estado político seja abolido de um golpe ainda antes de estarem abolidas as relações sociais que o produziram. Exigem que o primeiro acto da revolução social seja a abolição da autoridade. Estes senhores alguma vez viram uma revolução? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que existe, um acto pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra parte por meio de espingardas, baionetas e canhões — meios todos eles muito autoritários; e o partido que triunfou tem de afirmar o seu domínio por meio do medo que as suas armas inspiram aos reaccionários. E, se a Comuna de Paris não se tivesse servido da autoridade de um povo armado contra a burguesia, acaso se teria mantido mais do que um dia? Não podemos, inversamente, censurar-lhe o ter-se servido excessivamente pouco desta autoridade?

Portanto: ou uma coisa ou outra: ou os próprios antiautoritários não sabem o que dizem, e neste caso apenas criam confusão, ou sabem, e neste caso atraiçoam a causa do proletariado. Em ambos os casos servem apenas a reacção» (p. 39).

Neste raciocínio são abordadas questões que convém examinar em ligação com o tema da correlação entre a política e a economia quando da extinção do Estado (a este tema será dedicado o capítulo seguinte). São as questões da transformação das funções públicas de funções políticas em simplesmente administrativas e do «Estado político». Esta última expressão, particularmente susceptível de causar mal-entendidos, aponta para o processo de extinção do Estado: o Estado em extinção, num certo grau da sua extinção, pode chamar-se Estado não político.

O que há de mais notável neste raciocínio de Engels é mais uma vez a maneira como põe a questão contra os anarquistas. Os sociais-democratas, que pretendem ser discípulos de Engels, discutiram milhões de vezes com os anarquistas desde 1873, mas não discutiram precisamente como podem e devem discutir os marxistas. A ideia anarquista sobre a abolição do Estado é confusa e não revolucionária — eis como Engels punha a questão. É precisamente a revolução, na sua origem e desenvolvimento, nas suas tarefas específicas em relação à violência, à autoridade, ao poder, ao Estado, que os anarquistas não querem ver.

A crítica habitual do anarquismo reduziu-se nos sociais-democratas actuais à mais pura vulgaridade filistina: «nós reconhecemos o Estado, e os anarquistas não!». Compreende-se que uma tal vulgaridade não pode deixar de repugnar aos operários minimamente pensantes e revolucionários. Engels diz outra coisa: sublinha que todos os socialistas reconhecem o desaparecimento do Estado como uma consequência da revolução socialista. Põe em seguida a questão concreta da revolução, precisamente a questão a que os sociais-democratas habitualmente se esquivam por oportunismo, deixando-a, por assim dizer, aos anarquistas para «estudo» exclusivo. E, ao pôr esta questão, Engels agarra o touro pelos cornos: não deveria a Comuna ter-se servido mais do poder revolucionário do Estado, isto é, do proletariado armado, organizado como classe dominante?

A social-democracia oficial dominante eludia geralmente a questão das tarefas concretas do proletariado na revolução, quer com uma simples troca de filisteu quer, no melhor dos casos, com este sofisma evasivo: «mais tarde veremos.» E os anarquistas tinham o direito de dizer contra tal social-democracia que ela faltava à sua tarefa da educação revolucionária dos operários. Engels aproveita a experiência da última revolução proletária precisamente para estudar, da maneira mais concreta, o quê e como o proletariado deve fazer tanto em relação aos bancos como em relação ao Estado.

3. Carta a Bebel

Um dos raciocínios mais notáveis, se não o mais notável, nas obras de Marx e Engels sobre a questão do Estado é a seguinte passagem na carta de Engels a Bebel de 18-28 de Marco de 1875. Esta carta, notemo-lo entre parêntesis, foi impressa, tanto quanto sabemos, pela primeira vez por Bebel no tomo segundo das suas memórias (Da Minha Vida), publicado em 1911, isto é, passados trinta e seis anos depois da sua redacção e do seu envio.

Engels escrevia o seguinte a Bebel, criticando o mesmo projecto de programa de Gotha que também Marx criticava na célebre carta a Bracke, e falando especialmente da questão do Estado:

«... O Estado popular livre está transformado no Estado livre. Do ponto de vista gramatical, um Estado livre é aquele em que o Estado é livre face aos seus cidadãos, ou seja, um Estado com um governo despótico. Deveria abandonar-se todo este palavreado acerca do Estado, especialmente depois da Comuna, a qual já não era um Estado no sentido próprio. O “Estado popular” tem-nos sido atirado a cara pelos anarquistas vezes sem conta, embora já o escrito de Marx contra Proudhon(4) e depois o Manifesto Comunista digam expressamente que com a introdução da ordem social socialista o Estado por si mesmo se dissolve (sich auflost) e desaparece. Ora, como o Estado é, de facto, apenas uma instituição transitória, da qual a gente se serve na luta, na revolução, para reprimir pela força os adversários, é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda usa o Estado, usa-o não no interesse da liberdade mas da repressão dos seus adversários, e logo que se pode falar de liberdade o Estado deixa de existir como tal. Nós proporíamos, por isso, a substituição em todos os passos de Estado por “comunidade” (Gemeinwesen), uma boa e velha palavra alemã que pode representar muito bem a “Comuna” francesa» (pp. 321-322 do original alemão)(5).

É preciso ter em vista que esta carta se refere ao programa do partido que Marx criticava numa carta datada de apenas algumas semanas depois desta carta (a carta de Marx é de 5 de Maio de 1875), e que Engels vivia então em Londres juntamente com Marx. Por isso, ao dizer «nós» na última frase, é sem duvida nenhuma em seu próprio nome e no de Marx que Engels propõe ao chefe do partido operário alemão a exclusão do programa da palavra «Estado» e a sua substituição pela palavra «comunidade».

Como lançariam gritos sobre o «anarquismo» os chefes do «marxismo» de hoje, falsificado segundo a conveniência dos oportunistas, se lhes fosse proposta tal emenda do programa!

Que gritem. A burguesia louvá-los-á por isso.

Mas nós faremos a nossa obra. Ao rever o programa do nosso partido, deveremos absolutamente ter em conta o conselho de Engels e de Marx, para estarmos mais perto da verdade, para restabelecermos o marxismo depurando-o das deturpações, para melhor orientar a luta da classe operária pela sua emancipação. Entre os bolcheviques é certo que não há adversários do conselho de Engels e de Marx. A dificuldade estará, talvez, apenas no termo. Em alemão existem duas palavras «comunidade», das quais Engels escolheu aquela que designa não uma comunidade separada, mas um conjunto delas, um sistema de comunidades. Tal palavra não existe em russo, e será preciso talvez escolher a palavra francesa «commune», se bem que isto apresente também os seus inconvenientes.

«A Comuna já não era um Estado no sentido próprio» — eis a afirmação mais importante de Engels do ponto de vista teórico. Depois do exposto atrás esta afirmação é perfeitamente compreensível. A Comuna deixava de ser um Estado na medida em que lhe cabia reprimir não a maioria da população mas a minoria (os exploradores); tinha quebrado a máquina de Estado burguesa; em vez de uma força especial para a repressão, entrou em cena a própria população. Tudo isso é um afastamento do Estado no sentido próprio. E se a Comuna se tivesse consolidado, «extinguir-se-iam» nela por si próprios os vestígios do Estado, não teria tido necessidade de «abolir» as suas instituições: elas teriam deixado de funcionar à medida que não tivessem mais nada que fazer.

«Os anarquistas atiram-nos à cara o “Estado popular”»; ao dizer isto, Engels tem em vista em primeiro lugar Bakúnine e os seus ataques contra os sociais-democratas alemães. Engels reconhece que estes ataques são justos na medida em que o «Estado popular» é tanto um absurdo e tanto um afastamento do socialismo como o «Estado popular livre». Engels esforça-se por corrigir a luta dos sociais-democratas alemães contra os anarquistas, por fazer desta luta uma luta justa nos seus princípios, por a depurar dos preconceitos oportunistas acerca do «Estado». A carta de Engels, infelizmente!, esteve metida numa gaveta durante trinta e seis anos. Veremos mais adiante que, mesmo depois da publicação desta carta, Kautsky repete obstinadamente, em essência, os mesmos erros contra os quais Engels prevenira.

Bebel respondeu a Engels pela carta de 21 de Setembro de 1875, na qual escrevia, entre outras coisas, que «concordava completamente» com o seu juízo sobre o projecto de programa e que censurava Liebknecht pela sua transigência (p. 334 da ed. alemã das memórias de Bebel, t. II). Mas se tomarmos a brochura de Bebel “Os Nossos Fins”, encontraremos nela raciocínios absolutamente falsos acerca do Estado:

«O Estado deve, portanto, ser transformado, de um Estado assente no domínio de classe, num Estado popular» (ed. alemã de Unsere Ziele, 1886, p. 14).

Eis o que está impresso na 9ª (nona!) edição da brochura de Bebel! Não é de admirar que uma repetição tão obstinada dos raciocínios oportunistas sobre o Estado tenha impregnado a social-democracia alemã, especialmente quando as explicações revolucionárias de Engels estavam metidas numa gaveta e que todas as circunstâncias da vida «desabituaram» da revolução para muito tempo.

4. A Crítica do Projecto de Programa de Erfurt

A crítica do projecto de programa de Erfurt enviada por Engels a Kautsky em 29 de Junho de 1891 e publicada apenas dez anos mais tarde na Neue Zeit não pode ser ignorada ao analisar a doutrina do marxismo sobre o Estado, porque é principalmente consagrada precisamente à crítica das concepções oportunistas da social-democracia nas questões da organização do Estado.

Notemos de passagem que, acerca das questões económicas, Engels fornece igualmente uma indicação das mais preciosas, que mostra quão atenta e reflectidamente seguiu as transformações do capitalismo moderno, e como soube prever, numa certa medida, as tarefas da nossa época, a imperialista. Eis essa indicação: a propósito das palavras «ausência de planificação» (Planlosigkeit) empregues no projecto de programa para caracterizar o capitalismo, Engels escreve:

«... Quando passamos das sociedades por acções para os trusts, os quais dominam e monopolizam ramos inteiros da indústria, nesta transição não acaba apenas a produção privada, mas também a ausência de planificação» (Neue Zeit, ano 20, t. 1, 1901-1902, p. 8)(6).

Temos aqui o que há de mais fundamental na apreciação teórica do capitalismo moderno, isto é, do imperialismo, a saber, que o capitalismo se transforma em capitalismo monopolista. Isto deve ser sublinhado, porque o erro mais difundido e a afirmação reformista burguesa de que o capitalismo monopolista ou monopolista de Estado já não é capitalismo, já pode ser chamado «socialismo de Estado», e assim por diante. Naturalmente, os trusts nunca fizeram, não fazem ainda nem podem fazer uma planificação completa. Mas visto que são eles que fazem a planificação, visto que são os magnates do capital que calculam antecipadamente o volume da produção à escala nacional ou mesmo internacional, visto que são eles que a regulam de uma maneira planificada, nós permanecemos, apesar de tudo, no capitalismo, embora numa sua nova fase, mas indubitavelmente no capitalismo. A «proximidade» de tal capitalismo do socialismo deve ser, para os verdadeiros representantes do proletariado, um argumento a favor da proximidade, da facilidade, da exequibilidade, da urgência da revolução socialista, e de modo nenhum um argumento para se referir de modo tolerante à negação desta revolução e ao embelezamento do capitalismo, ao que se dedicam todos os reformistas.

Mas voltemos à questão do Estado. Engels dá aqui três tipos de indicações especialmente preciosas: em primeiro lugar, sobre a questão da república; em segundo lugar, sobre a ligação da questão nacional com a organização do Estado; em terceiro lugar, sobre a auto-administração local.

No que diz respeito à república, Engels fez disto o centro de gravidade da sua crítica do projecto de programa de Erfurt. E se nos lembrarmos da importância que adquiriu o programa de Erfurt em toda a social-democracia internacional e de como se tornou um modelo para toda a II Internacional, poder-se-á dizer sem exagero que Engels critica aqui o oportunismo de toda a II Internacional.

«As reivindicações políticas do projecto — escreve Engels — têm um grande erro. Aquilo que realmente deveria ser dito não está lá» (sublinhado de Engels).

E mais adiante explica que a Constituição alemã é propriamente uma cópia da extremamente reaccionária Constituição de 1850, que o Reichstag é apenas, segundo a expressão de Wilhelm Liebknecht, a «folha de parreira do absolutismo», que, na base de uma Constituição que legaliza os pequenos Estados e a união dos pequenos Estados alemães, querer realizar a «transformação de todos os instrumentos de trabalho em propriedade comum» é «um absurdo evidente».

«Tocar nisso, porém, é perigoso» — acrescenta Engels, que sabe perfeitamente que na Alemanha não se pode apresentar legalmente no programa a reivindicação da república. Mas Engels não se satisfaz pura e simplesmente com esta consideração evidente, com que «todos» se contentam. Engels prossegue: «E, contudo, a coisa tem de ser atacada duma maneira ou doutra. A necessidade disto prova-a precisamente agora o oportunismo que ganha terreno (einreissende) numa grande parte da imprensa social-democrata. Temendo uma restauração da lei anti-socialista(7), recordando todas aquelas afirmações precipitadas que caíram sob a alçada dessa lei, deveria agora de repente a actual situação jurídica na Alemanha bastar ao partido para levar a cabo todas as suas reivindicações por via pacífica ...»

Que os sociais-democratas alemães agiam temendo a restauração da lei de excepção, isto é um facto fundamental que Engels põe em primeiro plano e chama, sem hesitar, oportunismo, declarando que, precisamente devido à ausência de república e de liberdade na Alemanha, são absolutamente insensatos os sonhos sobre uma via «pacífica». Engels é suficientemente cuidadoso para não se atar as mãos. Reconhece que, nos países com república ou com uma muito grande liberdade, «se pode conceber» (somente «conceber»!) um desenvolvimento pacífico para o socialismo. Mas, na Alemanha, repete ele,

«... na Alemanha, onde o governo é quase todo-poderoso e o Reichstag e todos os outros corpos representativos não têm poder real, proclamar tal coisa na Alemanha, e ainda por cima sem necessidade, é tirar a parra com que o absolutismo se cobre e atar-se a si mesmo diante de tal nudez ...»

Como encobridores do absolutismo revelaram-se efectivamente, na sua imensa maioria, os chefes oficiais do partido social-democrata alemão, que «arquivou» estas indicações.

«... Uma tal política só pode induzir em erro o próprio partido por longo tempo. Faz-se avançar para primeiro plano questões políticas gerais, abstractas, e encobre-se assim as questões concretas imediatas, as questões que nos primeiros grandes acontecimentos, na primeira crise política, a si mesmas se colocam na ordem do dia. O que é que pode sair daí, a não ser o partido, de repente, no momento decisivo, ficar perplexo, a não ser reinarem a confusão e a desunião sobre os pontos mais decisivos, porque estes pontos nunca foram discutidos ...?

Esquecer assim os grandes pontos de vista principais para atender aos interesses imediatos do momento, lutar por pretender assim o êxito imediato sem considerar as consequências posteriores, abandonar assim o futuro do movimento em troca do presente do movimento — pode ser feito com “boas intenções”, mas é e será sempre oportunismo, e o oportunismo “bem intencionado” é, talvez, de todos o mais perigoso ...

Se há alguma coisa que seja certa, é que o nosso partido e a classe operária só podem aceder ao poder sob a forma da república democrática. É esta precisamente a forma específica para a ditadura do proletariado, como já o mostrou a grande revolução francesa ...»

Engels repete aqui com especial relevo aquela ideia fundamental que passa como um fio vermelho através de todas as obras de Marx, a saber, que a república democrática é a via de acesso mais próxima para a ditadura do proletariado. Pois tal república, não eliminando de modo nenhum o domínio do capital e, consequentemente, a opressão das massas e a luta de classes, conduz inevitavelmente a um tal alargamento, desenvolvimento, patentização, agravamento desta luta que, uma vez que surge a possibilidade de satisfazer os interesses fundamentais das massas oprimidas, esta possibilidade se realiza inevitável e unicamente na ditadura do proletariado, na direcção destas massas pelo proletariado. Para toda a II Internacional estas são também «palavras esquecidas» do marxismo, e o seu esquecimento foi revelado com extraordinária clareza pela história do partido dos mencheviques durante o primeiro meio ano da revolução russa de 1917.

Sobre a questão da república federativa em relação com a composição nacional da população, Engels escrevia:

«Que deve substituir a Alemanha actual?» (com a sua Constituição monárquica reaccionária e a igualmente reaccionária divisão em pequenos Estados, divisão que perpetua as particularidades do «prussianismo», em lugar de as dissolver na Alemanha como um todo). «Na minha opinião, o proletariado só pode utilizar a forma da república unitária e indivisível. A república federativa ainda é agora, dum modo geral, uma necessidade no território gigantesco dos Estados Unidos, embora na parte oriental se torne já um obstáculo. Seria um progresso em Inglaterra, onde vivem quatro nações nas duas ilhas e já hoje existem, apesar de haver um único parlamento, três sistemas jurídicos a par uns dos outros. Na pequena Suíça já de há muito se tornou um obstáculo, suportável apenas porque a Suíça se contenta em ser um membro meramente passivo do sistema de Estados europeus. Para a Alemanha, o “ensuiçamento” federalista constituiria um enorme retrocesso. Dois pontos distinguem o Estado federal do Estado unitário: cada um dos Estados federados, cada cantão, tem a sua própria legislação civil e criminal e a sua constituição jurídica, e depois, a par do parlamento do cantão, existe o parlamento do Estado, no qual cada cantão, grande ou pequeno, vota como tal.» Na Alemanha o Estado federal é a transição para um Estado plenamente unitário, e não se deve voltar atrás com a «revolução a partir de cima» dos anos de 1866 e 1870, mas completá-la com um «movimento a partir de baixo».

Engels não só não revela indiferença em relação à questão das formas do Estado, como, pelo contrário, se esforça por analisar com o maior cuidado precisamente as formas de transição, para determinar em função das particularidades históricas concretas de cada caso, de quê e para quê a dada forma é a transição.

Engels, assim como Marx, defende, do ponto de vista do proletariado e da revolução proletária, o centralismo democrático, a república unitária e indivisível. Considera a república federativa quer como uma excepção e um obstáculo ao desenvolvimento quer como uma transição da monarquia para a república centralizada, como um «progresso» em certas condições especiais. E, entre estas condições especiais, destaca-se a questão nacional.

Em Engels, como também em Marx, apesar da sua crítica implacável do carácter reaccionário dos pequenos Estados e do encobrimento deste carácter reaccionário com a questão nacional em determinados casos concretos, não se encontra em lado nenhum nem sombra de tendência para eludir a questão nacional, tendência de que frequentemente pecam os marxistas holandeses e polacos, partindo da luta legítima contra o nacionalismo estreito e filistino dos «seus» pequenos Estados.

Mesmo em Inglaterra, onde tanto as condições geográficas, como a comunidade da língua, como uma história multissecular pareceriam «ter liquidado» a questão nacional nas diversas pequenas divisões da Inglaterra, mesmo aqui Engels tem em conta o facto evidente de que a questão nacional ainda não foi superada, e por isso reconhece a república federativa como um «progresso». Compreende-se que aqui não há nem sombra de renúncia a crítica dos defeitos da república federativa nem a propaganda e luta mais decididas a favor da república unitária democrática e centralizada.

Mas Engels não concebe de modo nenhum o centralismo democrático no sentido burocrático em que usam este conceito os ideólogos burgueses e pequeno-burgueses e, entre estes últimos, os anarquistas. O centralismo, para Engels, não exclui de forma alguma a ampla auto-administração local que, defendendo as «comunas» e as regiões voluntariamente a unidade do Estado, elimina absolutamente todo o burocratismo e todo o «comando» vindo de cima.

«... República unitária portanto — escreve Engels, desenvolvendo as concepções programáticas do marxismo sobre o Estado —, mas não no sentido da república francesa dos nossos dias, que não é mais do que o império sem imperador fundado em 1798. De 1792 a 1798 todos os departamentos, todas as comunidades (Gemeinde) francesas possuíam uma completa auto-administração segundo o modelo americano, e nós também temos de tê-la. Como instituir a auto-administração e não cair na burocracia, eis o que nos mostraram a América e a primeira república francesa, e ainda hoje nos mostram a Austrália, o Canadá e as outras colónias inglesas. E uma tal auto-administração provincial e comunal é muito mais livre do que, por exemplo, o federalismo suiço em que o cantão é, de facto, muito independente face à União» (isto é, face ao Estado federativo no conjunto), «mas também face ao distrito (Bezirk) e à comunidade local. Os governos cantonais nomeiam governadores de distrito (Bezirksstatthalter) e prefeitos, os quais são completamente desconhecidos nos países de língua inglesa e que nós, com a maior cortesia, queremos igualmente ver dispensados no futuro, tal como os corregedores e os altos conselheiros administrativos prussianos» (comissários, chefes da polícia municipal, governadores e, em geral, funcionários nomeados de cima). De acordo com isto Engels propõe que se formule o ponto do programa sobre a auto-administração do modo seguinte: «Completa auto-administração na província» (gubérnia ou região), «distritos e comunidades locais por meio de funcionários eleitos por sufrágio universal. Abolição de todas as autoridades locais e provinciais nomeadas pelo Estado».

No Pravda (n.° 68, de 28 de Maio de 1917) fechado pelo governo de Kérenski e de outros ministros «socialistas», já tive ocasião de assinalar como, neste ponto — evidentemente longe de ser o único —, os nossos representantes pseudo-socialistas de uma pseudo-democracia pseudo-revolucionária se afastaram escandalosamente do democratismo(8). Compreende-se que homens que se ligaram por uma «coligação» com a burguesia imperialista tenham permanecido surdos a estas indicações.

É extremamente importante notar que Engels, com factos na mão, refuta, com base num exemplo muito preciso, o preconceito extraordinariamente divulgado — sobretudo entre a democracia pequeno-burguesa — segundo o qual uma república federativa significa necessariamente mais liberdade do que uma república centralista. Isto é falso. Os factos citados por Engels, relativos à república francesa centralista de 1792-1798 e à república federalista suíça, refutam-no. A república centralista verdadeiramente democrática dava mais liberdade que a república federalista, ou, por outras palavras: a maior liberdade local, regional e outra conhecida na história foi dada pela república centralista e não pela federativa.

A este facto, como em geral a toda a questão da república federativa e centralista e da auto-administração local, foi e é dada insuficiente atenção na nossa propaganda e agitação partidárias.

5. O Prefácio de 1891 à “Guerra Civil” de Marx

No prefácio à terceira edição de A Guerra Civil em França — este prefácio é datado de 18 de Março de 1891 e impresso pela primeira vez na revista Neue Zeit — Engels, a par de interessantes observações que faz de passagem sobre questões ligadas à atitude em relação ao Estado, faz um resumo de um relevo notável dos ensinamentos da Comuna(9). Este resumo, enriquecido com toda a experiência do período de vinte anos que separava o autor da Comuna, e especialmente dirigido contra a «fé supersticiosa no Estado», tão difundida na Alemanha, pode ser chamado com justiça a última palavra do marxismo sobre a questão que estamos a examinar.

Em França, observa Engels, os operários ficaram armados depois de cada revolução; «por isso, para os burgueses que se encontravam ao leme do Estado, o primeiro imperativo era desarmar os operários. Daí uma nova luta depois de cada revolução conquistada pelos operários, luta essa que termina com a derrota dos operários ...»

O balanço da experiência das revoluções burguesas é tão curto como expressivo. O fundo da questão — entre outras coisas também quanto à questão do Estado (a classe oprimida possui armas?) — é captado aqui de forma notável. É precisamente este fundo que evitam, a maior parte das vezes, tanto os professores influenciados pela ideologia burguesa como os democratas pequeno-burgueses. Na revolução russa de 1917, coube ao «menchevique», «também marxista», Tsereteli a honra (honra à Cavaignac) de trair este segredo das revoluções burguesas. No seu discurso «histórico» de 11 de Junho, Tseretéli deixou escapar a decisão da burguesia de desarmar os operários de Petrogrado, apresentando naturalmente esta decisão como sua e, em geral, como uma necessidade «de Estado»(10)!

O discurso histórico de Tseretéli de 11 de Junho será, naturalmente, para qualquer historiador da revolução de 1917 uma das ilustrações mais concretas da maneira como o bloco dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, dirigido pelo senhor Tseretéli, passou para o lado da burguesia contra o proletariado revolucionário.

Outra observação de passagem de Engels, também ligada à questão do Estado, diz respeito à religião. É sabido que a social-democracia alemã, à medida que apodrecia tornando-se cada vez mais oportunista, deslizava cada vez mais frequentemente para uma interpretação errônea e filistina da célebre fórmula: «declarar a religião um assunto privado». Ou seja: esta fórmula era interpretada como se, também para o partido do proletariado revolucionário, a questão da religião fosse um assunto privado!! Foi contra esta traição completa ao programa revolucionário do proletariado que se insurgiu Engels, que, em 1891, observava apenas germes muito fracos de oportunismo no seu partido e que se exprimia por isso com o maior cuidado:

«Tal como quase só operários ou reconhecidos representantes dos operários tinham assento na Comuna, assim também as suas decisões tinham um carácter decididamente proletário. Ou decretaram reformas que a burguesia republicana apenas omitira por cobardia, mas que constituíam uma base necessária para a livre acção da classe operária, tal como a concretização do princípio de que a religião, face ao Estado, é um assunto meramente privado; ou ela promulgou decisões directamente no interesse da classe operária e que, em parte, atingiram profundamente a velha ordem social...»

Engels sublinhou intencionalmente as palavras «face ao Estado», vibrando um golpe directo no oportunismo alemão, que declarava a religião assunto privado face ao partido e rebaixava deste modo o partido do proletariado revolucionário ao nível do mais vulgar filistinismo «livre-pensador», pronto a admitir uma situação de arreligiosidade, mas que abdica da tarefa da luta de partido contra o ópio religioso que embrutece o povo.

O historiador futuro da social-democracia alemã, ao estudar as raízes da sua vergonhosa bancarrota em 1914, encontrará não pouco material interessante sobre esta questão, começando com as declarações evasivas nos artigos do chefe ideológico do partido, Kautsky, que abrem de par em par a porta ao oportunismo, e acabando na atitude do partido relativamente ao «Los-von-Kirche-Bewegung» (movimento para a separação da Igreja), em 1913(11).

Mas voltemos a como Engels, vinte anos após a Comuna, fazia o balanço das suas lições para o proletariado em luta.

Eis quais as lições que Engels colocava em primeiro plano:

«... Precisamente o poder repressivo do governo até aí centralizado, do exército, da polícia política, da burocracia, que Napoleão criara em 1798 e que desde então todos os novos governos tinham aceitado como instrumento bem-vindo e utilizado contra os seus adversários, precisamente este poder devia cair por toda a parte como em Paris já caíra.

A Comuna teve de reconhecer logo de princípio que a classe operária, uma vez chegada ao domínio, não podia continuar a governar com a velha máquina do Estado; que esta classe operária, para não perder de novo o seu próprio domínio apenas recém-conquistado, tinha, por um lado, de eliminar toda a velha máquina repressiva até aí utilizada contra ela própria, mas, por outro lado, de se assegurar contra os seus próprios deputados e funcionários, declarando-os, a todos sem excepção, destituíveis a cada momento...»

Engels sublinha uma e outra vez que, não só na monarquia mas também na república democrática, o Estado continua a ser Estado, isto é, conserva o seu traço distintivo fundamental: transformar os funcionários públicos, «servidores da sociedade», seus órgãos, em senhores dela.

«... Contra esta transformação, até aqui inevitável em todos os Estados, do Estado e dos órgãos estatais, de servidores da sociedade em senhores da sociedade, a Comuna aplicou dois meios infalíveis. Em primeiro lugar, preencheu todos os postos — administrativos, judiciais, docentes — por eleição, com direito de voto reconhecido a todos os interessados, e de facto com base na revogação a cada momento pelos mesmos interessados. E em segundo lugar remunerou todos os serviços, elevados ou baixos, apenas com o salário que os outros operários recebiam. O ordenado mais alto que pagava era de 6000 francos(12). Fechava-se assim a porta à caça aos postos e à ambição carreirista, mesmo sem os mandatos vinculativos entre os delegados a corpos representativos que ainda foram acrescentados em profusão ...»

Engels chega aqui ao limite interessante em que a democracia consequente, por um lado, se transforma em socialismo e, por outro lado, em que reclama o socialismo. Pois para suprimir o Estado é preciso transformar as funções do serviço de Estado em operações de controlo e de registo tão simples que sejam acessíveis e realizáveis pela imensa maioria da população e, depois, por toda a população sem excepção. E a completa eliminação do carreirismo exige que o lugarzinho «honroso», ainda que não lucrativo, ao serviço do Estado, não possa servir de trampolim para saltar para lugares altamente lucrativos nos bancos e nas sociedades por acções, como acontece constantemente em todos os países capitalistas mais livres.

Mas Engels não comete o erro que cometem, por exemplo, certos marxistas sobre a questão do direito das nações à autodeterminação: no capitalismo, dizem, é impossível, no socialismo é supérfluo. Semelhante raciocínio, pretensamente espirituoso, mas de facto falso, poderia repetir-se a propósito de qualquer instituição democrática, incluindo o modesto vencimento dos funcionários, porque um democratismo consequente até ao fim é impossível no capitalismo, e no socialismo toda a democracia se extinguirá.

Isto é um sofisma como aquele velho gracejo de se um homem fica calvo se perder um cabelo.

O desenvolvimento da democracia até ao fim, a procura das formas desse desenvolvimento, a sua comprovação na prática, etc., tudo isso é uma das tarefas integrantes da luta pela revolução social. Tomado em separado, nenhum democratismo dá o socialismo, mas na vida o democratismo nunca será «tomado em separado», antes será «tomado juntamente com», exercerá a sua influência também na economia, impelirá a sua transformação, sofrerá a influência do desenvolvimento económico, etc. Tal é a dialéctica da história viva.

Engels prossegue:

«... Esta destruição (Sprengung) do anterior poder de Estado e a sua substituição por um novo, verdadeiramente democrático, está pormenorizadamente descrita no cap. III da Guerra Civil. Mas era necessário entrar aqui de novo, e resumidamente, em alguns traços das mesmas, porque precisamente na Alemanha a fé supersticiosa no Estado se transpôs da filosofia para a consciência geral da burguesia e mesmo de muitos operários. Segundo a representação filosófica, o Estado é a “realização da Ideia” ou o reino de Deus na Terra traduzido para a filosofia, a área sobre a qual a verdade e justiça eternas se realizam ou devem realizar. E daqui decorre então uma veneração supersticiosa do Estado e de tudo aquilo que está em conexão com o Estado, a qual se faz sentir tanto mais facilmente quanto as pessoas, desde crianças, se habituaram a imaginar que os negócios e interesses comuns a toda a sociedade não podem ser tratados doutra maneira que não aquela em que até aqui foram tratados, ou seja, por meio do Estado e das suas autoridades bem colocadas. E as pessoas acreditam terem já dado um passo tremendamente ousado ao libertarem-se da crença na monarquia hereditária e confiarem na república democrática. Na realidade, porém, o Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia; e, no melhor dos casos, um mal deixado em herança ao proletariado triunfante na luta pelo domínio de classe, e cujas facetas mais graves ele, como a Comuna, não poderá deixar de cortar o mais rapidamente possível, até que uma geração formada em novas condições sociais livres seja capaz de se desfazer de toda a tralha do Estado.»

Engels advertiu os alemães para que não esquecessem, no caso de substituição da monarquia pela república, as bases do socialismo na questão do Estado em geral. As suas advertências leem-se hoje como uma lição directa aos senhores Tsereteli e Tchernov, que revelam na sua prática «coligacionista» uma fé supersticiosa no Estado e uma veneração supersticiosa por ele!

Duas observações ainda:

1) Se Engels diz que, numa república democrática, «de modo nenhum menos» do que numa monarquia, o Estado continua a ser uma «máquina para a opressão de uma classe por outra», isto não significa de modo nenhum que a forma de opressão seja indiferente ao proletariado, como «ensinam» certos anarquistas. Uma forma mais ampla, mais livre, mais aberta, de luta de classes e de opressão de classe facilita de modo gigantesco a luta do proletariado pela supressão das classes em geral.

2) Porque é que só uma nova geração será capaz de se desfazer de toda a tralha do Estado — esta questão está ligada à questão da superação da democracia, a que vamos passar.

6. Engels sobre a Superação da Democracia

Engels teve de pronunciar-se sobre isto em ligação com a questão da inexactidão científica da denominação «social-democrata».

No prefácio à edição dos seus artigos da década de 1870 sobre diversos temas, principalmente de conteúdo «internacional» (Internationales aus dem «Volksstaat»(13)), prefácio datado de 3 de Janeiro de 1894, isto é, escrito um ano e meio antes da morte de Engels, ele escrevia que em todos os artigos se emprega a palavra «comunista», e não «social-democrata», porque então se chamavam a si próprios sociais-democratas os proudhonistas em França, os lassallianos(14) na Alemanha.

«... Para Marx e para mim — prossegue Engels — era, por isso, absolutamente impossível escolher, para designar o nosso ponto de vista especial, uma expressão tão elástica. Hoje as coisas mudaram, e assim a palavra» («social-democrata») «pode passar (mag passieren) ainda que continue a ser inadequada (unpassend, imprópria) para um partido cujo programa económico não é meramente socialista em geral, mas directamente comunista, e cujo objectivo político final é a superação de todo o Estado, portanto também da democracia. Os nomes de partidos políticos reais» (sublinhado de Engels) «porém, nunca estão completamente certos; o partido desenvolve-se, o nome permanece»(15).

O dialéctico Engels, no ocaso dos seus dias, permanece fiel à dialéctica. Marx e eu, diz, tínhamos um belo nome para o partido, cientificamente preciso, mas não existia um verdadeiro partido proletário, isto é, de massas. Agora (fim do século XIX), existe um verdadeiro partido, mas a sua denominação é cientificamente inexacta. Não interessa, «passa», desde que o partido se desenvolva, desde que a imprecisão científica da sua denominação não lhe seja escondida e não o impeça de se desenvolver na direcção justa!

Talvez um espirituoso qualquer se pusesse a consolar-nos também a nós, bolcheviques, à maneira de Engels: temos um verdadeiro partido, ele desenvolve-se admiravelmente; «passa» também uma palavra tão absurda e feia como «bolchevique», que não exprime absolutamente nada, senão a circunstância puramente casual de que no Congresso de Bruxelas-Londres de 1903 tivemos a maioria(16)... Talvez agora, quando as perseguições de Julho-Agosto contra o nosso partido pelos republicanos e a democracia pequeno-burguesa «revolucionária» tornaram a palavra «bolchevique» tão honrosa entre todo o povo, quando elas marcaram além disso um histórico e imenso passo em frente dado pelo nosso partido no seu desenvolvimento real, talvez eu próprio hesitasse na minha proposta de Abril de mudar a denominação do nosso partido(17). Talvez propusesse aos meus camaradas um «compromisso»: chamarmo-nos partido comunista, mas conservar entre parêntesis a palavra bolchevique ...

Mas a questão da denominação do partido é incomparavelmente menos importante do que a questão da atitude do proletariado revolucionário em relação ao Estado.

Nos raciocínios habituais sobre o Estado comete-se constantemente o erro contra o qual Engels adverte aqui e que assinalámos de passagem na exposição anterior. A saber: esquece-se constantemente que a supressão do Estado é também a supressão da democracia, que a extinção do Estado é a extinção da democracia.

À primeira vista tal afirmação parece extremamente estranha e incompreensível; talvez mesmo surja em alguns o receio de que nós esperemos o advento de uma organização social em que não se observe o princípio da subordinação da minoria à maioria, pois não será a democracia precisamente o reconhecimento de tal princípio?

Não. A democracia não é idêntica à subordinação da minoria à maioria. A democracia é um Estado que reconhece a subordinação da minoria à maioria, isto é, uma organização para exercer a violência sistemática de uma classe sobre outra, de uma parte da população sobre outra.

Propomo-nos como objectivo final a supressão do Estado, isto é, de toda a violência organizada e sistemática, de toda a violência sobre os homens em geral. Não esperamos o advento de uma ordem social em que o princípio da subordinação da minoria à maioria não seja observado. Mas, aspirando ao socialismo, estamos convencidos de que ele se transformará em comunismo e, em ligação com isto, desaparecerá toda a necessidade da violência sobre os homens em geral, da subordinação de um homem a outro, de uma parte da população a outra parte dela, porque os homens se habituarão a observar as condições elementares da convivência social sem violência e sem subordinação.

E para sublinhar este elemento de hábito que Engels fala da nova geração «formada em novas condições sociais livres que será capaz de se desfazer de toda a tralha do Estado» — de qualquer Estado, incluindo o Estado democrático republicano.

Para esclarecer isto é necessário analisar a questão das bases económicas da extinção do Estado.


Notas de rodapé:

(1) F. Engels, O Problema da Habitação. (In Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 226-227). (retornar ao texto)

(2) Proudhonismo: corrente anticientífica do socialismo pequeno-burguês. Recebeu a sua denominação do seu ideólogo, o anarquista francês Proudhon. Este, criticando de um ponto de vista pequeno-burguês a grande propriedade capitalista, sonhava com a perpetuação da pequena propriedade privada e propunha a organização de um Banco “do Povo” e um Banco “de Troca”, com a ajuda dos quais os operários poderiam adquirir meios de produção, transformar-se em artesãos e assegurar a venda “justa” dos seus produtos. Proudhon não compreendia o papel histórico do proletariado e negava a luta de classes, a revolução proletária e a ditadura do proletariado; como anarquista, negava também a necessidade do Estado.

Marx e Engels lutaram intransigentemente contra as tentativas dos proudhonistas de impor as suas ideias à I Internacional. (retornar ao texto)

(3) Lénine refere-se ao artigo de K. Marx “O Indiferencismo Político” (In Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 299-304) e ao artigo de F. Engels “Da Autoridade” (Ibidem, S. 305-308), publicados em Dezembro de 1873 na colectânea Italiana Almanaco Reppublicano per l'anno 1874 e depois traduzidos para alemão na revista Die Neue Zeit em 1913. Mais adiante Lénine cita igualmente estes artigos. (retornar ao texto)

(4) Trata-se da Obra de K. Marx, Miséria da Filosofia. (retornar ao texto)

(5) Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. 19, S. 6-7) (retornar ao texto)

(6) F. Engels, “Para a Crítica do Projecto do Programa Social-Democrata de 1891”. (In Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. 22, S. 232). Mais adiante Lénine cita novamente esta obra (Ibidem, S. 233-237). (retornar ao texto)

(7) Trata-se da lei de excepção contra os socialistas, promulgada na Alemanha em 1878 pelo governo de Bismarck para lutar contra o movimento operário e socialista. Em virtude desta lei, foram proibidas todas as organizações do Partido Social-Democrata, as organizações operárias de massas e a imprensa operária; foi confiscada a literatura socialista e os sociais-democratas foram perseguidos e desterrados. Em 1890, sob a pressão do movimento de massas e do movimento operário, que ganhava cada vez mais força, a lei de excepção contra os socialistas foi revogada. (retornar ao texto)

(8) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª Edição em russo, t. 32, pp. 218-221 (N. Ed.) (retornar ao texto)

(9) Ver F. Engels, Introdução à obra de K. Marx “A Guerra Civil em França”. (In Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. 17, S. 613-615). Mais adiante Lénine citará novamente esta obra. (retornar ao texto)

(10) Trata-se do discuso de Tseretéli, ministro menchevique do Governo Provisório, na reunião conjunta de 11 (24) de Junho de 1917 do Praesidium do I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, do Comité Executivo do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado, do Comité Executivo do Soviete dos Deputados Camponeses e dos bureaux de todas as fracções do Congresso, durante a discussão da questão da manifestação pacífica dos operários e soldados de Petrogrado marcada pelos bolcheviques para o dia 10 (23) de Junho. A intervenção de Tseretéli foi contra-revolucionária e caluniosa. Acusando os bolcheviques de conspirarem contra o governo e de serem cúmplices da contra-revolução, ameaçou tomar medidas decididas para desarmar os operários que estavam do lado dos bolcheviques. (retornar ao texto)

(11) O Los-von Kirche-Bewegung (movimento para a separação da Igreja) adquiriu um carácter de massas na Alemanha nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Em Janeiro de 1914, foi publicado na Revista Die Neue Zeit o artigo do revisionista Paul Göre intitulado “Kirchenaustrittsbewegung und Sozialdemokratie” (“O Movimento para Sair da Igreja e a Social-Democracia”), que deu início à discussão do problema da atitude do Partido Social-Democrata da Alemanha em relação a esse movimento. Os destacados dirigentes da social-democracia alemã que participaram nessa discussão não combateram Göre, o qual afirmava que o partido devia manter a neutralidade em relação ao movimento pela separação da Igreja e proibir que os militantes do partido fizessem propaganda anti-religiosa e contra a Igreja em nome do Partido. (retornar ao texto)

(12) Nota do Autor: Nominalmente, isto dá cerca de 2400 rublos, e, segundo o curso actual, cerca de 6000 rublos. Procedem de uma maneira absolutamente imperdoável aqueles bolcheviques que propõem, por exemplo, vencimentos de 9000 rublos nas dumas da cidade, não propondo estabelecer para todo o estado o máximo de 6000 rublos – soma suficiente. (Nota do Editor: Os números que Lénine indica como salários possíveis estão expressos em papel-moeda do segundo semestre de 1917. O rublo-papel foi consideravelmente desvalorizado durante a Primeira Guerra Mundial.) (retornar ao texto)

(13) «Sobre temas internacionais do “Estado do Povo”.» (N. Ed.) (retornar ao texto)

(14) Lassalianos: membros da União Geral Operária Alemã, fundada em 1863 pelo destacado socialista alemão F. Lassalle. A criação de um partido político de massas da classe operária foi indubitavelmente importante passo em frente no desenvolvimento do movimento operário da Alemanha. Não obstante, Lassalle e os seus seguidores tomaram uma atitude oportunista quanto às principais questões da teoria e da prática. A União declarou como seu programa político a luta pelo sufrágio universal e como seu programa económico a criação de associações operárias de produção subsidiadas pelo Estado.

Na sua actividade prática, Lassalle e os seus partidários adaptavam-se à hegemonia da Prússia e apoiavam a política chauvinista de Bismarck. Marx e Engels criticaram forte e repetidamente a teoria, a táctica e os princípios de organização dos lassalianos como corrente oportunista no movimento operário alemão. (retornar ao texto)

(15) F. Engels, Prefácio à brochura “Internationales aus dem 'Volkstadt'” (1871-1875). (In Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. 22, S. 416-418) (retornar ao texto)

(16) Lénine refere-se ao II Congresso do POSDR, que se realizou de 17 (30) de Julho a 10 (23) de Agosto de 1903, inicialmente em Bruxelas e depois em Londres. Na eleição dos organismos centrais do Partido os sociais-democratas revolucionários, dirigidos por Lénine, obtiveram a maioria (bolchinstvó em russo), enquanto os oportunistas ficaram em minoria (menchinstvó); daí as designações “bolcheviques” (maioritários) e “mencheviques” (minoritários). (retornar ao texto)

(17) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª Edição em russo, t.31, pp. 100-111 (N. Ed.) (retornar ao texto)

Inclusão: 24/07/2003
Última modificação: 07/03/2024