O mini-mercado (ou a última oportunidade)

Georges Labica

9 de janeiro de 2009


Fonte: odiario.info

Tradução: Carlos Coutinho

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licença Creative Commons CC-BY-NC-SA 3.0 PT


1. Expulsas de suas casas pela crise dos subprimes, algumas famílias estado-unidenses tinham decidido associar-se, gerindo em comum as economias que lhes restavam. Depois de terem ponderado diversas hipóteses e reflectido sobre diversos projectos, puseram-se de acordo para abrirem um mini-mercado, na pequena cidade onde se viram obrigados a procurar refúgio, depois da perda das suas casas e alguns, até do seu emprego. O modesto edifício, que, em boa parte, restauraram pelas suas próprias mãos, situava-se na periferia, e assim, na proximidade de culturas hortícolas, o que lhes permitiu, desde o dia da abertura, colocar à venda mercadorias, essencialmente frutas e legumes, a baixo preço, já que não recorriam a nenhum intermediário, grossista ou distribuidor. A clientela não se fez esperar e aumentou rapidamente. Puderam, em consequência, alargar e diversificar os ramos do negócio, das carnes e charcutarias às conservas e aos produtos de limpeza, passando pelos condimentos, as massas, o arroz, etc. Tinham também uma banca de flores. Asseguravam eles próprios o funcionamento deste comércio. Homens, mulheres e fora das actividades escolares, até adolescentes, distribuíam entre si as tarefas. Uns asseguravam, com os seus próprios veículos, o abastecimento directo, outros as vendas, a manutenção, as relações com os produtores e a publicidade. Tinham optado pela autogestão. Para isso, tinham-se constituído em associação de membros com os mesmos direitos. Tomavam todas as decisões relativas ao funcionamento da cadeia em assembleia-geral, e um tesoureiro eleito encarregava-se da contabilidade geral, dos salários, equivalentes para todos, e da repartição dos ganhos entre as famílias.

O sucesso valeu-lhes, muito rapidamente, as inevitáveis tentativas de grandes superfícies para controlarem a sua empresa, fosse sob a forma de aquisição e fusão, fosse sob a forma de gestão. Os bancos, apesar do período de austeridade dos créditos, devido à crise, chegaram ao ponto de lhes oferecer fundos, para os ajudar a abrir sucursais, ou para lhes permitir criar uma sociedade por acções. A sua notoriedade assumiu, todavia, uma envergadura mais considerável, chegando à cúpula do Estado. Não só receberam insistentes felicitações, como foram apontados como exemplo a toda a nação pela coragem de que haviam dado provas na adversidade. O seu êxito, por si só, fornecia a prova que era possível a qualquer um ultrapassar a crise, mesmo graças a iniciativas de inspiração «socializante», e que o «sonho americano» não estava morto. Quanto aos nossos «socialistas», não se deixaram impressionar, nem muito menos comprar. Declinaram até o convite que lhes foi endereçado para visitarem Washington.

Tranquilamente, sem espalhafato nem fanfarronice, fizeram escola, «contaminaram», como diziam em privado. Por um lado, multiplicaram-se, abrindo efectivamente sucursais que ameaçavam por seu lado, os grandes concorrentes e sobre as quais mantinham estrito controlo. Por outro lado e sobretudo, era o modelo que disseminavam. As vantagens económicas, para a oferta como para a procura, do sistema autogestionário, fizeram discípulos e alargaram-se a muitas outras formas de comércio, da mecânica ao imobiliário decadente e, pouco a pouco, à gestão, a ponto de serviços de carácter público e mesmo municipalidades consideraram a hipótese de o adoptar, apesar das dificuldades e das resistências crescentes que enfrentavam. De tal forma a perturbação e a desconfiança face ao sistema, produto da amplitude da crise, começavam a trabalhar o substrato social.

2. Uns seis meses antes, alguns singulares faits divers tinham feito as despesas da crónica, apaixonado os média e lançado a maior perturbação nos meios políticos. Bancos e banqueiros foram as vedetas, mesmo sem o saberem. Alguns casos parecem significativos.

Pelo fim duma bela manhã, apresentaram-se no banco X dois indivíduos de excelente aparência e dando-se ares muito sérios, solicitaram uma entrevista com o gerente, para tratarem de um negócio da mais elevada importância. Uma vez na presença do gerente, obrigaram-no, sob a ameaça dum revólver, a assinar numerosas e avultadas transferências para contas numeradas domiciliadas no estrangeiro. O duo assegurou ao gerente que em caso de queixa à polícia ou de não execução dos depósitos, no prazo de dois dias, ele próprio e a sua família ficariam expostos aos maiores perigos. Concluída a operação, a imprensa foi informada e relatou o acontecimento, com grande número de pormenores da sua lavra, como é costume. Muito pouco tempo depois, a polícia viu-se obrigada a reconhecer o fracasso do inquérito a respeito da identidade dos detentores das contas desta forma reforçadas.

Quase no mesmo momento, o director de um Hedge Fund, cuja sede, verdadeiro bastião electrónico, ocupava uma imensa mansão na periferia de X, foi raptado em condições obscuras. Teria sido apanhado à saída dum clube nocturno privado, depois de ter mandado embora os guarda-costas. O resgate exigido, de muitos milhões de dólares, deveria ser pago nos cinco dias seguintes, sob pena de execução. Decorrido o prazo sem que os associados se tivessem decidido a reunir a quantia exigida, o director foi efectivamente executado. O corpo foi encontrado de madrugada diante da sede dum jornal, com um letreiro sobre o peito, que dizia: «Tal como anunciado, o Sr. X foi julgado e condenado pelos milhares de vítimas, imputáveis às suas práticas de rapina especulativa. O sistema que lhe deu cobertura e que procura salvar os seus pares do desastre que eles próprios provocaram, não ficará impune. A sua destruição está agora encaminhada».

Um importante Director do complexo militar-industrial foi sequestrado na sua propriedade, com a família e os empregados, por um grupo de homens que se introduziram na propriedade a coberto da noite. Sob a ameaça das armas, reuniram os habitantes e encerraram nos seus quartos a esposa e as crianças, como garantia do respeito pela interdição de comunicar com o exterior, tendo confiscado ou posto fora de uso todos os meios de comunicação (telefones e computadores). Requisitaram o pessoal da casa, a fim de realizarem alguns trabalhos em volta de cada edifício da propriedade. Foi escavado um certo número de buracos, dentro dos quais colocaram alternadamente minas e bombas, ligadas a um dispositivo de comando móvel. Alertadas pelos colaboradores, preocupados com a ausência do patrão e pela impossibilidade de entrar em contacto com o seu domicílio, as forças da polícia montaram um apertado cerco à propriedade. Aos apelos da polícia para se renderem, mediante a promessa duma saída negociada, os estranhos replicaram exigindo o depósito, num prazo de 24 horas, diante do portão da casa, duma quantia bastante considerável. Caso contrário, provocariam a explosão da moradia com todos os seus ocupantes. Aconselhavam ainda que não devia ser tentado nada contra a pessoa que fosse recolher os fundos, feito o que, se eclipsaram sem deixar rasto.

3. A relação entre estes assaltos e outros raptos com os criadores do citado mini-mercado nada tinha de evidente, nenhum elemento de inquérito permitia afirmá-lo. Acontece, no entanto, que alguns financeiros farejaram a conexão, tendo em conta a aparente semelhança entre os acontecimentos e os capitais envolvidos. Mas tratava-se apenas duma hipótese, que, além disso, tinha valor geral, já que outros factos análogos tinham ocorrido no país. Por outro lado, certos amigos do grupo do mini-mercado, que conheciam as suas reais disponibilidades financeiras, admiravam-se com a rapidez com que se tinha operado a expansão da empresa. Mas, mais que delito, viam aí um modelo, sendo neles o desejo de repetir a operação por sua própria conta, muito superior à vontade de a condenar.

4. Tais práticas criminal-empresariais multiplicavam-se noutros países, sem que fosse possível, evidentemente, fazer a destrinça entre o que eram actos puros de banditismo e processos de compensação por parte de vítimas da conjuntura. Era pela primeira vez evidente, aos olhos da maioria, a queda das máscaras. O sistema capitalista enquanto tal, era enfim considerado como responsável por uma situação que pretende fazer pagar a crise aos cidadãos contribuintes, dela eximindo aqueles que a provocaram.

O pretenso «regresso do Estado» confirma a estreita cumplicidade que liga políticos, homens de negócios e mafiosos de toda a espécie. Os conselhos de administração da classe dominante agem de acordo com a sua vocação. Depois de terem assegurado a pressão sobre os salários, exigida pelo serviço do neo-liberalismo e da concorrência «livre e não falseada», indispensável à «auto-regulação» do mercado, voaram em socorro dos predadores, à custa de centenas de biliões, que antes tinham declarado não existirem para satisfazer as mínimas necessidades sociais e que representam os frutos do trabalho. Os funcionários de serviço à ideologia, arrogantes ou cretinos, apressaram-se a inverter o sentido dos seus discursos da véspera ou da antevéspera. Do «nós bem a vimos aproximar-se» às «nacionalizações» e outras medidas «socialistas», ao ponto de mascarar um Bush com o boné de Lenine, como alguém disse, descobriram que o destruidor por excelência, o capitalismo mundializado, tomava a figura do héautontimoroumenos baudelairiano, do carrasco de si mesmo, que podia, pelo seu próprio e efectivo movimento, auto-destruir-se, mas destruindo também os que têm vocação para o destruir. Seriam estes quem reformaria, refundaria ou moralizaria o capitalismo, tornaria «honesto» o mercado, sancionaria os pára-quedas dourados,(1) mas que se contentariam em vigiar as operações especulativas e em moderar o recurso aos paraísos fiscais. É uma realidade que a resignação a uma fatalidade que governaria o mundo económico como a gravidade o mundo físico, leia-se as «leis do mercado» assimiladas às leis da natureza, cujos efeitos os gurus sem vergonha prevêem, à maneira dos meteorologistas o tempo que fez ontem, esta resignação está a chegar ao fim. Doravante, veremos os esgares por detrás dos sorrisos, dito doutra forma, os culpados, tal essa catrefa de personagens todo-poderosos - banqueiros, patrões das seguradoras, directores de empresas, altos funcionários, conselheiros, directores do Tesouro ou da Caixa de depósitos, saindo do gabinete dum presidente da República, onde acabaram de autopsiar o seu próprio cadáver, ou ainda, do andar de cima, a súcia do G 20, ou do G 8, perguntando-se se irão ser condenados ao papel de coveiros. O inimigo, os inimigos têm rostos aos quais se podem dar nomes.

Acabou-se a abstracção do «patrão», do «chefe», ou do «explorador», do mesmo modo que as «reformas no bom sentido», «a redução do desemprego», a «salvaguarda do poder de compra», etc. As instituições são enfim directamente identificadas como as associações de malfeitores que sempre foram desde a sua criação, - OMC, FMI, BN. Os milhares de vítimas causadas pelos seus diktats a favor da regulação dos interesses da dívida e do «bom governo», mesmo que não sejam visíveis ou tenham sido forçadas a deixar de o ser, nem por isso deixam de ser gente abandonada à sua sorte, prometida à miséria ou à morte. Simultaneamente, forjava-se a consciência das imensas reservas de força que representam as massas, face a uma minoria de decisores, que, é certo, dispõem do poder, dos meios de informação /manipulação, de dinheiro e de armas. Mas que poderão eles, «quando todos os pobres se envolverem»? Os pobres pobres, cada vez mais numerosos nas grandes democracias, os USA, por exemplo, com cerca de 50 milhões, ou a França com 7 milhões, dos quais 2 milhões são crianças, aos quais acrescem os trabalhadores precários e os «trabalhadores pobres», descobertos pela sociologia post-moderna, e todos os sem direitos (migrantes, sem documentos, sem abrigo, todos os desfavorecidos duma sociedade a duas velocidades), os quais, por sua vez, tomam lugar entre as fileiras dessas centenas de milhões de trabalhadores lançados, é também verdade, uns contra os outros, por uma impiedosa competição entre grandes grupos imperialistas.

5. Seria muito de espantar, e de facto completamente inesperado, que uma tal massa se levantasse na unidade, na harmonia e na razão, de forma pacífica. Mal a tampa da caldeira fosse levantada, seria a barafunda, a anarquia, contrabalançando a anarquia do mercado, o turbilhão geral que arrasta os escravos cujas cadeias se rompem, os deportados libertados dos campos, as crianças lobo postas em presença dos homens, todos desvairados, perdidos, não sabendo que rumo tomar em face da nova situação. Na realidade, nenhuma metáfora é válida, é pior, já que as energias desencadeadas seriam as do furor e do ressentimento. Duma cólera levada até ao ódio. O modelo do mini-mercado não pode fazer escola e a adopção da autogestão, pelo menos num primeiro momento, não ultrapassaria o âmbito local. Fora dado assim livre curso aos ajustes de contas, do partir do pescoço do pequeno chefe ao saque do gabinete da Direcção. Reconhecido na rua, este deputado corrompido, aquele apresentador de televisão fazedor de opinião mesquinha, aquele eleito prevaricador ou ladrão, um polícia abandalhado, agressor ou racista, aquele «patrão pária» (rótulo oficial), este editorialista da imprensa submissa; aquele «intelectual» lambe botas, e, claro, este agente imobiliário ou comissionista, foram submetidos a uma punição sem aviso, da pancada ao escarro e até ao coma. Responsável, não responsável? E de quê? Perguntas tornadas obsoletas. Pensamos em Marat declarando que o número de sacrificados pela Revolução não tinha qualquer semelhança com as intermináveis pilhas de cadáveres devidos à realeza.

É de notar que, por razões de reverência débil mas devidamente interiorizada, tanto vedetas do desporto como do grande e do pequeno ecrã, refastelados porém em rendimentos equivalentes a muitos milhares de salários mínimos, eram afastados. Eclodiam igualmente motins espontâneos, provocados pela fome ou pela miséria, sob a forma de assaltos a lojas e de pilhagens de supermercados. Luxo e opulência, passados de ofensa à provocação, traduziram-se em ataques contra uma certa boutique de moda, um dado restaurante e um certo hotel reservados às elites. Sendo a crise mundial, como se sabe, e agravando-se de dia para dia, não houve praticamente nenhum país que tivesse escapado ao grande chinfrim social, variando as expressões e os movimentas de violência dum para outro conforme as situações vividas, ou seja, conforme a acumulação das frustrações e das sevícias sofridas. Podemos imaginar facilmente como as coisas podem ser diferentes, conforme se trate da Serra Leoa, do Peru, da Grã-bretanha, do Sri Lanka, do Dubai ou da Sérvia. Em África por exemplo, insurreições populares houve que foram manipuladas por chefes de guerra desejosos de se substituir aos regimes no poder; noutras paragens, na Ásia do Sudeste, uma repressão feroz abateu-se sobre os manifestantes, fazendo inúmeros mortos e feridos e enchendo as prisões; ainda noutras latitudes, agora em França, as forças da ordem receberam, em nome da unidade nacional contra o recurso à violência, o apoio tanto da esquerda como da direita, abertamente associadas para a ocasião. Nos campos latino-americanos, os camponeses revoltados foram esmagados pelas milícias privadas dos latifundiários, como no passado os camponeses da Europa medieval pelos mercenários feudais. Grupos vanguardistas, ou de extrema-esquerda, infiltraram-se no movimento para promoverem acções espectaculares. O Director Geral de M, coberto de milhões por ter arruinado a sua empresa, foi abatido à porta de casa, um ministro do Interior mantido como refém durante uma semana. Um tiro de bazuca, lançado duma viatura, atingiu a sede da confederação do patronato. Residências secundárias de grande luxo foram incendiadas. Bombas, colocadas de noite por mergulhadores, sob o casco de veleiros ou de navios de cruzeiro, avaliados em valores insolentes, provocaram a explosão de marinas de recreio. Na conjuntura, apesar das indignações das classes políticas, todas «sensibilidades» confundidas, estas diversas acções revestiam um sentido que nunca antes tinham atingido, em períodos considerados como calmos, pois contribuíam à tomada de consciência e inspiravam a necessária extensão das lutas.

6. Com a crise num crescendo de malfeitorias, com o aumento de encerramentos de empresas, os despedimentos massivos, a degradação do poder de compra e, de modo mais geral, das condições de existência (trabalho, saúde, educação, alojamento, tempos livres), o aprofundar, numa palavra, de todas as desigualdades, à força de injustiças, de discriminações e de devassas, aparecia cada vez com maior clareza, aos olhos dum número crescentemente mais vasto de pessoas, que o cilindro compressor da crise não deixaria nada intocado e que o regresso à situação de partida, tida como «normal», era impossível. Não se tratava apenas dos trabalhadores, dos pobres e dos excluídos. As camadas médias eram igualmente atingidas: os comerciantes; as profissões liberais; os pequenos e médios agricultores; as pequenas e médias empresas industriais e do artesanato, asfixiadas pela falta de créditos e, enquanto sub-contratadoras, pela falência das multinacionais.

A lava não parava de crescer no vulcão social. Após um período hesitante e marcado por reacções isoladas e esporádicas, espalhara-se pelas avenidas das metrópoles em correntes enormes que invadiam tudo e tornavam vãs as tentativas para as conter e, menos ainda, para as controlar. Os efectivos de polícia, continuamente reforçados, foram ultrapassados e, com eles, o conjunto do sistema securitário, por mais sofisticado que fosse. As deserções de militares chamados como reforços multiplicavam-se. Edifícios e sedes oficiais, Bolsas, Centros de radiotelevisão, comissariados, ministérios, mesmo palácios presidenciais, foram tomados e invadidos pelas multidões. Estávamos a léguas de distância dos protestos a conta-gotas que uma esquerda no limite dos seus abandonos, covardias e cumplicidades com o poder, pretendia oferecer aos descontentamentos, com as suas delegações, petições, manifestações, simultaneamente formais, sectoriais e fugazes, e grevezecas sem futuro. Perante o brutal surgimento de classes em luta, os histriões auto-proclamados representantes do mundo operário e das forças populares, foram rejeitados como escória. À semelhança do que se passou em todos os períodos históricos revolucionários, o movimento afirmava as suas próprias exigências e produzia os seus próprios líderes. A radicalidade estava na ordem do dia, estabelecendo até que ponto se havia cavado o fosso entre a oposição oca e complacente duma «classe política» de esquerda, que não se conseguia já distinguir ela própria da sua homónima de direita, e a consciência que as massas haviam tomado do intolerável duma situação, posta a nu pela crise em curso na sua plena veracidade.

Também não era o Estado que recuava, mas antes o político, enterrado sob o néo-liberalismo, era restabelecido no seu papel, pelos próprios, os explorados, que eram os seus legítimos detentores e garantes. Os silenciados, como se diz de forma contundente na América Latina, tomavam ou retomavam a palavra. A angústia drapejava como uma bandeira. Mordaças e algemas caíam por si sós, como peles mortas. Crianças descidas dos seus montes de lixo, reencontravam uma dignidade inteiramente nova. A vontade popular substituía-se às imposições dos accionistas. Com ela, a violência emancipadora reafirmava a sua necessidade, contra as palinódias consensuais que a condenavam, e com que convicção! Mas apenas com a intenção de reservar o monopólio da violência ao poder e, portanto, de sacralizar a ordem dominante. As burguesias no poder, solidamente instaladas no pedestal da intocável propriedade privada, dispunham assim, de toda a liberdade para governar pelo medo, que elas suscitavam constantemente, e pela invenção de terrorismos, que mascaravam as atrocidades do seu próprio terrorismo. Donde, relançado pelo Patriot Act, sob o pretexto das Twin Towers, o aperfeiçoamento incessante dos dispositivos securitários - satélites de vigilância, redes de escuta, câmaras, Echelon e Edwige, sucedendo ao Gladio, proliferação de serviços de informações todo-poderosos, visando o estrangulamento ideológico «cidadão» e a repressão de toda a contestação, sobretudo social, tudo isto não tendo outro significado que não fosse o de uma guerra aos pobres, aos quais se assimilava o conjunto dos dominados. A ruína imputada ao rebentamento da «bolha financeira» estava em vias de tornar inoperante toda esta tralha.

7. A dita ruína do capitalismo mundializado estava assim assegurada?

8. O advento de um «outro mundo», desta vez na realidade e já não em elucubrações mistificadoras, estava na ordem do dia, através destes levantamentos sem precedentes, em resposta a uma crise do capitalismo, também ela sem procedentes. Mas, no entanto, não se pode dar de barato a extraordinária reserva de nocividade das classes dominantes.

Impunha-se, em primeiro lugar, ter em consideração que o capitalismo, sempre ao longo da sua história, conseguiu ultrapassar as suas próprias crises. A actual, pelo seu carácter verdadeiramente inaudito, na sua profundidade (pois tocava a totalidade do sistema) e na sua extensão (planetária) escaparia à regra? Tendo em conta o número, a qualidade e a extensão dos dispositivos postos em marcha para lhe fazer face e a ultrapassar, seria prudente duvidar disso e manter, até prova, ainda hesitante, do contrário, que, decididamente, não havia enfarte dos modos de produção. Marx, que, não obstante, estava convencido ser necessário que a «velha toupeira» escavasse, ou dito doutro modo, que o «coveiro» proletário cumprisse o seu papel, não afastara a hipótese duma mortal ruptura de aneurisma. O seguimento da história tornou as coisas mais nítidas. Sem recuar à crise de 1929, da qual os Estados Unidos saíram mais pela sua participação na guerra que pelo New Deal, basta citar alguns casos na miríade das crises que se sucederam simplesmente desde os anos 80 do século passado, apenas no espaço de 30 anos. Em Outubro de 1987, o krach bolsista atingiu os Estados Unidos e a Europa; em 1988, a bancarrota provocada pelos junk bonds tinha já suscitado a intervenção do Estado nos Estados Unidos, que levantou 500 biliões de dólares das caixas económicas; em 1991, a bolha financeira tinha estoirado no Japão; em 2000, o mesmo fenómeno havia provocado uma catástrofe em cadeia, os escândalos Enron, Wordlcom e Vivendi, até à tempestade argentina do final de 2001. Actualmente, a mobilização geral foi decretada nos países ricos; os emergentes contentam-se com o papel de observadores.

Na confusão de conjunto, já que no próprio seio da comunidade europeia, apesar das fanfarronadas unionistas, cada país puxa a brasa à sua sardinha, é que financeiros, pedantes da economia e dos think thanks, proporiam as medidas mais audaciosas, afim de se safar com as perdas mais baixas. Um único ponto de acordo: é necessário salvar o capitalismo. Não se olha a meios, nem a considerações de qualquer ordem, quando toca a queimar o que antes se tinha incensado - a apologia do mercado, as desregulamentações, as privatizações, a flexibilidade e as deslocalizações ou os sucessos dos traders e outros golden boys dos mais rapaces. Não há qualquer receio em denunciar, como se esta não tivesse sido mais que um acidente de percurso, a especulação financeira, como perversão do sistema, à qual uma boa terapia permitiria recuperar a saúde. É também notável que em plena derrocada, diagnosticada como tal, que previdentes abutres apostassem no futuro, apressando-se a adquirir habitações e estabelecimentos comerciais ao desbarato. E não é verdade que até o próprio Estado não desdenhava tirar lucros substanciais das participações que detinha nos bancos e em empresas moribundas?

Isto porque o capitalismo não dispõe de uma política que lhe seja inerente. A democracia é o regime que, sem dúvida, mais lhe convém, naquilo em que lhe deixa as mãos livres. Mas tem provado, em numerosas ocasiões, que sabe renunciar a esse regime, quando a sua sobrevivência está em causa, pelo recurso a formas autoritárias dissimuladas, à ditadura franca e aberta ou aos fascismos. O capitalismo de Estado, esse monstro que não cessava de vilipendiar, já não lhe mete medo, sob a condição, bem entendido, de socializar as perdas devidas aos capitais «tóxicos» e de manter a mão firme sobre o Estado.

Diversos cenários se apresentavam como possíveis. O primeiro, no início da insurreição de massas, e provisoriamente ainda em certos casos particulares, tinha consistido em edificar uma barragem de medidas avulso, que aliviavam certos constrangimentos (IVA, por exemplo), prometia outras contra os privilégios (prémios patronais, impostos sobre as fortunas), procedia a «nacionalizações» de facto inevitáveis, ou promovia com grande espalhafato, avanços pretensamente «democráticos». Este cenário de compromisso social, apostando no regresso à calma, cedeu rapidamente o passo à proclamação dum estado de emergência, não recuando diante de nenhuma medida repressiva. As burguesias acossadas tinham lançado todas as suas forças na batalha e opunham o seu potencial ultra aperfeiçoado de violências à violência popular, armada apenas do seu número e da sua vontade de libertação. O estado de servidão consentida, uma vez varrido pela agressividade da crise, deixava como única saída política o Estado de classe assente sobre o seu próprio peso. E se, pelo maior de entre todos os milagres, os capi di tutti capi capitalistas tivessem renunciado à sua hegemonia, quem teria lamentado a economia de sangue derramado assim tornada possível?

9. Não existia, assim, alternativa à barbárie senão o socialismo. O paradoxo, para não dizer brutal contradição, surgira em plena luz entre a necessidade de acabar com o capitalismo, que parecia enfim ao alcance da mão, e a ausência de forças susceptíveis de a tornar realidade. A situação podia ser classificada de revolucionária, à escala mundial, graças precisamente à «mundialização», mas os seus potenciais fautores não estavam mundializados. Continuavam manietados pelas suas burguesias num sistema ao qual, com apenas raras excepções, todo o espectro das «esquerdas» se tinha ou submetido ou mesmo aliado. Os movimentos de massas, pelo seu próprio dinamismo, tinham arruinado os consensos mais sólidos e restituído à luta de classes as suas propriedades de vector internacional. As redes de comunicação, também elas mundializadas, não se substituíam às lutas, como queriam crer, de boa ou de má fé alguns divagadores, mas tinham a vantagem de lhes servir de porta-voz, difundindo globalmente experiências e solidariedades. Ao ponto de réplica que tinha atingido, a efervescência planetária, fosse qual fosse o grau que tivesse atingido no seio das diferentes conjunturas, libertara uma esperança, que também não tinha precedentes. O tempo dos focos de rebelião rapidamente extintos, bem como o das transições abortadas e das revoluções desviadas, chegava ao seu termo. Tornava-se lícito pensar que era nas próprias metrópoles em que tinha aparecido, se tinha expandido e exercido a sua dominação mundial, que o capitalismo corria o maior perigo. Ao cabo de um século e meio duma história repleta de furores, de medos e de erros de toda a espécie, Marx acabaria talvez por ter razão. O processo revolucionário, tão mal conduzido, tão falsificado fora da sua terra natal, ia triunfar, conforme anunciado, mas longo tempo desmentido, nos países mais desenvolvidos económica e politicamente, onde os confrontos de classe tinham assumido as formas mais radicais. Tendo abatido a Besta, teriam agora a propor ao concerto de nações iguais o modelo mais antinómico daquele que haviam imposto, durante séculos, no meio de sangue e lágrimas. A fundação da democracia seria enfim a tarefa comum. As primeiras medidas adoptadas nas situações nacionais em vias de libertação iriam nesse sentido.

Na guerra provocada pela crise, esta hipótese possuía a probabilidade mais elevada, pois dava, pela primeira vez, à alternativa duma ordem internacional de justiça e de progresso social, a sua verdadeira oportunidade. O seu fracasso pagar-se-ia com as mais graves regressões e com uma nova escravatura. A vitória, na qual se depositava uma prudência confiante, marcaria na verdade o fim da pré-história da Humanidade.

10. Decerto compreenderam que o relato que acabaram de ler não é uma ficção utópica. É um apelo à insurreição.


Nota do tradutor:

(1) Pára-quedas dourados expressão (irónica) que designa as indemnizações milionárias com que as grandes empresas compensam os maus gestores, despedindo-os do seu serviço, por vezes depois de anos de gestão ruinosa. Em Portugal, há alguns casos recentes notáveis. (retornar ao texto)

Inclusão: 13/02/2022