Que Fazer?

Vladimir Ilitch Lénine


II. A Espontaneidade das Massas e a Consciência da Social-Democracia


Dissemos que é preciso inspirar ao nosso movimento, muito mais vasto e profundo do que o da década de 70, a mesma decisão abnegada e a mesma energia que naquela época. Com efeito, parece que até agora ninguém ainda duvidara de que a força do movimento contemporâneo consistisse no despertar das massas (e principalmente do proletariado industrial), e a sua debilidade na falta de consciência e de espírito de iniciativa dos dirigentes revolucionários.

Contudo, nestes últimos tempos foi feita uma descoberta espantosa que ameaça subverter todas as ideias até agora dominantes sobre este ponto. Esta descoberta foi feita pela R. Dielo, que, polemizando com o Iskra e a Zariá, não se limitou a objecções particulares, mas tentou reduzir o «desacordo geral» à sua raiz mais profunda: à «apreciação diferente da importância relativa do elemento espontâneo e do elemento conscientemente “metódico”». A Rabótcheie Dielo acusa-nos de «subestimar a importância do elemento objectivo ou espontâneo do desenvolvimento»(1). A isto responderemos: se a polémica do Iskra e da Zariá não tivesse qualquer outro resultado do que levar a R. Dielo a descobrir este «desacordo geral», este resultado, só por si, dar-nos-ia grande satisfação, a tal ponto é significativa esta tese, a tal ponto ilustra claramente toda a essência das actuais divergências teóricas e políticas entre os sociais-democratas russos.

Por isso mesmo a questão das relações entre o consciente e o espontâneo apresenta um imenso interesse geral e é preciso analisá-la com todo o pormenor.

a) Começo do ascenso espontâneo

No capítulo anterior sublinhámos a atracção geral da juventude instruída russa pela teoria do marxismo em meados dos anos 90. Também as greves operárias adquiriram, por aquela época, depois da famosa guerra industrial de 1896(2), em Petersburgo, um carácter geral. A sua extensão por toda a Rússia testemunhava claramente como era profundo o movimento popular que tornava a renascer, e já que falamos do «elemento espontâneo» é certamente este movimento grevista que deve ser considerado, em primeiro lugar, como espontâneo. Mas há espontaneidade e espontaneidade. Também houve greves na Rússia durante as décadas de 70 e de 60 (e até na primeira metade do século XIX), greves acompanhadas da destruição «espontânea» de máquinas, etc. Comparadas com estes «motins», as greves da década de 90 poderiam mesmo ser qualificadas de «conscientes», tal foi o progresso do movimento operário durante aquele período. Isto mostra-nos que, no fundo, o «elemento espontâneo» não é mais do que a forma embrionária do consciente. E os motins primitivos reflectiam já um certo despertar do consciente. Os operários perdiam a fé tradicional na inamovibilidade do regime que os oprimia; começavam... não direi a compreender, mas a sentir a necessidade de uma resistência colectiva e rompiam resolutamente com a submissão servil às autoridades. Mas isto, contudo, era mais uma manifestação de desespero e de vingança do que uma luta. As greves dos anos 90 oferecem-nos muitos mais clarões de consciência: formulam-se reivindicações precisas, calcula-se antecipadamente o momento mais favorável, discutem-se os casos e exemplos de outras localidades, etc. Se os motins eram simplesmente a revolta de oprimidos, as greves sistemáticas representavam já embriões — mas nada mais do que embriões — da luta de classes. Em si mesmas, estas greves eram luta trade-unionista, não eram ainda luta social-democrata; assinalavam o despertar do antagonismo entre os operários e os patrões, mas os operários não tinham, nem podiam ter, a consciência da oposição irreconciliável entre os seus interesses e todo o regime político e social existente, isto é, não tinham consciência social-democrata. Neste sentido, as greves dos anos 90, apesar do imenso progresso que representavam em relação aos «motins», continuavam a ser um movimento nitidamente espontâneo.

Dissemos que os operários nem sequer podiam ter consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora. A história de todos os países testemunha que a classe operária, exclusivamente com as suas próprias forças, só é capaz de desenvolver uma consciência trade-unionista, quer dizer, a convicção de que é necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo estas ou aquelas leis necessárias aos operários, etc.(3) Por seu lado, a doutrina do socialismo nasceu de teorias filosóficas, históricas e económicas elaboradas por representantes instruídos das classes possidentes, por intelectuais. Os próprios fundadores do socialismo científico moderno, Marx e Engels, pertenciam, pela sua situação social, à intelectualidade burguesa. Da mesma maneira, na Rússia, a doutrina teórica da social-democracia surgiu de uma forma completamente independente do ascenso espontâneo do movimento operário; surgiu como resultado natural e inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais revolucionários socialistas. Na época de que estamos a falar, isto é, em meados dos anos 90, esta doutrina não só constituía já um programa completamente formado do grupo «Emancipação do Trabalho», como tinha conquistado a maioria da juventude revolucionária da Rússia.

Assim, existiam, ao mesmo tempo, o despertar espontâneo das massas operárias, despertar para a vida consciente e para a luta consciente, e uma juventude revolucionária que, armada com a teoria social-democrata, se orientava com todas as suas forças para os operários. Além disso, importa sobretudo deixar bem assente o facto, frequentemente esquecido (e relativamente pouco conhecido), de que os primeiros sociais-democratas deste período, ocupando-se com ardor da agitação económica (e tendo bem presentes nesse sentido as indicações realmente úteis do folheto Sobre a Agitação(4), então ainda manuscrito), longe de a considerarem como sua única tarefa, pelo contrário, desde o começo estabeleciam para a social-democracia russa as mais amplas tarefas históricas, em geral, e a de derrubar a autocracia, em particular. Assim, por exemplo, o grupo dos sociais-democratas de Petersburgo que fundou a «União de Luta pela Emancipação da Classe Operária»(5), redigiu, já em fins de 1895, o primeiro número de um jornal intitulado Rabótcheie Dielo. Pronto para ser impresso, este número foi apreendido pelos gendarmes numa busca na noite de 8 para 9 de Dezembro de 1895 na casa de um dos membros do grupo, Anat. Alex. Vanéiev(6). Assim, o primeiro número do Rabótcheie Dielo do primeiro período não teve a sorte de ver a luz do dia. O editorial deste jornal (que talvez dentro de uns trinta anos uma revista como a Rússkaia Stariná(7) exumará dos arquivos do departamento da polícia) esboçava os objectivos históricos da classe operária da Rússia, pondo em primeiro plano a conquista da liberdade política. Seguia-se o artigo «Em Que Pensam os Nossos Ministros?»(8) sobre a dissolução violenta pela polícia dos Comités de Instrução Elementar, bem como uma série de artigos de correspondentes, não só de Petersburgo, mas também de outras localidades da Rússia (por exemplo, sobre o massacre de operários na província de Iaroslavl(9)). Assim, este «primeiro ensaio», se não nos enganamos, dos sociais-democratas russos da década de 90, não era um jornal de carácter estreitamente local e ainda menos de caráter «economista»; visava unir a luta grevista ao movimento revolucionário contra a autocracia e levar todas as vitimas da opressão política do obscurantismo reaccionário a apoiar a social-democracia. E quem quer que conheça, por pouco que seja, o estado do movimento nessa época, não poderá duvidar que um tal jornal teria sido acolhido com plena simpatia tanto pelos operários da capital como pelos intelectuais revolucionários e teria tido a mais vasta difusão. O fracasso deste empreendimento provou simplesmente que os sociais-democratas de então não estavam em condições de satisfazer as exigências vitais do momento por falta de experiência revolucionária e de preparação prática. O mesmo se deve dizer do Sankt-Peterbúrgski Rabótchi Listok(10) e, sobretudo, do Rabótchaia Gazeta e do Manifesto do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, fundado na Primavera de 1898. Subentende-se que nem sequer nos passa pela cabeça a ideia de censurar os militantes de então por esta falta de preparação. Mas para aproveitar a experiência do movimento e dela tirar lições práticas é preciso compreender completamente as causas e o significado deste ou daquele defeito. Por isso é de extrema importância deixar assente que uma parte (talvez mesmo a maioria) dos sociais-democratas que actuaram no período de 1895-1898 considerava possível com toda a razão, já então, nos alvores do movimento «espontâneo», defender o mais amplo programa e uma táctica de combate(11). A falta de preparação da maioria dos revolucionários, sendo um fenómeno perfeitamente natural, não podia provocar qualquer apreensão particular. A partir do momento em que as tarefas eram definidas correctamente, a partir do momento em que havia energia suficiente para repetidas tentativas para realizar estas tarefas, os reveses temporários eram apenas meio mal. A experiência revolucionária e a capacidade de organização são coisas que se adquirem. A única coisa que é precisa é querer desenvolver em si as qualidades necessárias! A única coisa que é precisa é ter consciência dos seus defeitos, o que, no trabalho revolucionário, é já mais de meio caminho para os corrigir!

Mas o que era um meio mal tornou-se num verdadeiro mal quando esta consciência começou a obscurecer-se (e é de notar que era muito viva nos militantes dos grupos atrás mencionados), quando apareceram pessoas — e mesmo órgãos sociais-democratas — dispostas a erigir os defeitos em virtudes, e que tentaram até dar um fundamento teórico à sua submissão servil e ao seu culto da espontaneidade. É tempo de fazer o balanço desta tendência, muito inexactamente caracterizada pela palavra «economismo», termo demasiado estreito para exprimir o seu conteúdo.

b) Culto da espontaneidade. O «Rabótchaia Misl»

Antes de passar às manifestações literárias deste culto, assinalaremos o seguinte facto característico (comunicado pela fonte acima mencionada), que lança uma certa luz sobre a forma como surgiu e cresceu, no seio dos camaradas que actuavam em Petersburgo, o desacordo entre as duas futuras tendências da social-democracia russa. No início de 1897, A. A. Vanéiev e alguns dos seus camaradas tiveram ocasião de participar, antes da sua deportação, numa reunião privada em que se encontraram «velhos» e «jovens» membros da «União de Luta pela Emancipação da Classe Operária»(12). A conversa versou principalmente sobre a organização e, em particular, sobre os Estatutos das Caixas Operárias, publicados na sua forma definitiva no n.º 9-10 da Listok «Rabótnika»(13) (p. 46). Entre os «velhos» (os «dezembristas», como lhes chamavam, em tom de gracejo, os sociais-democratas de Petersburgo) e alguns dos «jovens» (que mais tarde colaboraram activamente no Rabótchaia Misl), imediatamente se manifestou uma divergência muito nítida e se estabeleceu uma polémica acalorada. Os «jovens» defendiam os princípios essenciais dos estatutos tal como foram publicados. Os «velhos» diziam que não era isto o que fazia falta em primeiro lugar, mas sim consolidar a «União de Luta», transformando-a numa organização de revolucionários à qual deveriam subordinar-se as diversas caixas operárias, os círculos de propaganda entre a juventude estudantil, etc. Evidentemente, as duas partes estavam longe de ver nesta divergência o germe de um desacordo; consideravam-na, pelo contrário, como isolada e acidental. Mas este facto prova que, também na Rússia, o «economismo» não surgiu nem se difundiu sem uma luta contra os «velhos» sociais-democratas (o que os «economistas» de hoje esquecem frequentemente). E se esta luta não deixou, na sua maior parte, vestígios «documentais», isso deve-se unicamente ao facto de a composição dos círculos que então funcionavam mudar com incrível rapidez, de não haver continuidade, razão por que as divergências não ficavam registadas em qualquer documento.

O aparecimento do Rab. Misl trouxe o «economismo» para a luz do dia, mas não o fez tão-pouco de uma vez. É preciso ter uma ideia concreta das condições de trabalho e da vida efémera de numerosos círculos russos (e só pode ter essa ideia quem o tenha vivido) para compreender quanto teve de fortuito o êxito ou o fracasso da nova tendência nas diferentes cidades, e quão longo foi o tempo em que nem os partidários nem os adversários desta «nova» tendência puderam determinar, nem tiveram literalmente qualquer possibilidade de o fazer, se era realmente uma tendência distinta ou se reflectia simplesmente a falta de preparação de pessoas isoladas. Assim, os primeiros números, policopiados, do Rab. Misl não chegaram às mãos da imensa maioria dos sociais-democratas, e se temos agora a possibilidade de nos referirmos ao editorial do seu primeiro número, isso deve-se unicamente à sua reprodução no artigo de V. I. (Listok «Rabótnika», n.º 9-10, pp. 47 e segs.) que, evidentemente, não deixou de louvar com empenho — um empenho inconsiderado — o novo jornal, que se distinguia tão marcadamente dos jornais e projectos de jornais atrás citados(14). Este editorial exprime com tanto relevo todo o espírito do Rab. Misl e do «economismo» em geral que vale a pena analisá-lo.

Depois de ter indicado que o braço de manga azul(15) não poderia deter o progresso do movimento operário, o editorial prossegue: «... O movimento operário deve esta vitalidade ao facto de que o próprio operário toma, finalmente, o seu destino nas suas próprias mãos, arrancando-o das dos dirigentes»; esta tese fundamental é em seguida desenvolvida de maneira pormenorizada. Na realidade, os dirigentes (isto é, os sociais-democratas, organizadores da «União de Luta») foram arrancados pela polícia, pode dizer-se, das mãos dos operários(16); mas as coisas são apresentadas como se os operários tivessem lutado contra esses dirigentes e se tivessem libertado do seu jugo! Em vez de se exortar a marchar para a frente, a consolidar a organização revolucionária e a alargar a actividade política, incitou-se a voltar para trás, para a luta exclusivamente trade-unionista. Proclamou-se que «a base económica do movimento é obscurecida pela aspiração constante de não esquecer o ideal político», que o lema do movimento operário deve ser «luta pela situação económica»(!) ou, melhor ainda, «os operários para os operários»; declarou-se que as caixas de greve «valem mais para o movimento do que uma centena de outras organizações» (compare-se esta afirmação, em Outubro de 1897, com a discussão entre os «dezembristas» e os «jovens», no início de 1897), etc. Frases como: é preciso colocar em primeiro não a «nata» dos operários, mas o operário «médio», o da massa; ou como: «A política segue sempre docilmente a economia»(17), etc., etc., entraram na moda e adquiriram uma influência irresistível sobre a massa da juventude atraída para o movimento, juventude que na maioria dos casos não conhecia mais do que fragmentos do marxismo na sua exposição legal.

Isto era suprimir por completo a consciência pela espontaneidade, pela espontaneidade dos «sociais-democratas» que repetiam as «ideias» do Sr. V. V.; pela espontaneidade dos operários que se deixavam arrastar pelo argumento de que um aumento de um copeque por rublo valia mais do que todo o socialismo e toda a política, de que deviam «lutar sabendo que o faziam, não para vagas gerações futuras, mas para eles próprios e para os seus próprios filhos» (editorial do n.º 1 do Rabótchaia Misl). Frases deste género foram sempre a arma preferida dos burgueses da Europa ocidental que, no seu ódio ao socialismo, procuravam (como o «social-político» alemão Hirsch) transplantar para os seus países o trade-unionismo inglês, dizendo aos operários que a luta exclusivamente sindical(18) é uma luta para eles próprios e para seus filhos, e não para vagas gerações futuras com um vago socialismo futuro. E agora os «V. V. da social-democracia russa» puseram-se a repetir esta fraseologia burguesa. Importa assinalar aqui três circunstâncias que nos serão de grande utilidade para continuar a análise das divergências actuais(19).

Em primeiro lugar, a supressão da consciência pela espontaneidade, de que falámos, produziu-se também de modo espontâneo. Isto parece um jogo de palavras, mas é infelizmente uma verdade amarga. Esta supressão não resultou de uma luta aberta entre duas concepções diametralmente opostas e da vitória de uma sobre a outra, mas devido a que os gendarmes «arrancavam» um número cada vez maior de «velhos» revolucionários e a que apareciam em cena em número cada vez maior «jovens» «V. V. da social-democracia russa». Quem quer que tenha, não direi já participado no movimento russo contemporâneo, mas simplesmente respirado os seus ares, sabe perfeitamente que a situação é a que acabamos de descrever. E se, apesar disso, insistimos particularmente para que o leitor se dê bem conta deste facto bem conhecido, se para maior evidência, por assim dizer, inserimos dados sobre a Rabótcheie Dielo do primeiro período e sobre as discussões entre os «velhos» e os «jovens» que tiveram lugar no início de 1897, é porque pessoas que gabam a sua «democracia» especulam com a ignorância que disto tem o grande público (ou os muito jovens). Mais adiante voltaremos a insistir neste ponto.

Em segundo lugar, já na primeira manifestação literária do «economismo» podemos observar um fenómeno extraordinariamente original e extremamente característico para a compreensão de todas as divergências entre os sociais-democratas contemporâneos: os partidários do «movimento puramente operário», os adeptos da ligação mais estreita e mais «orgânica» (expressão da Rab. Dielo) com a luta proletária, os adversários de todos os intelectuais não operários (ainda que sejam intelectuais socialistas) vêem-se obrigados, para defender a sua posição, a recorrer aos argumentos dos «trade-unionistas puros» burgueses. Isto mostra-nos que, desde o seu aparecimento, o R. Misl tinha começado — inconscientemente — a realizar o programa do Credo. Isto mostra (o que a Rabótcheie Dielo não pode compreender) que tudo o que seja inclinar-se perante a espontaneidade do movimento operário, tudo o que seja diminuir o papel do «elemento consciente», o papel da social-democracia, significa — independentemente da vontade de quem o faz — fortalecer a influência da ideologia burguesa sobre os operários. Todos aqueles que falam de «sobrestimação da ideologia»(20), de exagero do papel do elemento consciente(21), etc., imaginam que o movimento puramente operário é, por si próprio, capaz de elaborar, e que elaborará, uma ideologia independente desde que os operários «arranquem o seu destino das mãos dos dirigentes». Mas isto é um profundo erro. Para completar o que dissemos mais atrás, citaremos as seguintes palavras profundamente justas e importantes de K. Kautsky a propósito do projecto do novo programa do Partido Social-Democrata Austríaco(22):

«Muitos dos nossos críticos revisionistas entendem ter Marx afirmado que o desenvolvimento económico e a luta de classes, além de criarem condições para a produção socialista, engendram directamente a consciência (sublinhado por K. K.) da sua necessidade. E eis que esses críticos objectam que a Inglaterra, país de maior desenvolvimento capitalista, é mais alheio do que qualquer outro país a esta consciência. A julgar pelo projecto, poder-se-ia crer que esta pretensa concepção marxista ortodoxa, refutada do modo indicado, é também partilhada pela comissão que redigiu o programa austríaco. O projecto afirma: “Quanto mais o proletariado aumenta em consequência do desenvolvimento capitalista, tanto mais se vê obrigado a lutar contra o capitalismo e tanto mais capacitado está para o fazer. O proletariado adquire a consciência” da possibilidade e da necessidade do socialismo. Nesta ordem de ideias, a consciência socialista aparece como resultado necessário e directo da luta de classe do proletariado. Mas isto é completamente falso. Como doutrina, é evidente que o socialismo tem as suas raízes nas relações económicas actuais, exactamente do mesmo modo que a luta de classe do proletariado, e, tal como esta, o socialismo deriva da luta contra a pobreza e a miséria das massas, pobreza e miséria geradas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a luta de classes surgem um ao lado do outro e não derivam um do outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista moderna não pode surgir senão na base de profundos conhecimentos científicos. Com efeito, a ciência económica contemporânea é tanto uma condição da produção socialista como, por exemplo, a técnica moderna, e o proletariado, por mais que o deseje, não pode criar nem uma nem outra; ambas surgem do processo social contemporâneo. Mas o portador da ciência não é o proletariado, mas a intelectualidade burguesa (sublinhado por K. K.): foi do cérebro de alguns membros desta camada que surgiu o socialismo moderno e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais desenvolvidos, os quais por sua vez o introduzem na luta de classe do proletariado onde as condições o permitem. Deste modo, a consciência socialista é algo introduzido de fora (von aussen Hineintragenes) na luta de classe do proletariado e não algo que surgiu espontaneamente (urwüchsig) no seu seio. De acordo com isto, já o velho programa de Heinfeld dizia, com toda a razão, que a tarefa da social-democracia é levar ao proletariado (literalmente: encher o proletariado) a consciência da sua situação e da sua missão. Não haveria necessidade de o fazer se esta consciência derivasse automaticamente da luta de classes. O novo projecto transcreveu esta tese do antigo programa e juntou-a à tese citada mais atrás. Mas isto interrompeu completamente o curso do pensamento...»

Uma vez que nem sequer se pode falar de uma ideologia independente elaborada pelas próprias massas operárias no decurso do seu movimento(23), o problema põe-se unicamente assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio termo (porque a humanidade não elaborou nenhuma «terceira» ideologia: além disso, em geral, na sociedade dilacerada pelas contradições de classe, não pode nunca existir uma ideologia à margem das classes ou acima das classes). Por isso, tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela significa fortalecer a ideologia burguesa. Fala-se de espontaneidade. Mas o desenvolvimento espontâneo do movimento operário marcha precisamente para a sua subordinação à ideologia burguesa, marcha precisamente pelo caminho do programa do «Credo», porque o movimento operário espontâneo é trade-unionismo, é Nur-Gewerkschaftlerei, e o trade-unionismo implica precisamente a escravização ideológica dos operários pela burguesia. Por isso, a nossa tarefa, a tarefa da social-democracia, consiste em combater a espontaneidade, em fazer com que o movimento operário se desvie desta tendência espontânea do trade-unionismo de se acolher debaixo da asa da burguesia e em atraí-lo para debaixo da asa da social-democracia revolucionária. A frase dos autores da carta «economista» publicada no n.º 12 do Iskra, de que nenhum esforço dos ideólogos mais inspirados poderá desviar o movimento operário do caminho determinado pela acção recíproca entre os elementos materiais e o meio material, equivale exactamente, portanto, a renunciar ao socialismo, e se estes autores fossem capazes de meditar no que dizem, de meditar até às últimas consequências, corajosa e logicamente, como é dever de todos os que intervêm na actividade literária e pública, não teriam outro remédio senão «cruzar os seus braços inúteis sobre o peito vazio» e... ceder o campo de acção aos senhores Struve e Prokopóvitch, que arrastam o movimento operário «pela linha da menor resistência», isto é, pela linha do trade-unionismo burguês, ou aos senhores Zubátov, que o arrastam pela linha da «ideologia» clero-policial.

Recorde-se o exemplo da Alemanha. Qual foi o mérito histórico de Lassalle em relação ao movimento operário alemão? Foi ter desviado este movimento do caminho do trade-unionismo progressista e do cooperativismo, para o qual ele se encaminhava espontaneamente (com a ajuda benévola dos Schulze-Delitzsch e consortes). Para cumprir esta tarefa foi necessário algo completamente diferente do palavreado sobre a subestimação do elemento espontâneo, sobre a táctica-processo, sobre a acção recíproca dos elementos e do meio, etc. Para isso foi necessário travar uma luta encarniçada contra a espontaneidade, e foi só depois dessa luta, que durou longos e longos anos, que se conseguiu, por exemplo, que a população de Berlim, de baluarte do partido progressista, se transformasse numa das melhores cidadelas da social-democracia. E esta luta ainda não terminou até agora, longe disso (como poderiam supor os que estudam a história do movimento alemão através de Prokopóvitch, e a sua filosofia através de Struve). Também presentemente a classe operária alemã está dividida, se assim nos podemos exprimir, em várias ideologias: uma parte dos operários está agrupada nos sindicatos operários católicos e monárquicos; outra nos sindicatos de Hirsch-Duncker(24), fundados pelos admiradores burgueses do trade-unionismo inglês; uma terceira nos sindicatos sociais-democratas. Esta última é incomparavelmente maior do que as outras, mas a ideologia social-democrata só pôde conquistar e só poderá conservar esta supremacia através de uma luta incansável contra todas as outras ideologias.

Mas por que razão — perguntará o leitor — o movimento espontâneo, o movimento pela linha da menor resistência, conduz precisamente à supremacia da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga pela sua origem do que a ideologia socialista, de que está mais completamente elaborada e possui meios de difusão incomparavelmente mais numerosos(25). E quanto mais jovem é o movimento socialista num país, tanto mais enérgica deve ser, por isso mesmo, a luta contra todas as tentativas de consolidar a ideologia não socialista, tanto mais resolutamente se deve prevenir os operários contra os maus conselheiros que gritam contra o «exagero do elemento consciente», etc. Os autores da carta «economista», fazendo coro com a Rab. Dielo, arremetem contra a intransigência própria do período infantil do movimento. A isso responderemos: sim, efectivamente, o nosso movimento está ainda na sua infância, e para que atinja mais rapidamente a maturidade deve precisamente imbuir-se de intransigência contra aqueles que, prosternando-se perante a espontaneidade, travam o seu desenvolvimento. Não há nada mais ridículo e mais nocivo do que presumir de velho militante que, há muito, já passou por todas as fases decisivas da luta!

Em terceiro lugar, o primeiro número do Rab. Misl mostra-nos que a denominação de «economismo» (à qual, evidentemente, não temos intenção de renunciar, pois que, de um modo ou de outro, esta designação já está estabelecida) não exprime com suficiente exactidão a essência da nova corrente. O Rab. Misl não repudia completamente a luta política. Nos estatutos das caixas, publicados no seu primeiro número, fala-se de luta contra o governo. O Rabótchaia Misl considera somente que a «política segue sempre docilmente a economia» (enquanto a Rabótcheie Dielo apresenta uma variante desta tese, afirmando no seu programa que «na Rússia, mais que em qualquer outro país, a luta económica está inseparavelmente ligada à luta política»). Estas teses do Rabótchaia Misl e da Rabótcheie Dielo são completamente falsas, se por política se entende a política social-democrata. Muito frequentemente, a luta económica dos operários, como já vimos, está ligada (embora não inseparavelmente) à política burguesa, clerical, etc. As teses da Rab. Dielo são justas se por política entendermos a política trade-unionista, isto é, a aspiração comum a todos os operários a conseguir do Estado estas ou aquelas medidas susceptíveis de remediar os males inerentes à sua situação, mas que ainda não acabam com essa situação, isto é, não acabam com a submissão do trabalho ao capital. Esta aspiração é efectivamente comum tanto aos trade-unionistas ingleses hostis ao socialismo como aos operários católicos, aos operários «de Zubátov», etc. Há política e política. Vemos, pois, que o Rab. Misl, também no que se refere à luta política, mais que repudiá-la, se prosterna perante a sua espontaneidade, a sua falta de consciência. Reconhecendo plenamente a luta política que surge espontaneamente do próprio movimento operário (ou, com mais exactidão: os anseios e as reivindicações políticas dos operários), recusa por completo elaborar independentemente uma política social-democrata específica, que corresponda aos objectivos gerais do socialismo e às actuais condições da Rússia. Mais adiante mostraremos que a Rab. Dielo cai no mesmo erro.

c) O «grupo de auto-emancipação»(26) e a «Rabótcheie Dielo»

Examinámos tão pormenorizadamente o editorial, pouco conhecido e hoje quase esquecido, do primeiro número do Rab. Misl porque exprimiu, antes e com maior relevo do que ninguém, esta corrente geral, que mais tarde viria a aparecer sob a forma de uma infinidade de riachos. V. I. tinha plena razão quando, ao louvar este primeiro número e o editorial do Rab. Misl, disse que tinha sido escrito «com energia e com ardor» (Listok «Rabótnika», n.º 9-10, p. 49). Todo o homem de convicções firmes que pensa que traz algo novo escreve com «ardor» e escreve de maneira a dar relevo ao seu ponto de vista. Somente àqueles que estão habituados a estar sentados entre duas cadeiras falta o «ardor»; só esses são capazes, depois de terem louvado ontem o ardor do Rab. Misl, de atacar hoje o «ardor polémico» dos seus adversários.

Sem nos determos no Suplemento Separado do «Rab. Misl» (mais adiante teremos, por diferentes motivos, de nos referir a esta obra que expõe do modo mais consequente as ideias dos «economistas»), limitar-nos-emos por agora a referir sumariamente o Apelo do Grupo de Auto-Emancipação dos Operários (Março de 1899, reproduzido na Nakanúne(27) de Londres, n.º 7, Julho de 1899). Os autores deste apelo dizem com toda a a razão que «a Rússia operária está apenas a começar a despertar, a olhar à sua volta, e apega-se instintivamente aos primeiros meios de luta que encontra ao seu alcance», mas tiram daqui a mesma conclusão errada que o Rab. Misl., esquecendo que o instintivo é precisamente o inconsciente (o espontâneo), em ajuda do qual devem acorrer os socialistas; que os primeiros meios de luta «que encontram ao seu alcance» serão sempre, na sociedade moderna, os meios de luta trade-unionistas e que a primeira ideologia que encontram ao seu alcance será a ideologia burguesa (trade-unionista). Estes autores tão-pouco «negam» a política, mas, seguindo o senhor V. V., apenas (apenas!) dizem que a política é uma superstrutura e por isso «a agitação política deve ser a superstrutura da agitação a favor da luta económica, deve surgir na base dessa luta e seguir atrás dela».

No que se refere à R. Dielo, começou a sua actividade directamente pela «defesa» dos «economistas». Depois de ter afirmado com, uma falsidade evidente, no seu primeiro número (n.º 1, pp. 141-142), que «ignorava a que camaradas jovens se referia Axelrod» quando este, na sua conhecida brochura(28), fazia uma advertência aos «economistas», a Rab. Dielo teve de reconhecer, na polémica com Axelrod e Plekhánov a propósito daquela falsidade, que «fingindo não saber de quem se tratava, queria defender todos os emigrados sociais-democratas mais jovens daquela acusação injusta» (Axelrod acusava os «economistas» de estreiteza de vistas)(29). Na realidade, esta acusação era completamente justa, e a Rab. Dielo sabia muito bem que se referia, entre outros, a V. I., membro da sua redacção. Farei notar de passagem que, na referida polémica, Axelrod tinha inteira razão e a Rab. Dielo estava inteiramente equivocada na interpretação da minha brochura As Tarefas dos Sociais-Democratas Russos(30). Esta brochura foi escrita em 1897, ainda antes do aparecimento do Rab. Misl, quando eu considerava, com toda a razão, que a tendência inicial da «União de Luta» de São Petersburgo, que já defini mais atrás, era a predominante. Efectivamente, esta tendência foi preponderante pelo menos até meados de 1898. Por isso a Rab. Dielo não tinha o menor direito de invocar, para refutar a existência e o perigo do «economismo», uma brochura que expunha concepções que foram suplantadas, em São Petersburgo em 1897-1898, pelas concepções «economistas»(31).

Mas a R. Dielo não só «defendia» os «economistas», como ela própria caía continuamente nos seus principais erros. Isto devia-se ao modo ambíguo de interpretar a seguinte tese do seu próprio programa: «O movimento operário de massas (sublinhado por R. D.) que surgiu nestes últimos anos constitui, na nossa opinião, um fenómeno da maior importância da vida russa, chamado principalmente a determinar as tarefas (sublinhado por mim) e o carácter da actividade literária da União.» Não há dúvida de que o movimento de massas é um fenómeno da maior importância. Mas a questão está em saber como interpretar a «determinação das tarefas» por este movimento de massas. Pode ser interpretada de duas maneiras: ou no sentido do culto da espontaneidade deste movimento, isto é, reduzindo o papel da social-democracia ao de simples servidor do movimento operário como tal (assim o entendem o Rab. Misl, o «Grupo de Auto-Emancipação» e os outros «economistas»), ou no sentido de que o movimento de massas nos coloca novas tarefas teóricas, políticas e de organização, muito mais complexas do que aquelas com que nos podíamos contentar no período antes do aparecimento do movimento de massas. A Rab. Dielo sempre tendeu, e tende, para a primeira interpretação porque nunca disse nada de concreto acerca das novas tarefas e sempre raciocinou como se o «movimento de massas» nos eximisse da necessidade de conceber com clareza e de cumprir as tarefas que ele impõe. Bastará recordar que a R. Dielo considerava impossível colocar ao movimento operário de massas como primeira tarefa o derrubamento da autocracia, rebaixando esta tarefa (em nome do movimento de massas) ao nível da luta por reivindicações políticas imediatas (Resposta, p. 25).

Deixando de lado o artigo de B. Kritchévski, director da Rab. Dielo, «A Luta Económica e Política no Movimento Russo», publicado no n.º 7, artigo em que repete esses mesmos erros(32), passemos directamente ao n.º 10 da Rab. Dielo. É claro que não nos deteremos a analisar as objecções isoladas de B. Kritchévski e de Martínov contra a Zariá e o Iskra. A única coisa que aqui nos interessa é a posição de princípio adoptada pela Rab. Dielo no seu n.º 10. Não nos deteremos, por exemplo, a analisar o caso curioso de a Rab. Dielo ver uma «contradição flagrante» entre a tese:

«A social-democracia não se ata as mãos, não limita a sua actividade a um qualquer plano preconcebido ou a um processo de luta política preestabelecido, antes admite como bons todos os meios de luta que correspondam às forças de que o partido dispõe», etc. (Iskra, n.º 1)(33)

e a tese:

«Se não existe uma organização forte, experiente em travar a luta política em qualquer circunstância e em qualquer período, não se pode sequer falar de um plano de actividade sistemático, baseado em princípios firmes e aplicado rigorosamente, único plano que merece o nome de táctica» (Iskra, n.º 4)(34).

Confundir a admissão em princípio de todos os meios de luta, de todos os planos e processos, desde que sejam convenientes, com a exigência de nos guiarmos num momento político determinado por um plano rigorosamente aplicado, quando se quer falar de táctica, equivale a confundir o facto de a medicina reconhecer todos os sistemas de tratamento com a exigência de ter de seguir um sistema determinado no tratamento de uma dada doença. Mas do que se trata é de que a própria Rab. Dielo, que sofre da doença a que chamámos culto da espontaneidade, não quer reconhecer nenhum «sistema de tratamento» para curar esta doença. Por isso, fez a descoberta notável de que «a táctica-plano está em contradição com o espírito fundamental do marxismo» (n.º 10, p. 118), que a táctica é «um processo de crescimento das tarefas do partido, que crescem ao mesmo tempo que o partido» (p. 11, sublinhado pela R. D.). Esta última sentença tem todas as probabilidades de se tornar célebre, um monumento indestrutível à «tendência» da Rab. Dielo. À pergunta: «Para onde ir?», este órgão dirigente responde: O movimento é um processo de mudança de distância entre o ponto de partida e os pontos seguintes do movimento. Este pensamento, de uma incomparável profundidade, não é somente curioso (só por isso não valeria a pena determo-nos a analisá-lo), mas representa, além disso, o programa de toda uma tendência, isto é, o mesmo programa que R. M. (no Suplemento Separado do «R. Misl») exprimiu nestes termos: é desejável a luta que é possível e é possível a que se trava neste minuto. É esta precisamente a tendência do oportunismo ilimitado, que se adapta passivamente à espontaneidade.

«A táctica-plano está em contradição com o espírito fundamental do marxismo!» Mas isto é caluniar o marxismo, é convertê-lo numa caricatura análoga à que os populistas nos opunham, na sua guerra contra nós. Isto é justamente rebaixar a iniciativa e a energia dos que actuam conscientemente enquanto o marxismo, pelo contrário, dá um impulso gigantesco à iniciativa e à energia dos sociais-democratas, abrindo-lhes as mais amplas perspectivas, pondo (se assim nos podemos exprimir) à sua disposição as poderosas forças de milhões e milhões de operários que se levantam «espontaneamente» para a luta! Toda a história da social-democracia internacional está cheia de planos, formulados por este ou aquele chefe político, planos que mostram a clarividência e a justeza das concepções políticas e de organização de uns ou revelam a miopia e os erros políticos de outros. Quando a Alemanha viveu uma das maiores viragens históricas — formação do Império, abertura do Reichstag, concessão do sufrágio universal — Liebknecht tinha um plano da política e da acção social-democrata em geral e Schweitzer tinha outro. Quando a lei de excepção se abateu sobre os socialistas alemães, Most e Hasselmann, dispostos a exortar pura e simplesmente à violência e ao terror, tinham um plano, outro tinham Höchberg, Schramm e (em parte) Bernstein, que se puseram a pregar aos sociais-democratas, dizendo-lhes que com a sua insensata violência e o seu revolucionarismo tinham provocado essa lei, e que deviam agora obter o perdão através de uma conduta exemplar; existia, ainda, um terceiro plano, o daqueles que vinham preparando, e levaram a cabo, a publicação de um órgão ilegal(35). Quando se lança um olhar retrospectivo, muitos anos depois de ter terminado a luta pela escolha de um caminho e depois de a história ter pronunciado o seu veredicto sobre a conveniência do caminho escolhido, não é difícil, claro, manifestar profundidade de pensamento, declarando sentenciosamente que as tarefas do partido crescem ao mesmo tempo que este. Mas, num momento de confusão(36), quando os «críticos» e «economistas» russos rebaixam a social-democracia ao nível do trade-unionismo e os terroristas preconizam com ardor a adopção de uma «táctica-plano» que repete os antigos erros, limitar-se, num momento desses, a pensamentos profundos deste tipo é passar a si próprio um «certificado de indigência». Num momento em que a muitos sociais-democratas russos faltam, precisamente, iniciativa e energia, falta «amplitude na propaganda, na agitação e na organização políticas»(37), faltam «planos» para urna organização mais ampla do trabalho revolucionário, num momento desses, dizer que «a táctica-plano está em contradição com o espírito fundamental do marxismo», é não só aviltar teoricamente o marxismo mas, na prática, arrastar o partido para trás.

«O social-democrata revolucionário tem como tarefa — ensina-nos mais à frente a R. Dielo — unicamente acelerar com o seu trabalho consciente o desenvolvimento objectivo e não suprimi-lo ou substituí-lo por planos subjectivos. O Iskra, em teoria, sabe tudo isto. Mas a enorme importância que o marxismo atribui, com razão, ao trabalho revolucionário consciente, leva-o, na prática, em consequência da sua concepção doutrinária da táctica, a minimizar a importância do elemento objectivo ou espontâneo do desenvolvimento» (p. 18).

Eis-nos, novamente, perante uma confusão teórica extraordinária, digna do senhor V. V. e confrades. Gostaríamos de perguntar ao nosso filósofo: em que se pode traduzir a «minimização» do desenvolvimento objectivo por parte do autor de planos subjectivos? Pelos vistos, em perder de vista que este desenvolvimento objectivo cria ou consolida, destrói ou enfraquece estas ou aquelas classes, camadas, grupos, estas ou aquelas nações, grupos de nações, etc., determinando assim um ou outro agrupamento político internacional de forças, uma ou outra posição dos partidos revolucionários, etc. Mas o erro de tal autor não consistirá então em minimizar o elemento espontâneo, mas em minimizar, pelo contrário, o elemento consciente, uma vez que o que lhe faltará será a «consciência» necessária para uma justa compreensão do desenvolvimento objectivo. Por isso, só o simples facto de falar de «apreciação da importância relativa» (sublinhado pela Rabótcheie Dielo) do espontâneo e do consciente revela uma total falta de «consciência». Se alguns «elementos espontâneos do desenvolvimento» são, em geral, acessíveis à consciência humana, a apreciação errada destes elementos equivalerá a «minimizar o elemento consciente». E se são inacessíveis à consciência, não os conhecemos e não podemos falar deles. De que fala então B. Kritchévski? Se ele considera errados os «planos subjectivos» do Iskra (e ele declara-os de facto errados), deveria mostrar, precisamente, quais os factos objectivos que não são tidos em conta por esses planos, e acusar o Iskra por esta razão de falta de consciência, «de minimizar o elemento consciente», para usar a sua linguagem. Mas se ele, descontente com os planos subjectivos, não tem outro argumento que não seja invocar a «minimização do elemento espontâneo» (!!), a única coisa que demonstra com isso é que: 1) em teoria, compreende o marxismo à la Karéiev e Mikháilovski, suficientemente ridicularizados por Béltov; 2) na prática, dá-se inteiramente por satisfeito com os «elementos espontâneos de desenvolvimento» que arrastaram os nossos marxistas legais para o bernsteinianismo e os nossos sociais-democratas para o «economismo», e mostra uma «grande indignação» contra aqueles que decidiram desviar, a todo o custo, a social-democracia russa do caminho do desenvolvimento «espontâneo».

E mais adiante aparecem coisas verdadeiramente divertidas. «Da mesma maneira que os homens, apesar de todos os progressos das ciências naturais, continuarão a multiplicar-se por processos ancestrais, também o nascimento de uma nova ordem social, apesar de todos os progressos das ciências sociais e do aumento do número dos combatentes conscientes, será também no futuro o resultado, preeminentemente, de explosões espontâneas» (p. 19). Da mesma maneira que a velha sabedoria diz: A quem faltará inteligência para ter filhos? — também a sabedoria dos «modernos socialistas» (à la Nartsisse Tuporílov)(38) diz: para participar no nascimento espontâneo de um novo sistema social a ninguém faltará inteligência. Também nós pensamos que a ninguém faltará inteligência para isso. Para participar desta maneira basta deixar-se arrastar pelo «economismo» quando reina o «economismo», e pelo terrorismo quando surge o terrorismo. Assim, na Primavera deste ano, quando era tão importante prevenir contra a atracção pelo terrorismo, a R. Dielo estava perplexa perante esta questão, «nova» para ela. E, seis meses mais tarde, quando a questão tinha perdido a actualidade, apresenta-nos ao mesmo tempo a declaração seguinte: «Pensamos que a tarefa da social-democracia não pode nem deve consistir em opor-se ao ascenso das tendências terroristas» (R.D., n.º10, p. 23), e a resolução do congresso: «O congresso reconhece como inopor-tuno o terror agressivo sistemático» (Dois Congressos, p. 18). Que clareza e coerência tão notáveis!

Não nos opomos, mas declaramos inoportuno, e declaramo-lo de tal maneira que o terror não sistemático e defensivo não está incluído na «resolução». Há que reconhecer que tal resolução não corre qualquer perigo e fica garantida contra todos os erros, tal como aquele que fala para nada dizer! E para redigir tal resolução, nada mais é necessário do que isto: saber seguir atrás do movimento, mantendo-se na cauda. Quando o Iskra ridicularizou a Rab. Dielo por esta ter declarado que a questão do terror era uma questão nova(39), a R. Dielo acusou severamente o Iskra «de ter a pretensão verdadeiramente incrível de impor à organização do partido a solução de problemas tácticos apresentada há mais de quinze anos por um grupo de escritores emigrados» (p. 24). Com efeito, que pretensão e que exagero do elemento consciente: resolver de antemão os problemas, em teoria, para depois convencer, tanto a organização como o partido e as massas, da justeza dessa solução(40)! Outra coisa é repetir lugares-comuns e, sem «impor» nada a ninguém, submeter-se a cada «viragem», seja para o «economismo» seja para o terrorismo. A Rab. Dielo chega, inclusivamente, a generalizar este grande preceito da sabedoria humana, acusando o Iskra e a Zariá de «opor ao movimento o seu programa, como um espírito planando sobre o caos informe» (p. 29). Mas qual é o papel da social-democracia, senão o de ser o «espírito» que não só plana sobre o movimento espontâneo, mas eleva este último ao nível do «seu programa»? Não é, com certeza, o de se arrastar na cauda do movimento, coisa inútil no melhor dos casos, e, no pior, extremamente nociva para o movimento. Mas a Rabótcheie Dielo não só segue esta «táctica-processo», como até a erige em princípio, pelo que seria mais correcto chamar a esta tendência caudismo (da palavra cauda) em vez de oportunismo. É forçoso reconhecer que aqueles que estão firmemente decididos a seguir na cauda do movimento estão garantidos, absolutamente e para sempre, contra o erro de «minimizar o elemento espontâneo de desenvolvimento».

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Assim, persuadimo-nos de que o erro fundamental da «nova tendência» da social-democracia russa é o de ajoelhar-se perante a espontaneidade, o de não compreender que a espontaneidade das massas exige de nós, sociais-democratas, uma elevada consciência. Quanto mais poderoso for o ascenso espontâneo das massas, quanto mais amplo se tornar o movimento, tanto maior, incomparavelmente maior, será a rapidez com que aumenta a necessidade de uma elevada consciência, quer no trabalho teórico quer no político e no de organização da social-democracia.

O ascenso espontâneo das massas na Rússia foi (e continua a ser) tão rápido que a juventude social-democrata acabou por se revelar pouco preparada para cumprir estas tarefas gigantescas. Esta falta de preparação é a nossa infelicidade comum, a infelicidade de todos os sociais-democratas russos. O ascenso das massas realizou-se e estendeu-se de forma ininterrupta e contínua, e não só não cessou onde tinha começado, como ainda se propagou a novas localidades e a novas camadas da população (sob a influência do movimento operário, reanimou-se a efervescência entre a juventude estudantil, entre os intelectuais em geral e mesmo entre os camponeses). E os revolucionários atrasaram-se em relação a este ascenso tanto nas suas «teorias» como na sua actividade, não conseguiram criar uma organização permanente, que funcionasse sem solução de continuidade, capaz de dirigir todo o movimento.

No primeiro capítulo verificámos que a Rab. Dielo rebaixa as nossas tarefas teóricas e repete «espontaneamente» o grito na moda: «liberdade de crítica»; os que o repetem não tiveram a «consciência» suficiente para compreender que as posições dos «críticos» oportunistas e dos revolucionários são diametralmente opostas na Alemanha e na Rússia.

Nos capítulos seguintes analisaremos como é que o culto da espontaneidade se manifestou no campo das tarefas políticas, bem como no trabalho de organização da social-democracia.