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O marxismo como movimento e como teoria atravessa presentemente uma crise. Já não se trata de uma crise no interior do marxismo, mas de uma crise do próprio marxismo.
Exteriormente, a crise reside na derrocada total da posição dominante a que o marxismo se tinha alcandorado, meio real meio ilusoriamente, no conjunto do movimento operário do período anterior à guerra. Interiormente, consiste numa modificação das próprias teoria e prática marxistas, modificação que os marxistas trouxeram à luz do dia mudando de posição face ao seu próprio Estado e ao sistema do Estado burguês em geral.
Limitar-se a constatar que a teoria revolucionária de Marx e Engels foi abastardada nas mãos dos epígonos e em parte abandonada e acreditar que a este marxismo empobrecido e falsificado se opõe a "doutrina pura" do marxismode Marx—Engels é uma maneira superficial e errónea de conceber a essência teórica da crise actual. Na crise contemporânea do marxismo trata-se antes, em última análise, de uma crise da própria teoria de Marx e Engels. A separação ideológica e dogmática da "doutrina pura" em relação ao movimento histórico real, incluindo o prosseguimento do desenvolvimento teórico, constitui ela mesma uma forma sob que se manifesta esta crise.
A forma histórica do marxismo que entrou nos nossos dias na fase crítica do seu desenvolvimento veio da segunda metade do século XIX: nos países da Europa onde o capitalismo não se tinha ainda desenvolvido completamente, o movimento operário conservou determinados elementos de uma teoria saída de condições históricas completamente diferentes.
É nesta génese histórica do marxismo actual que se baseia a separação da teoria e da prática que lhe é inerente desde o início. A teoria não é à partida a "expressão geral das lutas de classes que existem". É antes o resultado concentrado das lutas de classes de uma época anterior, sem nenhuma relação directa com as lutas de classes contemporâneas que estão prestes a reaparecer em condições totalmente transformadas.
Esta separação da teoria e da prática que se instaurou à partida não enfraqueceu do decurso do desenvolvimento, antes não cessou de se reforçar.
É esta a base que constitui o suporte de três fenómenoscaracterísticos: o "revisionismo", a "ortodoxia" e os esforços que de tempos a tempos visam "ressuscitar" a forma pura do marxismo revolucionário original. Em última instância é sobre ela que repousa a crise do marxismo, tal como se exprime na nossa época.
A teoria marxista não pôde continuar após 1850 a desenvolver-se de forma viva na prática do movimento operário porque as condições históricas transformadas da nova época do capitalismo e do movimento da classe operária o impediram.
Com o ano de 1850 completa-se o primeiro grande ciclo histórico do desenvolvimento capitalista. No decurso deste,o capitalismo já percorreu, sobre a sua base limitada de então todas asfases do seu desenvolvimento até ao ponto em que a parte consciente do proletariado pôde colocar na ordem do dia a revolução da própria classe operária. Por conseguinte, o movimento de classe do proletariado dessa época já atingiu — sobre esta base limitada — um grau de desenvolvimentobastante alto: as lutas revolucionárias então desenvolvidas por fracções da classe operária foram a expressão pratica disso mesmo; os que vieram a ser chamados "socialistas utópicos", formulando na época o primeiro conteúdo da consciência de classe proletária, deram-lhe expressão teórica.
Nesta época e baseados nos ensinamentos fundamentais que dela tiraram para prosseguir a elaboração da sua teoria, Marx e Engels operaram uma dupla crítica. Por um lado eles criticaram o conjunto dos fenómenos da sociedade capitalista existente (base económica e superestrutura) do novo ponto de vista da classe proletária; fazendo isto, eles retomaram sem o modificar o conteúdo desta nova consciência de classe proletária, tal como a realidade imediata das lutas de classes existentes e as formulações dos socialistas utópicos o tinham extraído. Por outro lado eles criticaram ao mesmo tempo o movimento proletário prático da sua época e as teorias do socialismo utópico e isto pela anexação dos melhores resultados da ciência burguesa de então: levando a classe proletária a conceber as leis reais do movimento e do desenvolvimento da sociedade capitalista em presença e ao mesmo tempo as condições reais da acção de classe revolucionária do proletariado.
Passado o ano de 1850, o capitalismo inicia sobre uma base alargada (do ponto de vista geográfico, técnico e de organização) um novo ciclo histórico do seu desenvolvimento. Nestas condições era impossível ao proletariado ligar-se directamente à forma revolucionária da teoria original de Marx, extraída das condições da época precedente. O movimento operário pôde preservar formalmente esta teoria a favor do desenvolvimento de uma consciência de classe revolucionária nas condições criadas pelo período de crise e de depressão dos anos 70. Mas não podia, nem em teoria nem na prática, apropriar-se plenamente do conteúdo revolucionário desta teoria.
A teoria marxista que o movimento operário europeu preservou na segunda metade do sec. XIX tinha já perdido sob mais que um aspecto o carácter directamente revolucionário que tinha na origem.
A concepção materialista da história apareceu no período revolucionário de 1850 comoelemento directo da acção subjectiva da classe revolucionária empenhadana crítica teórica e na subversão prática a que estavam submetidos a falsa aparência e o fenómeno efémero das relações sociais existentes. Deseguida, ela encaminhou-se cada vez mais no sentido de uma história intuitiva que reduziu abstractamente o desenvolvimento social a um curso objectivo definido por leis exteriores.
Na origem, a economia marxista era apresentada como uma crítica radical da economia política da classe burguesa, que devia encontrar a sua conclusão ao mesmo tempo teórica e prática numa verdadeira revolução. Este projecto primitivo sofreu mais tarde modificações da parte de Marx e sobretudo de Engels. Por economia marxista tanto os apologistas como os críticos do marxismo entendem hoje normalmente uma tentativa de fazer derivar teoricamente doconceito axiomático fundamental de "valor", admitido sem crítica, todosos fenómenos económicos dados na sociedade burguesa, tentativa cuja conclusão é o acabamento de um sistema científico. O fetiche que Marx queria abolir e contra o qual tinha dirigido a sua crítica revolucionária da economia política tornou-se o ídolo dos economistas marxistas científicos e um objecto de escândalo para os críticos burgueses e reformistas de Marx.
Após a morte de Marx e de Engels e da primeira geração marxista que eles tinham influenciado directamente, a ciência marxista preservada pelo movimento operário moderno não foi preservada senão como ideologia e cessou totalmente de se desenvolver de maneira viva. Os melhores guardiões do princípio revolucionário nos partidos marxistas, que tiveram de conduzir nesta época uma violenta luta defensiva contra a teoria e a prática reformistas que ganhavam em número, não souberam senão opor-se com hostilidade a tudo o que foi tentado para voltar a darvida e expressão à luta de classes do proletariado e inclinaram-se a ver a estagnação como um mal menor, comparada com as ameaças de falsificação que a burguesia fazia pesar sobre a teoria marxista (Rosa Luxemburgo, artigo "Guarda e progresso do marxismo"). Os impulsos ao prosseguimento neste período dum desenvolvimento vivo da teoria das lutas de classes proletárias, foram essencialmente obra de três tendências, que se opuseram com mais ou menos conhecimento de causa à teoria marxista ortodoxa: trata-se do reformismo sindical, do sindicalismo revolucionário e do bolchevismo leninista. Apesar da sua grande diversidade em tudo o resto, estas tendências têm de comum o facto de, em vez do desenvolvimento objectivo e submetido às leis do capitalismo, as três visaram fazer da acção subjectiva da classe operária o objecto principal da teoria socialista. Nesta medida elas aparecem na época como tendências progressistas no seio do desenvolvimento da classe operária e como as primeiras precursoras da nova praxis e da nova teoria de classe do proletariado que vão dever constituir-se no futuro sobre uma base nova.
Este esboço das causas e das condições históricas de que surgiu e se desenvolveu a crise contemporânea do marxismo permite extrair algumas indicações que ajudarão a definir em que direcção ela deve ser superada.
Nenhuma das tendências actuais representa uma expressão teórica suficiente das necessidades práticas que permanecem, apesar da pesada derrota por ele sofrida, da luta de classes do proletariado, luta revolucionária nos seus meios e nos seus fins.
O pretenso "marxismo ortodoxo" menos que qualquer outra! De todas as manifestações do marxismo, esta aparece como a mais nociva para o movimento progressista da classe proletária. Depois de ter sido congelada durante muito tempo como ideologia pura e de se ter mesmo desagregado enquanto ideologia na sua ultima fase (Kautsky), ela não passa de um entrave ao prosseguimento do desenvolvimento da teoria e da praxis da luta de classes do proletariado. Em contrapartida, não podemos liquidar simplesmente como reaccionárias, mesmo do ponto de vista do proletariado revolucionário, as duas outras tendências em que sobreviveu historicamente o movimento marxista de antes da guerra, o socialismo de Estado dos actuais partidossociais-democratas e o anti-imperialismo comunista. Neste caso trata-sede uma relação que existe entre o movimento do proletariado revolucionário e os dois grandes continuadores do movimento operário marxista de antes da guerra e que corresponde hoje com bastante exactidão à posição que pôde adoptar o conjunto do movimento da classe proletária face à teoria e à prática do partido progressista burguês radical numa época em que o movimento de classe burguês tinha ainda na Europa um carácter progressista bem delimitado.
É um facto histórico, que parece ter-se cumprido de maneira irrevogável, que no período que precedeu e se seguiu à guerra mundial a antiga ideologia revolucionária e anti-estatal do marxismo social-democrata se transformou num socialismo de Estado reformista nas metrópoles dominantes do sistema capitalista mundial, os países ditos imperialistas — à maneira do cristianismo revolucionário e hostil ao poder central que se transformou no início da Idade Média em religião oficial do Império Romano.
Por outro lado, nos grandes territórios à margem do sistema capitalista mundial, que não chegaram ainda a um desenvolvimento independente do capitalismo, a forma de expressão teórica que as classes oprimidas e exploradas procuram adaptar às suas lutas no período actual parece constituir-se presentemente em ligação com o pretenso comunismo. Ela não pode liga-se ao velho marxismo, pois este toma por base uma ligação directa positiva que existe entre a revolução burguesa e a revolução proletária, entre a vitória do capitalismo sobre as formas de economia e de sociedade pré-capitalistas e a luta de classes proletária, enquanto aqui a ligação da luta de classes do proletariado com as lutas da burguesia indígena e estrangeira organiza-se de forma completamente diferente, certamente não por princípio, mas assim aparece nas suas manifestações imediatas. Não podem ligar-se ao reformismo que nos nossos dias está indissociavelmente ligado à expansão e à política colonial das metrópoles do sistema capitalista mundial. Pelo contrário, encontram no bolchevismo leninista e no comunismo uma forma de ideologia marxista de que podem adoptar o carácter anti-imperialista explícito como ideologia provisória da sua própria luta de classes anti-imperialista: trata-se aí de um mecanismo que podemos de novo comparar à expansão do cristianismo entre os bárbaros para lá das fronteiras do Império.
O marxismo, enquanto fenómeno histórico que começou por retirar os seus traços fundamentais das lutas de classes revolucionárias da primeira metade do século XIX e de seguida permaneceu e mudou na segunda metade do século tornando-se a ideologia revolucionária dum movimento proletário que, na sua verdadeira essência, já não era revolucionário, éhoje uma realidade do passado. Não obstante, a nova teoria da revoluçãoproletária, que vai emergir o período que se avizinha, será uma continuação histórica do marxismo no sentido histórico mais profundo. A luta de classes do proletariado é para sempre devedora a Marx e Engels da primeira recapitulação grandiosa das ideias proletárias por eles dadana época dos começos do seu desenvolvimento revolucionário e que continua a ser a forma clássica da nova consciência revolucionária da classe operária em luta pela sua libertação.
Inclusão | 10/03/2015 |