"Será que não abordar o tema da “mentira” equivale a minimizar a “verdade”? De facto, após o idealismo alemão, cujos representantes (Kant, Fichte, Hegel) ainda se referiram à mentira, condenando-a, o tema parece ter esmorecido na boca e na pena dos filósofos, persistindo sobretudo nos tratados de moral que a seu respeito afinaram as distinções e avaliaram, com severidade diversa, os casos da sua ocorrência. Talvez o eclipse crescente da temática da mentira indique - quem sabe? - um hiato entre o acto de filosofar, radical decerto no intuito, mas não tanto na prática, porque a filosofia foi deixando de ser, em grande parte, um “exercício espiritual” que molda a vida. [...] Surge-nos, pois, quase intolerável, a posição de Kant neste pequeno e denso ensaio, com o seu rigor fechado a qualquer excepção à verdade. Ressoam nele e noutras páginas afins do filósofo (de modo implícito, mas comprovável) alguns acordes agostinianos que, sem contemplações, fustigam a voluntas fallendi (a vontade de enganar), o “coração dúplice”, que o mestre de Konigsberg orquestra com o tema da obrigação moral de veracidade consigo e perante si mesmo, sem olhar às consequências. Ex ungue leonem... Se pela garra se adivinha e identifica o leão, destas breves páginas e da sua argumentação cerrada e concisa, fruto da maturidade última de Kant, que as escreveu nos seus 73 anos, somos levados ao cerne da sua doutrina moral, com a universalidade e a exigência que a habitam. Se a solução proposta causa desconforto, pois a vida nos seus meandros, e por vezes nos seus becos sem saída, não tem esta clareza, obriga pelo menos a pensar, abre sendas e fendas - que é o fito dos textos filosóficos. " (da Apresentação) |