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Primeira edição: Escrito em fins de 1899. Publicado pela primeira vez em 1924 V. I. Lênin, Obras, 4ª ed. em russo, t. 4, págs. 207/233
Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs. 28-50
Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz
HTML: Fernando Araújo.
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Creio que seria conveniente começar examinando a questão de saber se, de fato, é imperiosa a necessidade de um programa para os social-democratas russos. Ouvimos os camaradas que atuam na Rússia expressarem a opinião de que agora não existe uma necessidade especial de redigir um programa; de que o que é necessário atualmente é desenvolver e fortalecer as organizações locais, melhorar o trabalho de agitação e de remessa de materiais; de que seria conveniente adiar a elaboração do programa para quando o movimento tivesse uma base mais firme; de que nos momentos atuais o programa poderia carecer de base.
Não compartilhamos dessa opinião. É indubitável que, como disse Marx, «cada passo de movimento real vale mais do que uma dúzia de programas», mas nem Marx nem qualquer outro dirigente teórico ou prático da social-democracia negou a enorme importância que tem um programa para a atividade firme e consequente de um partido político. Os social-democratas russos já deixaram para trás o período de máximo aguçamento na polêmica com os socialistas de outras tendências e com os não socialistas, que não queriam compreender a social-democracia russa; também já deixaram para trás as fases iniciais do movimento, quando o trabalho era levado a cabo, de forma dispersa, por pequenas organizações locais. A própria vida nos impõe a necessidade de agrupar nossas forças literárias, de formar uma literatura política comum, de publicar jornais operários russos. A fundação, na primavera de 1898, do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, que afirmou sua intenção de proceder, num futuro imediato, à elaboração de um programa do Partido, veio demonstrar claramente que a necessidade de um programa emana precisamente das exigências do próprio movimento. Hoje o problema mais agudo de nosso movimento já não é o desenvolvimento do antigo e disperso trabalho «à maneira artesã», mas sim a união, a organização. Para se dar esse passo é preciso um programa, que deve expressar nossos conceitos fundamentais, fixar com exatidão nossas tarefas políticas imediatas, assinalar as reivindicações mais próximas, que são as que devem determinar o conteúdo de nosso trabalho de agitação, dar-lhe unidade, torná- -la mais ampla e mais profunda e convertê-la, de agitação parcial e fragmentária em favor de pequenas reivindicações desligadas umas das outras, numa agitação pelo conjunto de todas as reivindicações social-democratas. Hoje em dia, quando a atividade social-democrata ativou um círculo bastante amplo de intelectuais socialistas e de operários conscientes, adquire um caráter imperioso a necessidade de fortalecer com um programa a união entre eles e de dar assim a todos uma sólida base que lhes permita desenvolver uma atividade mais ampla. Finalmente, outra razão pela qual a necessidade de um programa adquire um caráter imperioso é que, frequentemente, a opinião pública russa se engana profundamente no que diz respeito aos verdadeiros objetivos e modos de atuar dos social-democratas russos. Uma parte destes enganos surge de uma forma natural no pântano da estagnação política da vida de nosso país, e outra é engendrada artificialmente pelos inimigos da social-democracia. Em todo caso, trata-se de um fato que deve ser levado em conta. O movimento operário, fundindo-se com o socialismo e a luta política, deve constituir um partido, que terá que dissipar todos esses enganos se quer colocar-se à frente de todos os elementos democráticos da sociedade russa. Poder-se-ia objetar que o momento presente não é adequado para a elaboração de um programa porque, além disso, entre os próprios social-democratas surgem divergências e se iniciam discussões polêmicas. Parece-me que isto, pelo contrário, é mais um argumento em favor da necessidade de um programa. Por um lado, e uma vez que se iniciou a polêmica, é de se esperar que ao se discutir o projeto de programa se expressem todas as opiniões com todos os seus matizes, é de se esperar que a discussão do programa seja cabal e completa. A polêmica indica que nas fileiras da social-democracia russa são discutidos com mais animação do que antes grandes problemas relacionados com os objetivos de nosso movimento, com suas tarefas imediatas e sua tática, e essa reanimação é precisamente o que se necessita para a discussão do projeto de programa. Por outro lado, para que a polêmica não seja estéril, para que não degenere em lutas pessoais, para que não conduza a uma confusão de conceitos e não nos faça tomar por camaradas os inimigos e vice-versa, para tudo isso é preciso que a questão do programa figure nossa polêmica. A polêmica só pode ser útil no caso de esclarecer o verdadeiro conteúdo das divergências, de mostrar sua profundidade, de revelar se se trata de divergências que atingem problemas de princípio ou questões de detalhe, de esclarecer se essas divergências são ou não um obstáculo para trabalhar juntos no seio de um mesmo partido. Só poderemos obter a resposta que todas estas questões exigem com tanta premência caso o problema do programa figure na polêmica, caso as duas partes polemizantes exponham concretamente suas opiniões programáticas. Como é natural, a elaboração de um programa geral do Partido não deve pôr fim, de modo algum, a toda polêmica, mas é preciso deixar bem determinadas as ideias fundamentais acerca do caráter, dos objetivos e das tarefas de nosso movimento, ideias que deverão servir de bandeira ao Partido na luta, unido e coeso em que pese às divergências particulares que surjam entre seus membros em torno de questões de detalhe.
Dito isto, comecemos.
Quando se fala do programa dos social-democratas russos, a atenção de todos se volta, como é natural, para os membros do grupo Emancipação do Trabalho(1) que foram os fundadores da social-democracia russa e que tanto fizeram para o seu desenvolvimento teórico e prático. Nossos velhos camaradas responderam imediatamente às exigências do movimento social-democrata russo. Na primavera de 1898, quase ao mesmo tempo em que eram feitos os preparativos para a realização do congresso dos social-democratas russos, o qual fundaria o Partido Operário Social-Democrata da Rússia, P. Axelrod publicou seu folheto A Propósito das Tarefas Atuais dos Social-Democratas Russos (Genebra, 1898; o prefácio data de março de 1898); e transcrevo na qualidade de apêndice desse folheto o Projeto de Programa dos Social-Democratas Russos, editado já em 1885 pelo grupo Emancipação do Trabalho.
Começaremos, pois, examinando este projeto. Apesar de ter sido editado há quase 15 anos, cumpre, a nosso ver, muito satisfatoriamente, em traços gerais, seu objetivo e se acha à altura da teoria social-democrata moderna. O projeto assinala com exatidão que a classe operária, o «proletariado industrial», é a única classe capaz de desempenhar na Rússia (como nos demais países) o papel de lutador independente pelo socialismo; nele se indica qual é o objetivo que esta classe deve perseguir: «a revolução comunista» — «a conversão em propriedade social de todos os meios e objetos de produção», a «supressão da produção mercantil» e «sua substituição por um novo sistema de produção social»; indica-se «a conquista do poder político pela ciasse operária» como «condição prévia e imprescindível» «da reorganização das relações sociais»; indica-se a solidariedade internacional do proletariado e a necessidade de que «nos programas dos social-democratas dos diferentes países se estabeleçam diferenças, de acordo com as condições sociais de cada um deles»; indicam-se as peculiaridades da Rússia, «onde as massas trabalhadoras se acham submetidas ao duplo jugo do capitalismo em desenvolvimento e da agonizante economia patriarcal»; indica-se a relação existente entre o movimento operário russo e o processo de criação (pelo capitalismo em desenvolvimento) da «nova classe do proletariado industrial, dotada de maior capacidade de assimilação, com mais liberdade de movimento e mais culta»; indica-se a necessidade de construir «um partido operário revolucionário» e de que «a primeira tarefa política» deste partido seja «a derrota do absolutismo»; indicam-se, também, «os meios com que se deverá levar a cabo a luta política» e expõem-se as reivindicações fundamentais desta luta.
Todos estes elementos do programa são, a nosso ver, absolutamente necessários no programa do Partido Operário Social-Democrata, pois todos eles expõem teses que, desde então, têm sido confirmadas uma vez ou outra tanto pelo desenvolvimento da teoria socialista como pelo desenvolvimento do movimento operário em todos os países, e, em particular, pelo desenvolvimento do pensamento social e do movimento operário na Rússia. Por esta razão, os social-democratas russos podem e devem, no nosso entender, tomar como base do programa do Partido Operário Social-Democrata Russo o projeto do grupo Emancipação do Trabalho, no qual basta introduzir algumas modificações, emendas e adições de caráter particular.
Procuraremos indicar as modificações de caráter particular que entendemos devam ser introduzidas e em torno das quais seria conveniente estabelecer um intercâmbio de opiniões entre todos os social-democratas russos e os operários conscientes.
Antes de tudo, como é natural, deve-se modificar algo da estrutura do programa. O programa de 1885 era um programa de revolucionários residentes no estrangeiro, que souberam indicar com acerto o único caminho que o movimento podia seguir para dar resultados frutíferos, mas que naquela época ainda não viam na Rússia um movimento operário mais ou menos amplo e independente. Em 1900, trata-se já de um programa para um partido operário fundado por numerosas organizações social-democratas russas. A parte das modificações que, por este motivo, devem ser introduzidas (e sobre as quais não vale a pena estender-se, pois são evidentes por si mesmas), a diferença assinalada impõe a necessidade de destacar em primeiro lugar e sublinhar com mais intensidade o processo de desenvolvimento econômico que cria as condições materiais e espirituais do movimento operário social-democrata, assim como a luta de classe do proletariado, cuja organização constitui a tarefa que o Partido Social-Democrata se colocou. A explicação dos traços fundamentais e do desenvolvimento do regime econômico que existe atualmente na Rússia deveria encabeçar o programa (veja-se o programa do grupo Emancipação do Trabalho: «Desde a abolição do regime de servidão, o capitalismo obteve enormes êxitos na Rússia. O velho sistema da economia natural vai cedendo lugar à produção mercantil»...). Em seguida, dever-se-ia esboçar a tendência fundamental do capitalismo: a cisão do povo e sua divisão em burguesia e proletariado, «o incremento da miséria, da opressão, da submissão, das humilhações e da exploração». Estas célebres palavras de Marx estão transcritas no segundo parágrafo do programa de Erfurt do Partido Social-Democrata Alemão, e é precisamente este ponto que é atacado com ímpeto especial nestes últimos tempos pelos críticos que se agrupam em torno de Bernstein, repetindo as velhas objeções dos liberais burgueses e dos políticos sociais da «teoria da depauperação». Na nossa opinião, a polêmica desenvolvida em torno desta questão demonstrou plenamente a total inconsistência de semelhante «crítica». O próprio Bernstein reconheceu a justeza destas palavras de Marx como definidoras da tendência do capitalismo, tendência que se converte em realidade quando o proletariado desenvolve contra ela sua luta de classes, quando o proletariado não conquistou as leis que protejam os operários. É é precisamente na Rússia onde vemos atualmente como se manifesta com força colossal, descarregando seus efeitos sobre os camponeses e operários. Kautsky demonstrou depois que as palavras sobre «o incremento da miséria, etc.», não só são certas para definir a tendência, como, também, para indicar o aumento da «miséria social», isto é, o aumento da falta de correspondência entre a situação do proletariado e o nível de vida da burguesia, o nível das exigências sociais, que vão crescendo à medida que cresce de forma gigantesca a produtividade do trabalho. Finalmente, estas palavras também são certas porque, «nas zonas limítrofes» do capitalismo (quer dizer, nos países e nos ramos da economia nacional onde o capitalismo começa a surgir e tropeça com uma ordem de coisas pré-capitalista), o incremento da miséria adquire proporções maciças, com a particularidade de que não se trata somente da miséria «social», mas sim da mais terrível miséria física, chegando inclusive à fome e à morte por inanição. Todo o mundo sabe que isto pode ser aplicado à Rússia com muito mais razão do que a qualquer outro país da Europa. Assim, pois, as palavras «incremento da miséria, da opressão, da submissão, das humilhações e da exploração» devem, a meu ver, figurar sem falta no programa; em primeiro lugar, porque definem com todo acerto os traços fundamentais e essenciais do capitalismo e assinalam esse processo que se desenvolve ante nós e que é uma das causas principais do surgimento do movimento operário e do socialismo na Rússia; em segundo lugar, porque estas palavras fornecem um material extremamente abundante para a agitação, porquanto resume uma série de fenômenos que são os que mais oprimem e, ao mesmo tempo, os que mais indignam as massas operárias (o desemprego, os baixos salários, a indigência, a fome, a disciplina draconiana do capital, a prostituição, o aumento de criados domésticos, etc.); em terceiro lugar, porque com esta exposição exata do funesto efeito do capitalismo e da necessidade, da inevitabilidade da indignação operária, estabelecemos uma linha divisória entre nós e essas pessoas que nadam entre duas águas e que, «simpatizando» com o proletariado e exigindo «reformas» que o beneficiem, procuram manter-se no «meio termo» entre o proletariado e a burguesia, entre o governo absolutista e os revolucionários. É tal linha divisória entre nós e essa gente é particularmente necessária agora, se é que queremos criar um partido operário unido e coeso, que lute firme e resolutamente pela liberdade política e pelo socialismo.
Aqui é preciso que digamos algumas palavras acerca de nossa atitude ante o programa de Erfurt. Pelo que foi dito acima, qualquer um pode ver que as emendas que consideramos necessário introduzir no projeto do grupo Emancipação do Trabalho são as que contribuem para aproximar o programa dos social-democratas russos ao dos alemães. Não nos assusta de modo algum dizermos que queremos imitar o programa de Erfurt. Não pode haver nenhum inconveniente em imitar o bom, e, hoje em dia. quando tão frequentemente' c:e ouve críticas oportunistas e indecisas a este programa, consideramos um dever nosso nos pronunciarmos abertamente em seu favor. Mas, a imitação não pode converter-se de maneira alguma em simples cópia. A imitação é inteiramente legítima, porquanto na Rússia também observamos os mesmos processos fundamentais no desenvolvimento do capitalismo, as mesmas tarefas fundamentais dos socialistas e da classe operária, ainda que isto não nos deva fazer esquecer de modo algum as particularidades da Rússia, que devem estar plenamente refletidas nas particularidades de nosso programa. Antecipando-nos na exposição, diremos, desde logo, que estas particularidades se referem, em primeiro lugar, a nossas tarefas políticas e a nossos meios de luta, e, em segundo lugar, à luta contra todos os resíduos do regime patriarcal, do regime pré-capitalista e à formulação particular do problema camponês, imposta por esta luta.
Uma vez feita esta advertência necessária, prossigamos. A indicação acerca do «incremento da miséria» deve ser seguida de uma definição da luta de classes do proletariado, indicando-se em seguida os objetivos dessa luta (conversão de todos os meios de produção em propriedade social e a substituição da produção capitalista pela produção socialista), o caráter internacional do movimento operário, o caráter político da luta de classes e os objetivos imediatos desta (a conquista da liberdade política). É de especial importância reconhecer que a luta contra o absolutismo, pela conquista das liberdades políticas, é a primeira tarefa política do partido operário, mas para explicar esta tarefa é preciso, a nosso ver, esclarecer o caráter de classe do absolutismo russo de nossos dias e mostrar a necessidade de derrotá-lo, não só em benefício da classe operária, mas também em benefício de todo o desenvolvimento social. Isto é necessário, além disso, por considerações de tipo teórico, pois, do ponto-de-vista das ideias fundamentais do marxismo, os interesses do desenvolvimento social estão acima dos interesses da classe operária, os interesses de todo o movimento operário em seu conjunto estão acima dos interesses de tal ou qual camada de operários ou de tal ou qual aspecto do movimento; e também é necessário por considerações de tipo prático, para indicar o ponto central para o qual deve convergir e em torno do qual deve agrupar-se toda a atividade multiforme da social-democracia, que consiste num trabalho de propaganda, de agitação e de organização. Parece-nos que, além disso, seria conveniente que num parágrafo especial do programa se indicasse que o Partido Operário Social-Democrata se coloca a tarefa de apoiar qualquer movimento revolucionário dirigido contra o absolutismo e de lutar contra todas as tentativas do governo autocrático de corromper e ofuscar a consciência política do povo mediante tutelas burocráticas e falsas dádivas, mediante essa política demagógica à qual nossos camaradas deram o nome de Peitsche und Zuckerbrot (política do chicote e do pastel). O pastel são as dádivas concedidas àqueles que, por obter algumas melhoras parciais em sua situação material, renunciam a suas reivindicações políticas e continuam sendo escravos submissos da arbitrariedade policial (residências, etc. para os estudantes; e para os operários, bastará recordar as declarações de Witte, o ministro da Fazenda, durante as greves de 1896 e 1897 em São Petersburgo, ou os discursos em defesa dos operários pronunciados pelos funcionários do Ministério do Interior na comissão encarregada de redigir a lei de 2 de junho de 1897).(2) O chicote são as cruéis perseguições contra aqueles que, a despeito dessas dádivas, continuam lutando pela liberdade política (o envio de estudantes para o exército, a circular de 12 de agosto de 1897 sobre o desterro de operários para a Sibéria, a intensificação das perseguições contra a social-democracia, etc.). O pastel, para atrair os fracos, para suborná-los e corrompê-los; o chicote, para intimidar e tornar «inofensivos» os que lutam honrada e conscientemente pela causa dos operários e pela causa do povo. Enquanto existir o absolutismo (e agora temos de trazer à tona nosso programa com a existência do absolutismo, pois sua queda provocará inevitavelmente mudanças tão grandes nas condições políticas, que o partido operário se verá obrigado a modificar essencialmente a formulação de seus objetivos políticos imediatos), enquanto existir o absolutismo, repito, devemos esperar a constante renovação e intensificação destas medidas demagógicas do governo, e, portanto, devemos lutar sistematicamente contra elas, denunciando a falácia dos defensores policiais do povo, mostrando a relação existente entre as reformas do governo e a luta dos operários, ensinando o proletariado a utilizar qualquer reforma para fortalecer suas posições de combate, para ampliar e aprofundar o movimento operário. A necessidade de indicar no programa que se deve apoiar todos os que lutam contra o absolutismo, vem de que a social-democracia russa, indissoluvelmente ligada aos elementos avançados da classe operária russa, tem que hastear uma bandeira democrática geral, para agrupar em torno de si todas as camadas e todos os elementos capazes de lutar pela liberdade política ou de apoiar, pelo menos, essa luta por qualquer meio.
Essas são, a nosso ver, as exigências a que deve responder a exposição de princípios de nosso programa, e as teses fundamentais que devem estar expressas nela com a maior precisão e o máximo de relevo. Cremos que do projeto de programa do grupo Emancipação do Trabalho (da exposição de princípios) devem ser suprimidos:
É bem verdade que neste último ponto nada vemos que possa ser considerado antiquado ou errôneo; pelo contrário, consideramos que os meios de luta devem ser precisamente os que o grupo Emancipação do Trabalho indica (agitação, organização revolucionária e passagem, «no momento oportuno», à ofensiva, resoluta, que, em princípio, não deverá renunciar tampouco ao emprego do terror), mas achamos que no programa de um partido operário não cabe indicar os meios de luta, que deviam figurar, em 1885, no programa de um grupo de revolucionários residentes no estrangeiro. O programa deve deixar aberta a questão dos meios, deixando sua escolha a critério das organizações que lutam e dos congressos do Partido, que são os que fixam sua tática. É muito duvidoso que as questões táticas possam figurar no programa (exceto as mais essenciais e as que tenham importância de princípio, como a da atitude ante os demais grupos que lutam contra o absolutismo). Os problemas táticos, à medida que forem surgindo, serão discutidos no jornal do Partido e resolvidos definitivamente nos Congressos. Entre estes problemas, figura também, a nosso ver. o do terror. Os social-democratas devem necessariamente pôr em discussão este problema (não a partir do ponto-de-vista dos princípios, é claro, mas sim no aspecto tático), pois o próprio desenvolvimento do movimento, de um modo espontâneo, faz com que sejam cada vez mais frequentes os atentados contra os espiões e mais intensa a violenta indignação dos operários e dos socialistas, que vêem como um número cada vez maior de camaradas seus morre nos calabouços e nos lugares de desterro, vítimas das torturas. Para evitar equívocos, diremos desde já que, a nosso ver, nos momentos atuais o terror é um meio de luta fora de propósito que o Partido (enquanto partido) deve rechaçar (enquanto não se produzir uma mudança na situação que exija uma mudança de tática) e concentrar todos os seus esforços no fortalecimento da organização e na distribuição sistemática de materiais políticos. Não é este o local para tratar o problema com maiores detalhes.
No que diz respeito ao problema da legislação direta pelo povo, acreditamos que, no momento, não deve ser incluída no programa. No terreno dos princípios, não se pode ligar a vitória do socialismo à substituição do parlamentarismo pela legislação direta pelo povo. Na nossa opinião, isto já foi demonstrado pelos debates em torno do programa de Erfurt e do livro de Kautsky dedicado à legislação pelo povo. Kautsky diz (baseando-se numa análise histórica e política) que a legislação pelo povo pode trazer certos benefícios nas seguintes condições:
As condições que vemos na Rússia são diametralmente opostas, e o perigo de que a «legislação pelo povo» degenerasse em um «plebiscito» imperialista seria muito grande em nosso país. Se, referindo-se à Alemanha e à Áustria, Kautsky pôde dizer em 1893 que «para nós, os europeus orientais, a legislação direta pelo povo pertence ao ‘Estado do futuro’», com maior razão ainda se pode dizer o mesmo no que concerne à Rússia.
Por isso, acreditamos que neste momento, quando na Rússia domina a autocracia, devemos limitar-nos a exigir uma «Constituição democrática» e preferir os dois primeiros pontos da parte prática do programa do grupo Emancipação do Trabalho aos dos primeiros pontos da parte prática do Programa de Erfurt.
Passemos à parte prática do programa. Se não pela forma da exposição, por seu conteúdo esta parte se divide, a nosso ver, em três capítulos:
Não creio que no tocante ao primeiro capítulo haja necessidade de introduzir modificações essenciais no «projeto de programa» do grupo Emancipação do Trabalho, que reivindica:
Neste mesmo capítulo deve ser incluída, além disso, a exigência de reformas financeiras, que no programa do grupo Emancipação do Trabalho figura entre as reivindicações que «o partido operário apresentará, baseando-se nestes direitos políticos fundamentais», ou seja, a «abolição do atual sistema tributário e o estabelecimento de um imposto progressivo sobre a renda». Finalmente, aqui também teria que figurar a exigência: «eleição dos funcionários pelo povo; direito de cada cidadão a recorrer ante os tribunais contra qualquer funcionário, sem necessidade de apelar para seus superiores».
No que diz respeito ao segundo capítulo das reivindicações praticas, no programa do grupo Emancipação do Trabalho encontramos uma reivindicação de tipo geral, que pede «a regulamentação legislativa das relações entre os operários (urbanos e rurais) e os patrões, e o estabelecimento do controle correspondente com participação de representantes dos operários». Acreditamos que um partido operário deve expor em forma mais ampla e detalhada as reivindicações referentes a este ponto e exigir:
Este capítulo do programa deve (ligado ao anterior) fornecer as teses fundamentais que sirvam de guia para a agitação, sem que, ao mesmo tempo, em nada restrinjam a liberdade dos propagandistas de colocar nos diversos locais, ramos da produção, fábricas, etc., reivindicações um pouco diferentes, mais concretas e de caráter mais particular. Portanto, ao redigir este capítulo do programa devemos procurar evitar dois extremos: por um lado, não devemos omitir nenhuma das reivindicações principais, de importância essencial para toda a classe operária; por outro, não se deve entrar excessivamente nos detalhes, pois não seria razoável encher o programa de questões de tipo particular.
A reivindicação da «ajuda do Estado às associações de produtores», contida no programa do grupo Emancipação do Trabalho, na nossa opinião, não deve, de forma alguma, figurar no programa. Tanto a experiência de outros países, como as considerações de tipo teórico, assim como as particularidades da vida russa (a tendência dos liberais burgueses e do governo policial a coquetear com «arteis», com a «proteção» à «indústria popular», etc.) são outros tantos argumentos contrários a que se coloque tal reivindicação. (Naturalmente, há 15 anos. a situação era, sob muitos aspectos, bem diferente, e naquela época era lógico que os social-democratas a incluíssem em seu programa).
Resta examinar o terceiro e último capítulo da parte prática do programa: as reivindicações referentes ao problema camponês. No programa do grupo Emancipação do Trabalho encontramos uma destas reivindicações: «revisão radical de nossas relações agrárias, isto é, das condições do resgate da terra e de sua entrega às sociedades camponesas. Direito de renunciar ao lote de terra e de sair da comunidade para aqueles camponeses que o reclamem, etc.»
Acho que a ideia fundamental expressa nesta reivindicação é muito justa e que o Partido Operário Social-Democrata deve colocar em seu programa a reivindicação correspondente (digo correspondente, pois penso que conviria introduzir algumas modificações).
Eis como entendo esta questão. O problema camponês na Rússia difere substancialmente do problema camponês no Ocidente, mas a diferença se reduz tão-somente a que no Ocidente se trata, quase de um modo exclusivo, do camponês que vive na sociedade capitalista, na sociedade burguesa, enquanto que na Rússia trata-se sobretudo do camponês que sofre o mesmo (senão mais) em consequência das instituições e relações pré-capitalistas, em consequência das sobrevivências do regime da servidão. No Ocidente, o campesinato já deixou de desempenhar seu papel de classe que fornece combatentes contra o absolutismo e contra as sobrevivências da servidão. Na Rússia, ainda não. No Ocidente, há tempos que o proletariado industrial se separou claramente do campo, e essa separação está consolidada pelas correspondentes instituições jurídicas. Na Rússia, «o proletariado industrial, por seus elementos constitutivos e pelas condições de sua existência, ainda está muito ligado ao campo» (P. Axelrod, brochura cit., pág. 11). Certamente, o processo de diferenciação do campesinato em pequena burguesia e operários assalariados desenvolve-se em nosso país com extraordinária intensidade e surpreendente rapidez, mas está muito longe de haver terminado e, sobretudo, transcorre no marco das velhas instituições de tipo feudal, que prendem todos os camponeses com seus pesados grilhões da caução solidária(3) e da comunidade fiscal. Por conseguinte, os social-democratas russos, inclusive se estão (como o autor destas linhas) entre os adversários resolutos de que se proteja ou apoie a pequena propriedade ou a pequena exploração agrícola na sociedade capitalista, isto é, se até no problema agrário se situam (como o autor destas linhas) ao lado desses marxistas a quem agora os burgueses e os liberais de toda laia gostam de chamar de «dogmáticos» e «ortodoxos», podem e têm o dever — sem renegar em nada as suas convicções, mas, antes, pelo contrário, precisamente em virtude dessas mesmas convicções — de propugnar que o partido operário faça figurar em sua bandeira o apoio ao campesinato (de nenhum modo como classe de pequenos proprietários ou pequenos patrões), na medida em que este seja capaz de lutar revolucionariamente contra os restos do regime da servidão, em geral, e contra o absolutismo, em particular. Por acaso todos os social-democratas não dizemos que estamos dispostos a apoiar também a grande burguesia, na medida em que ela seja capaz de lutar revolucionariamente contra essas manifestações? Como podemos, então, negar esse apoio aos milhões de homens que integram a classe da pequena burguesia, que se está fundindo com o proletariado através de uma série de transições graduais? Se apoiar as reivindicações liberais da grande burguesia não significa apoiar a grande burguesia, tampouco apoiar as reivindicações democráticas da pequena burguesia significa, de forma alguma, apoiar a pequena burguesia. Ao contrário, precisamente o desenvolvimento que a liberdade política terá que imprimir à Rússia conduzirá com força particular à dissolução da pequena exploração agrícola sob os golpes do capital. Parece-me que este ponto não provocará discussões entre os social-democratas. Portanto, todo o problema se reduz às seguintes questões:
Comecemos pela segunda questão. Ninguém negará a existência de elementos revolucionários no campesinato russo. São conhecidos fatos como as insurreições camponesas contra os latifundiários, seus administradores e os funcionários dedicados à sua defesa, ocorridas também depois da reforma; são conhecidos fato3 como assassinatos e motins no campo, etc.; são conhecidos fatos como a crescente indignação dos camponeses (entre os quais, inclusive, os rudimentos de instrução já começam a despertar o sentimento da dignidade humana) contra a feroz arbitrariedade desse bando de nobres andrajosos que com o nome de «zemskie natchalniki»(4) foram lançados contra os camponeses; são conhecidos fatos como Os períodos de fome, cada vez mais frequentes, abatendo-se sobre milhões de homens do povo, que não podem permanecer na atitude de simples observadores ante tais «dificuldades do abastecimento»; são conhecidos fatos como o desenvolvimento do sectarismo e do racionalismo entre os camponeses, e o protesto político com roupagem religiosa não é um fenômeno exclusivo da Rússia, mas se dá com todos os povos, em determinada fase de seu desenvolvimento. A existência de elementos revolucionários no campesinato não oferece, pois, a menor dúvida. Não pretendemos exagerar nem um pouco a força desses elementos; não esquecemos o atraso político nem a ignorância dos camponeses; não procuramos em absoluto apagar a diferença que há entre «a revolta russa, tão insensata e implacável» e a luta revolucionária; não esquecemos, de modo algum, a enormidade dos recursos que possui o governo para enganar e corromper politicamente os camponeses. Mas a única coisa que se depreende de tudo isto é que seria absurdo apresentar o campesinato como o veículo do movimento revolucionário, que o partido que fizesse depender do espírito revolucionário do campesinato o caráter revolucionário de seu movimento estaria trabalhando de modo insensato. Mas, não nos ocorre propor nada disso aos social-democratas russos. Dizemos apenas que um partido operário não pode fazer caso omisso dos elementos revolucionários que também existem no campesinato; não pode deixar de prestar ajuda a esses elementos sem faltar aos postulados fundamentais do marxismo e sem cometer um gravíssimo erro político. Saberão comportar-se estes elementos revolucionários do campo russo pelo menos como se comportaram os camponeses da Europa ocidental durante a derrota do absolutismo? Esta é uma pergunta à qual a História ainda não deu sua resposta. Se não o souberem, a social-democracia nada terá perdido no que se refere a seu prestígio nem no que toca ao movimento, pois não será culpada de que o campesinato não tenha respondido (ou talvez não tenha podido responder) a seu apelo revolucionário. O movimento operário segue e seguirá seu caminho, a despeito de todas as traições da grande burguesia ou da pequena burguesia. Se o souberem, a social- -democracia que em tal caso não apoiasse o campesinato teria perdido para sempre seu prestígio e o direito a se considerar a vanguarda da luta pela democracia.
Passando à primeira questão colocada mais acima, devemos dizer que a exigência de uma «revisão radical das relações agrárias» nos parece pouco concreta. Talvez fosse suficiente há 15 anos, mas é duvidoso que nos possa satisfazer hoje em dia, quando temos que fornecer materiais orientadores para a agitação e estabelecer uma linha divisória entre nós e os defensores da pequena exploração agrícola, tão numerosos na sociedade russa de nossos dias e que contam com partidários tão «influentes» como os senhores Pobedonostsev, Witte e numerosos funcionários do Ministério do Interior. Permitir-nos-emos submeter à apreciação dos camaradas esta redação aproximada do terceiro capítulo da parte prática de nosso programa:
«Ao apoiar qualquer movimento revolucionário dirigido contra o atual regime político e social, o Partido Operário Social-Democrata da Rússia declara que apoiará o campesinato na medida em que este, como a classe que mais padece em consequência da falta de direitos do povo russo e da persistência de restos do regime da servidão na sociedade russa, seja capaz de lutar revolucionariamente contra o absolutismo.
Baseando-se neste princípio, o Partido Operário Social-Democrata da Rússia exige:
É preciso que nos detenhamos para analisar esta proposta de forma particularmente detalhada, e não porque esta parte do programa seja a mais importante, mas porque é a mais discutida e a mais afastada das verdades de tipo geral, admitidas por todos os social-democratas. A tese que serve de introdução e que se refere ao «apoio» (condicional) aos camponeses, nos parece necessária porque o proletariado não pode nem deve, falando em termos gerais, assumir a defesa dos interesses de uma classe de pequenos patrões; a única coisa que se pode fazer é apoiá-la na medida em que essa classe atue revolucionariamente. É como hoje em dia o absolutismo encarna precisamente todo o atraso da Rússia, todos os restos do regime da servidão, a falta de direitos e a opressão «patriarcal», é preciso dizer que o partido operário só apoia o campesinato na medida em que este é capaz de lutar revolucionariamente contra o absolutismo. Tal tese se acha, pelo visto, em contradição com esta outra do projeto do grupo Emancipação do Trabalho: «O principal sustentáculo do absolutismo está precisamente na indiferença política e no atraso intelectual do campesinato.» Mas não se trata de uma contradição teórica, e sim de uma contradição da própria vida, pois o campesinato (como, em geral, a classe dos pequenos patrões) se distingue pela dualidade de seus traços característicos. Sem repetir conhecidos argumentos de índole político-econômica que demonstram a situação intrinsecamente contraditória do campesinato, recordaremos a seguinte caracterização do campesinato francês de meados do século passado, feita por Marx:
«A dinastia de Bonaparte não representa o campesinato revolucionário, mas sim o campesinato conservador; não representa o campesinato que luta por sair de sua condição social da vida, determinada pela parcela, mas sim aquele que, ao contrário, quer consolidá-la; não representa a população camponesa, que, com sua própria energia e unida às cidades, quer derrubar a velha ordem, mas sim aquela que, ao contrário, sombriamente retraída nesta velha ordem, quer ver-se salva e preferida, juntamente com sua parcela, pelo espectro do império. Não representa a instrução, mas sim a superstição do campesinato, não sua opinião, mas sim seu preconceito, não seu futuro, mas sim seu passado, não suas Cévennes modernas, mas sim sua moderna Vendée»(6) (Der 18. Brumaire, S. 99)(7).
O que necessita o partido operário é apoiar precisamente esse campesinato que quer derrubar «a velha ordem», ou seja, referindo-nos à Rússia, derrubar antes de tudo e sobretudo o absolutismo. Os social-democratas russos sempre reconheceram a necessidade de destacar e recolher da doutrina e da tendência populista o lado revolucionário desta. No programa do grupo Emancipação do Trabalho isto foi expresso não só na exigência acima citada de uma «revisão radical», etc., mas também nas seguintes palavras:
«Quanto ao mais, é evidente que, inclusive hoje em dia, as pessoas que se acham em contato direto com o campesinato poderiam, com sua atividade no seio deste, prestar um importante serviço ao movimento socialista da Rússia. Ao invés de afastar de si estas pessoas, os social-democratas farão todo o possível para chegar a um acordo com elas no tocante aos princípios e aos métodos fundamentais de sua atividade.»
Há 15 anos, quando ainda se achavam vivas as tradições do populismo revolucionário, tal declaração era suficiente, mas hoje em dia somos nós mesmos que devemos começar a discutir «os princípios fundamentais da atividade» entre o campesinato, se queremos que o Partido Operário Social-Democrata chegue a ser a vanguarda da luta pela democracia.
Estas reivindicações propostas por nós não conduzirão a que o apoio aos camponeses não seja um apoio prestado a eles Pessoalmente, mas sim à sua propriedade? Estas reivindicações não significarão um fortalecimento da pequena propriedade? Estarão em consonância com todo o curso do desenvolvimento capitalista? Examinemos estas questões, de capital importância para os marxistas.
No que toca à primeira e à terceira reivindicações, é pouco provável que entre os social-democratas haja divergências de fundo. A segunda reivindicação provocará, certamente, divergências no que diz respeito também ao fundo da questão. Na nossa opinião, esta reivindicação se apoia nos seguintes argumentos:
Como principal argumento contra esta reivindicação, provavelmente nos seria dito, antes de tudo, que é «irrealizável». Se essa objeção é apoiada unicamente por frases contra o «revolucionarismo» e a «utopia», diremos de antemão que semelhantes frases oportunistas não nos assustarão nem um pouco e não lhes concederemos a menor importância. É se essa objeção se apoia numa análise das condições econômicas e políticas de nosso movimento, reconheceremos desde logo a necessidade de discutir mais a fundo este problema e a conveniência de entabular uma polêmica em torno dele. Observaremos tão-somente que esta reivindicação não se apresenta isolada, e sim que forma parte da reivindicação de apoiar o campesinato na medida em que é revolucionário. O problema da forma concreta e da força com que se manifestarão estes elementos do campesinato será decidido pela História. Se quando se diz que algumas reivindicações são «realizáveis» não se entende sua correspondência geral com os interesses do desenvolvimento social, mas apenas sua correspondência com o conjunto das condições econômicas e políticas existentes nesse momento, tal critério é totalmente errôneo, como o demonstrou Kautsky de um modo convincente em sua polêmica com Rosa Luxemburgo, que afirmava ser «irrealizável» para o Partido Operário Polonês a reivindicação da independência da Polônia. Kautsky apontou, então, como exemplo (se a memória não me falha) a reivindicação do programa de Erfurt em que se fala da eleição dos funcionários pelo povo. É mais do que duvidoso que na Alemanha de nossos dias tal reivindicação seja «realizável», mas nenhum social-democrata propôs limitar suas reivindicações ao estreito marco do que é possível no momento atual e nas condições atuais.
No que se refere ao quarto ponto, é provável que, em princípio, ninguém negará a necessidade de que os social-democratas reivindiquem a abolição de todos os restos da dependência feudal. Certamente, discutir-se-á apenas o modo de formular esta reivindicação e, além disso, a amplitude dela, isto é, a necessidade de exigir que se inclua, nela, por exemplo, a reivindicação de que se adotem medidas que suprimam a dependência dos camponeses baseada de fato na corveia e que tem sua origem no parcelamento das terras camponesas pela reforma de 1861. A nosso ver, esta questão devo ser resolvida no sentido afirmativo. A enorme significação da sobrevivência real da economia baseada na corveia (no pagamento em trabalho) foi claramente estabelecida em diferentes publicações, assim como o enorme entorpecimento que esta sobrevivência supõe para o desenvolvimento social (e para o desenvolvimento do capitalismo). Está claro que o desenvolvimento do capitalismo «por si mesmo, pelo curso natural das coisas» conduz à supressão destas sobrevivências, as quais, no final das contas, fará desaparecer; mas, em primeiro lugar, tais sobrevivências estão extraordinariamente arraigadas, de modo que não se pode esperar que a sua supressão seja muito rápida, e em segundo lugar — e isto não é o principal —, «o curso natural das coisas» não significa senão a extinção dos camponeses, que, de fato (em virtude do pagamento em trabalho, etc.), estão sujeitos à terra e avassalados pelos latifundiários. Em tais condições, é evidente que os social-democratas não podem silenciar sobre este problema em seu programa. Perguntar-nos-ão como poderia ser satisfeita esta reivindicação? Acreditamos que não é preciso falar disto no programa. Naturalmente, o cumprimento desta reivindicação (que, como o de quase todas as reivindicações deste capítulo, depende da força que tenham os elementos revolucionários do campesinato) exigirá uma análise minuciosa das condições locais por comitês eleitos pelos camponeses do lugar, em contraposição aos comitês de nobres que praticaram seu «legítimo» saque na década de sessenta. As reivindicações democráticas do programa definem com bastante precisão quais são as instituições democráticas que seriam necessárias para isso. É assim que se conseguiria essa «revisão radical das relações agrárias» de que fala o programa do grupo Emancipação do Trabalho. Como já indicamos mais acima, estamos de acordo, em princípio, com este ponto do projeto proposto pelo grupo Emancipação do Trabalho e unicamente gostaríamos de:
Prevemos mais uma objeção: a revisão do problema do parcelamento, etc., deve conduzir à devolução destas terras aos camponeses. Isto é evidente. Mas, acaso esta medida não fortalecerá a pequena propriedade, a pequena parcela? Acaso os social-democratas podem desejar a substituição da grande exploração capitalista — formada talvez por terras roubadas aos camponeses pela pequena exploração? Seria uma medida reacionária!
Contestamos a objeção: é indubitável que a substituição da grande exploração pela pequena é uma medida reacionária, e nós não devemos defendê-la. Mas a reivindicação que estamos examinando se acha condicionada pela finalidade de «suprimir os restos da opressão feudal», e por conseguinte, não pode levar ao fracionamento das grandes explorações, pois se refere exclusivamente às velhas explorações baseadas pura e essencialmente na corveia, e, com relação a elas, a exploração camponesa livre de todas as travas medievais (veja-se o ponto 3) não é reacionária, e sim progressista. Naturalmente, aqui não é fácil traçar uma linha divisória, mas não acreditamos um absoluto que qualquer das reivindicações de nosso programa possa ser «facilmente» satisfeita. Nossa obrigação é fixar os princípios e as tarefas fundamentais; já dos detalhes terão que se ocupar aqueles que tiverem de realizar praticamente essas tarefas.
O último ponto visa ao mesmo objetivo que o anterior: lutar contra todos os restos de modo de produção pré-capitalista (tão abundantes no campo russo). Como se sabe, os arrendamentos camponeses na Rússia frequentemente não servem senão para encobrir a sobrevivência de algumas relações baseadas na corveia. No que concerne à ideia que inspira este último ponto, tomamo-la de Kautsky. Depois de indicar que o governo liberal de Gladstone havia promulgado já em 1881 uma lei para a Irlanda, concedendo aos tribunais o direito de rebaixar os preços excessivos dos arrendamentos, Kautsky incluiu entre as reivindicações desejáveis a seguinte: «Redução das rendas excessivas por instituições jurídicas criadas com este fim» (Reduzierung übermaessiger Pachtzinsen durch dazu eingesetzte Gerichtshöfe). Na Rússia esta medida seria particularmente útil (com a condição, é claro, de que tais tribunais tivessem uma organização democrática) para eliminar as relações baseadas na corveia. Achamos que aqui se poderia incluir a reivindicação de que as leis contra a agiotagem sejam extensivas aos contratos leoninos, pois o avassalamento está tão desmesuradamente desenvolvido no campo russo, oprime de tal maneira o camponês em sua qualidade de trabalhador, e é um freio tão pesado ao progresso social, que a necessidade de lutar contra ele é muito grande. É não seria mais difícil aos tribunais estabelecer o caráter abusivo das rendas.
Por tudo isso, as reivindicações que propomos se reduzem, a nosso ver, a dois objetivos fundamentais:
Acreditamos que são precisamente esses os princípios que devem servir de guia para o «programa agrário» social-democrata na Rússia. É preciso estabelecer resolutamente uma linha divisória que nos separe das tendências (tão frequentes na Rússia) de suavizar a luta de classes no campo. A corrente liberal-populista dominante distingue-se precisamente por ter esse caráter; mas, mesmo rechaçando-a resolutamente (como se fez no Apêndice ao Informe dos Social-Democratas Russos Ante o Congresso Internacional de Londres), não se pode esquecer que nosso dever é destacar o conteúdo revolucionário do populismo. «Enquanto o populismo era uma corrente revolucionária, isto é, enquanto lutava contra o Estado burocrático das castas e contra as bárbaras formas de exploração e de opressão das massas populares aplicadas com o apoio do Estado, ele devia ser, com as correspondentes modificações, um elemento constitutivo do programa da social-democracia russa» (Axelrod: A Propósito das Tarefas Atuais e da Tática, pág. 7). No campo russo entrelaçam-se atualmente duas formas fundamentais da luta e classes:
Esta última forma de luta tem para os social-democratas, como é natural, mais importância, mas eles também devem apoiar necessariamente a primeira, sempre e quando isso não se opuser aos interesses do desenvolvimento social. Não é casual que o problema do camponês tenha ocupado e ocupe um lugar tão grande na sociedade russa e no movimento revolucionário russo: este fato não é senão um reflexo da grande importância que ainda tem a primeira forma de luta.
Para terminar devemos fazer uma advertência a fim de prevenir um possível mal-entendido. Falamos do «apelo revolucionário» dirigido aos camponeses pela social-democracia. Isso não significa que desperdiçamos nossas energias, que agimos em prejuízo da concentração de forças necessária para trabalhar entre o proletariado industrial? Nada disso. Todos os social-democratas russos reconhecem a necessidade dessa concentração de forças. Dela se fala no projeto do grupo Emancipação do Trabalho (1885) e no folheto Tarefas dos Social-Democratas Russos (1898). Por conseguinte, não há absolutamente razão alguma para temer que os social-democratas se ponham a dispersar suas forças. Um programa não é uma instrução. O programa deve abarcar o movimento em seu conjunto, mas na prática, como é natural, temos que destacar em primeiro plano ora um aspecto do movimento, ora outro. Ninguém nega a necessidade de que no programa não só se fale dos operários industriais, mas também dos operários agrícolas, se bem que, ao mesmo tempo, a nenhum social-democrata russo tenha ainda ocorrido convidar os camaradas a que se lancem ao campo nas atuais circunstâncias. Mas o movimento operário forçosamente levará por si mesmo, independentemente de nossos esforços, à difusão das ideias democráticas no campo. «A agitação baseada nos interesses econômicos fará com que os círculos social-democratas se vejam direta e inevitavelmente frente a fatos que demonstram de forma patente a estreitíssima solidariedade de interesses entre nosso proletariado industrial e as massas camponesas» (Axelrod, id., pág. 13), e esta é a razão de os social-democratas russos necessitarem imperiosamente de um Agrarprogramm (no sentido indicado, pois, rigorosamente falando, não se trata de modo algum de um «programa agrário»). Em nossa propaganda e em nossa agitação tropeçamos a cada passo com operários camponeses, isto é, com operários fabris que mantêm seus vínculos com o campo, que têm seus familiares na aldeia, à qual costumam ir. Os problemas relacionados com os resgates, a caução solidária, e as rendas são problemas que frequentemente interessam muito os operários da capital (já não falamos dos operários dos Urais, por exemplo, entre os quais também já começou a penetrar a propaganda e a agitação dos social-democratas). Faltaríamos a nosso dever se não nos preocupássemos em dar orientações precisas aos social-democratas e aos operários conscientes que vão ao campo. Além disso, tampouco devemos esquecer a intelectualidade rural, como, por exemplo, os professores rurais. Estes homens estão de tal forma deprimidos no aspecto material e espiritual, observam tão de perto a falta de direitos e a opressão do povo, experimentadas também por eles mesmos, que não há dúvida alguma de que (com o progresso do movimento) serão cada vez mais conquistados pela social-democracia.
Assim, pois, as partes integrantes do programa do Partido Operário Social-Democrata da Rússia serão, a nosso ver, as seguintes:
Compreendendo perfeitamente as dificuldades que oferece a tarefa de dar uma redação plenamente satisfatória ao programa sem realizar previamente várias consultas com os camaradas, consideramos, entretanto, que é necessário empreender essa tarefa, pois estimamos que não é possível adiá-la (pelas causas indicadas) e, além disso, confiamos em que todos os teóricos do Partido (encabeçados pelos membros do grupo Emancipação do Trabalho), como todos os socialistas dedicados na Rússia ao trabalho prático (e não só os social-democratas, pois escutaríamos com grande satisfação a opinião dos socialistas pertencentes a outras frações e não nos negaríamos a publicar suas opiniões) e todos os operários conscientes nos ajudarão.
Notas de rodapé:
(7) O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1956, Págs. 99/100. (Nota da Tradução) (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
(1) Grupo “Emancipação do Trabalho”: primeiro grupo marxista russo, fundado por G. Plekhanov, em Genebra, em 1883, que realizou um grande trabalho de difusão do marxismo na Rússia. (retornar ao texto)
(2) A lei de 2 (14) de junho de 1897 estabelecia a jornada de onze horas e meia de trabalho nas empresas industriais e oficinas ferroviárias. Até então a jornada de trabalho não era limitada na Rússia, e chegava a 14 e 15 horas. O governo tzarista viu-se obrigado a promulgar a lei de 2 de junho de 1897 sob a pressão do movimento operário, dirigido pela União de Luta pela Emancipação da Classe Operária, fundada por Lénin. (retornar ao texto)
(3) Caução solidária: responsabilidade coletiva obrigatória dos camponeses de cada comunidade rural pelo pagamento pontual e completo dos impostos em moeda e pelo cumprimento de toda espécie de serviços em favor do Estado e dos latifundiários (contribuições, pagamento de resgates, serviço militar, etc.). Esta forma de vassalagem dos camponeses, que se conservou ainda depois de ser abolida a servidão, na Rússia, só foi suprimida em 1906. (retornar ao texto)
(4) O cargo administrativo de “zemski natchalnik” foi instituído em 1899 pelo governo tzarista com o propósito de reforçar o poder dos latifundiários sobre os camponeses. Os “zemskie nachalniki” eram designados entre os latifundiários nobres de cada lugar e gozavam de imensos direitos administrativos e judiciais sobre os camponeses, inclusive o direito de encarcerá-los e submetê-los a castigos corporais. (retornar ao texto)
(5) Servidão: Lênin refere-se neste caso aos restos do regime da servidão no território ocidental. Depois da reforma de 1861, os camponeses viram-se obrigados à prestação pessoal de serviços suplementares em favor dos latifundiários pelo direito de usar estradas, campos de feno, pastagens, bebedouros, etc. da região. (retornar ao texto)
(6) Em Cevenas — região montanhosa da França — houve no início do século XVIII uma grande insurreição de camponeses protestantes (os chamados “camisards”) sob as palavras de ordem de “nenhum imposto” e “liberdade de consciência”. Os insurrectos apoderaram-se dos castelos feudais. Ocultos nas montanhas, agiam em grupos de guerrilheiros, mantendo a luta durante cerca de três anos. A Vandéia é uma região da França, centro da contrarrevolução durante a revolução burguesa francesa do fim do século XVIII. A contrarrevolução usou na luta contra a França revolucionária os camponeses atrasados da Vandéia, sobre os quais tinha grande influência o clero católico. (retornar ao texto)