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Primeira Edição: ....
Fonte: http://resistir.info/
Tradução Rita Maia
HTML: Fernando Araújo.
O Líbano foi recentemente alvo de uma nova agressão por parte de Israel. Como de costume, depois de mais de meio século, o carrasco faz-se passar por vítima. O pretexto, desta vez, foi a captura de dois soldados israelenses, em território libanês, aproveitando um comprometimento militar. Com o intuito de criminalizar o acto, o termo raptados foi imediatamente substituído pelo de prisioneiros, o único adequado. Sem remontar a Ben Gurion e ao fantasma de transformar cristãos libaneses em aliados protegidos de Israel, convém lembrar que o plano de subjugar o Líbano é antigo e que Ariel Sharon se reviu nele, por ocasião da marcha sobre de Beirute, concluída pelos massacres em Sabra e Chatila (1982). Actualmente, a estratégia israelense inscreve-se claramente nos planos dos neoconservadores da administração Bush, que consistem em criar as bases para um "Grande Médio Oriente", subordinadas à lógica do imperialismo: é a sua tarefa de "rottweiler da América" (Uri Avnery). Trata-se de assegurar, pelo menos, o domínio que já conseguiram até ao rio Litani, e a partir daí, aniquilar o Hezbollah – o que serviria, também, de compensação pelo humilhante abandono do Sul do Líbano pelo Tsahal, em Maio de 2001.
Além disso, deve-se salientar o facto de o ataque ter sido desencadeado na véspera da assinatura pelo Fatah e pelo Hamas de um acordo de governo, elaborado a partir do documento redigido pelos prisioneiros palestinianos, pertencentes aos dois movimentos.
Em pouco mais de um mês, e à imagem do que se passa no Afeganistão e no Iraque, onde a exportação da democracia tem os resultados que se sabem, eis o balanço total do massacre deliberado de um país: mais de 1100 mortos, cerca de 4000 feridos, na sua maioria civis, entre os quais numerosas crianças; um milhão de refugiados, o que corresponderá a cerca de um terço da população; cidades e aldeias arrasadas; infra-estruturas destruídas: as principais estradas da rede rodoviária e 45 pontes – que teriam permitido a passagem de unidades de socorro –, 5 centrais eléctricas, uma delas bombardeada, o que causou uma nuvem negra sem precedentes no Mediterrâneo; 6500 empresas, escolas, centros de saúde… Será que crime de guerra é uma qualificação inconveniente? Durante esse tempo, Olmert e o seu bando de ex-pombas da paz, tiveram as mãos livres para actuar sobre a Palestina, continuar a rotina da repressão (200 mortos e 800 feridos desde Junho) concluída pela prisão (não se diz rapto) do presidente do Parlamento, de ministros e de numerosos membros eleitos, que se juntavam assim aos milhares de encarcerados palestinianos e libaneses. " Sionazismo ": denunciou um periodista italiano.
Teríamos gostado de saudar aqueles, que no seio do Estado de Israel, seriam capazes de levantar a voz contra uma tal barbárie. Extenuado, o tempo da esquerda acabou. A esquerda desapareceu. Exceptuando o último reduto de justos, a opinião pública (cerca de 80%) acorda o seu apoio ao governo, e, quando ela desce para os 30-35%, é simplesmente porque a "vitória-relâmpago-zero-mortos" anunciada não se produz.
Não é de estranhar, então, que no exterior reine a cobardia, a cumplicidade e a submissão, até um pouco mais do que de costume. Os chefes árabes, reunidos em Beirute, exprimem a sua solidariedade (moral), ou não estivesse já quase tudo cozinhado. A França, tão amada no Próximo Oriente, ama reciprocamente, até porque possui cerca de 4000 empresas na sua antiga colónia, e confia as suas manobras ao perito Douste-Blazy: ao reforçar o conluio, juntamente com os Estados Unidos, aquando do assassinato de Rafic Hariri (sobre o qual continuamos à espera de esclarecimentos), a França mobiliza o Conselho Nacional de Segurança a adoptar a resolução 1701, a qual, sob coberta de cessar-fogo e de retorno à paz, retoma, na verdade, a resolução 1559, que permitiu aos dois comparsas "trabalharem activamente para fazerem emergir no Líbano um poder local favorável às teses americanas" (G. Corm), que seria reforçado através da liquidação do movimento "terrorista" do Hezbollah.
A comunidade internacional, tendo permanecido impávida perante o massacre, acerta o compasso. Na conferência de Roma, o seu alto representante, Kofi Anan, que, no dia anterior, tinha acusado Israel de ataque deliberado contra a ONU, em Caná, cede às injunções de Condoleeza Rice, e aceita as desculpas cínicas de Tel Aviv.
Os nossos fazedores de opinião, da imprensa escrita e audiovisual, não estão impunes. Ao aderirem, sem o reconhecerem, à tese bushista do "islamo-fascismo", eles asseguram, com uma bela convicção, o serviço de propaganda sionista: Israel foi atacado, tem de se defender, embora a sua resposta seja "desproporcionada"; deplorando os mortos e a destruição "dos dois lados", escolhem qual deles deve ser lamentado; os combatentes do Hezbollah são cobardolas que "se escondem" entre a população (uma curiosa definição para "movimento popular"), daí a morte de civis; no entanto, solicitou-se generosamente aos ditos civis, por diversas ocasiões, que evacuassem as suas casas antes da chuva de mísseis (N.B.: bombas com fósforo); uma oficina informativa, Intelligence Online (do grupo francês Le Monde ) não tem receio de afirmar (28-08-06) que Hassan Nasrallah, o secretário-geral do Hezbollah, seguiu durante meses uma formação, paga pelo Irão, em Pyongyang…
Com efeito, o Hezbollah foi objecto de todas as ignomínias – terrorista, agente ao serviço do estrangeiro, fascista –, por parte de boas almas de "esquerda" (e de extrema esquerda). A estas, as mesmas que durante a "crise dos subúrbios" de Novembro último, prodigalizavam conselhos e precauções contra os "selvagens", deve-se perguntar com que direito é que elas se fazem procuradoras de uma resistência, da qual, na realidade, elas nada querem ouvir? "Partido de Deus", islamistas, logo não-progressistas, a equação é simples. Lembremos, apesar de ser impossível retomar aqui o fio da história, que nós temos a nossa parte de responsabilidade face a este fenómeno que se estende bem para além do Líbano. "Nós" – os comunistas, os socialistas, os progressistas, os democratas, os nacionalistas, os laicos e mesmo os republicanos, sob o efeito pós-Bandung, ou seja, da conjugação dos nossos erros e das nossas derrotas, das contra-ofensivas imperialistas e da constituição de regimes reaccionários apressados em eliminar toda a força opositora nos seus países – nós fomos vencidos. Ora, a política, tal como a natureza, tem horror do vazio. E os povos sabem, chegado o momento, ir buscar às suas reservas profundas a energia que lhes permitirá manterem-se de pé. Os exemplos dessa atitude são incontáveis. No Próximo Oriente, a época da OLP democrática, laica, igualitária entre homens e mulheres, enevoou-se. Estamos perante um verdadeiro projecto de expulsão e de exterminação, na Palestina e no Líbano indissociavelmente (ao contrário do que se afirmava no Quai d'Orsay, desde o início do conflito), que pode estender-se para outros lugares, na direcção da Síria e do Irão, perspectivando distâncias cada vez mais longas. Este projecto originou uma força de oposição que não só conseguiu enfrentá-lo, como também criar-lhe grandes dificuldades, isso está à vista de todos. O Hezbollah, convém repetir, nasceu num dos períodos mais duros da história contemporânea do Líbano, precisamente para acabar com a ocupação israelense. Tal como a comunidade xiita, de longe aquela menos bem distribuída, o Hezbollah é maioritário dentro do país, tendo-se tornado um partido nacional, com ministros e deputados, e, substituindo-se a um Estado debilitado, ele tem animado múltiplas redes de interajuda, gerado escolas e hospitais. Face à agressão deste Verão, o Hezbollah reuniu os cristãos em torno do general Aoun, do Partido Comunista (que ele havia perseguido, dez anos antes) e de outras forças nacionalistas; fez prova da coragem dos seus militantes e, tal como os vietnamitas outrora, do seu domínio das tácticas de guerrilha; conseguiu, num afrontamento, pudicamente apelidado de "assimétrico" pelos polemólogos [estudiosos do fenómeno da guerra], infligir ao "quarto exército do mundo" os golpes mais inesperados: algumas dezenas de tanques de guerra indestrutíveis destruídos, um avião inacessível abatido, um navio inaufragável naufragado, sem contar com o fogo de artifício permanente dos katiuchas inlocalizáveis. O Hezbollah conseguiu também impedir, dentro de uma nação com identidades comunitárias fortes, o rebentamento de uma guerra civil que se tenta provocar noutros lugares. O que lhe valeu a solidariedade, frequentemente activa, de uma grande parte da população, e que suscitou uma vaga de entusiasmo entre todos os povos do mundo muçulmano, particularmente entre os seus vizinhos mais próximos, pelo feito há muito adiado: combater o inimigo comum com sucesso. Evidentemente, isso não é nada. E as coisas não estão paradas. Num dos seus discursos, Nasrallah felicitava-se pelo facto de multidões de jovens, enquanto se manifestavam em seu favor, exibirem retratos de Che e de Chávez (note-se, o único chefe de Estado a ter exigido a retirada do seu embaixador de Israel). As discussões estão em curso para a mudança do nome do partido e da sua linha política futura. No caso de enveredarem pela islamização, terão de ser os libaneses a pronunciarem-se. Perante os nossos procuradores de luvas brancas, certamente que não. Este argumento tem sido tão utilizado pela propaganda mediática, que os apoios financeiros e bélicos por parte da Síria e do Irão, se é que eles existem, não teriam nada de chocante. Já para não falar, ainda que os nossos tablóides o esqueçam conscientemente, dos montantes obscenos de guita (um milhão de dólares oferecidos, há dias, pela Fundação Spielberg) e de engenhos de guerra ultra sofisticados que Israel recebe dos EUA, desde sempre, e que lhe confere a sua superioridade. Gostaria ainda de lembrar que o Vietname costumava beneficiar da ajuda soviética e os guerrilheiros franceses do que os britânicos lhes lançavam em pára-quedas.
E a FINUL? Duas palavras. A sua constituição, o seu número, a sua presença e o seu papel foram louvados com um grande alívio. A comunidade internacional quis recuperar aí a sua boa consciência mal dirigida. A França, eleita por Tel Aviv para assumir o comando, está doravante oficialmente e completamente reconciliada com a Casa Branca, e, melhor ainda, nas vésperas das eleições presidenciais, Chirac consegue habilmente obter o consenso tanto da direita como da esquerda, e inclusive do Partido Comunista. Mas atenção, a resolução 1701/1559, a única, até aqui, a receber o pleno acordo de Israel, vai ser aplicada. O desarmamento do Hezbollah permanece na ordem do dia. Para o levar a cabo, os Capacetes Azuis, verdadeira força de ocupação imperialista, deverão vestir o uniforme supletivo, encarregado de "acabar o trabalho" de um Tsahal abatido, que poderá começar a preparar tranquilamente um "second round", tão desejado pelos seus paranóicos. Não sendo obrigado a regressar às suas fronteiras, Israel conservará os territórios que anexou – as quintas de Shebaa no Líbano e esse pedaço da Síria, de que ninguém fala, o Golã. Tudo recomeçará e os palestinianos, ignorados e postos de lado, continuarão a sofrer as afrontas sem poder de reacção. Acrescentemos que, como de costume, nós, os europeus, incluindo portanto os prestáveis franceses, encarregar-nos-emos, para além de suportar os custos ocasionados pela presença militar, de limpar a casa: começando, por exemplo, por retirar a poluição petrolífera das praias, por financiar a reconstrução civil e a assistência humanitária, não sendo nunca aplicado o princípio do destruidor-pagador.
A Palestina, o Iraque, o Líbano são os postos avançados de uma resistência em vias de ganhar forma um pouco por todo o mundo contra os criminosos da "guerra sem fim". Apoiá-los é um dos deveres básicos dos progressistas de todas as filiações.