A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 5. O Método de Ascensão do Abstrato ao Concreto em O Capital de Marx

1. Concreto Pleno de Abstração e Análise como Condição da Síntese Teórica


Agora devemos nos voltar à consideração da estrutura lógica de O Capital, comprando ele com a lógica do pensamento ricardiano e as opiniões teóricas dos predecessores de Marx no campo da lógica; essa discussão deve revelar a lógica de Marx em sua aplicação prática real da análise dos fatos, da análise dos dados empíricos.

Nossa tarefa é a de isolar os elementos lógicos universais do tratamento de Marx dos materiais da economia, as formas lógicas que são aplicáveis, devido a sua universalidade, a qualquer outra disciplina teórica.

O Capital, como é bem conhecido, começa com uma análise bastante minuciosa e detalhada da categoria do valor, i.e., da forma real das relações econômicas que é a forma universal e elementar do começo do capital. Nesta análise, o campo de visão de Marx engloba uma única, e, como já observamos, extremamente rara, no capitalismo desenvolvido, relação fatual entre homens – troca direta de uma mercadoria por outra. Neste estágio de sua investigação do sistema capitalista, Marx intencionalmente não leva em conta outras formas – dinheiro ou lucro ou salários. Todas essas coisas são ainda acreditadas como não existentes.

Contudo, a análise dessa forma única das relações econômicas produz, como seu resultado, uma expressão teórica da forma objetivamente universal de todos os fenômenos e categorias do capitalismo desenvolvido sem exceção, uma expressão de uma concreticidade desenvolvida, uma expressão teórica do valor enquanto tal, da forma universal do valor.

O tipo elementar de existência do valor coincide com o valor em geral, e o desenvolvimento real verdadeiramente delineável dessa forma de valor em outras formas constitui o conteúdo objetivo de dedução das categorias de O Capital. A dedução nesta concepção, diferente da dedução ricardiana, perde seu caráter formal: aqui ela expressa diretamente a descida real de algumas formas da interação econômica a partir de outras.

Esse é precisamente o ponto que falta no sistema de Ricardo e seus seguidores a partir do campo burguês.

A concepção de um conceito universal subjacente a todo o sistema de categorias da ciência, aplicado aqui por Marx, não pode ser explicado pela especificidade do assunto da economia política. Ela reflete a lei dialética universal do desvelamento de qualquer concreticidade objetiva – natural, sócio-histórica ou espiritual.

Essa concepção é de grande importância para qualquer ciência moderna. Para dar uma definição teórica concreta da vida como a categoria básica da biologia, para responder a questão de o que é vida em geral, vida enquanto tal, é preciso agir da mesma forma que Marx agiu com o valor em geral, isto é, deve-se empreender uma análise concreta da composição e modo de existência de uma manifestação elementar da vida – a proteína elementar do corpo. Essa é a única forma de obter uma definição real e de revelar a essência da questão.

Somente desta forma, e não por abstração de características geral de todos os fenômenos da vida sem exceção, que se pode obter uma concepção realmente científica e materialista da vida, criando o conceito de vida enquanto tal.

A situação é a mesma na química. O conceito de elemento químico enquanto tal, de elemento químico em geral, não pode ser elaborado através da abstração das características gerais e idênticas que o hélio tem em comum com o urânio ou silício com nitrogênio, ou as características comuns a todos os elementos da tabela periódica. O conceito de elemento químico pode ser formado por consideração detalhada do elemento mais simples do sistema – hidrogênio. O hidrogênio aparece neste caso como a estrutura elementar na decomposição de quais propriedades químicas da matéria desaparecem no geral, se a decomposição analítica é realizada em um experimento real ou somente mentalmente. O hidrogênio é, portanto, um elemento universal concreto do quimismo. As leis necessárias universais que surgem e desaparecem com elas, são as leis mais simples da existência do elemento químico em geral. Como leis elementares e universais, elas ocorrerão no urânio, ouro, silício, e assim por diante. E qualquer um desses elementos mais complexos pode, em princípio, ser reduzido ao hidrogênio, que, por sinal, ocorre tanto na natureza quanto nos experimentos com processos nucleares.

Em outras palavras, o que ocorre aqui é a mesma transformação mútua viva do universal e particular, do elementar e complexo que observamos nas categorias do capital, onde o lucro surge como valor desenvolvido, como uma forma elementar desenvolvida de mercadoria, da qual o lucro é continuamente reduzido no movimento real do sistema econômico e, portanto, no pensamento reproduzindo este movimento. Aqui, assim como qualquer outro lugar, o conceito universal concreto registra uma forma elementar objetiva real de existência de todo o sistema, ao invés de uma abstração vazia.

“Valor em geral” (valor enquanto tal), “vida em geral”, “elemento químico” – todos esses conceitos são totalmente concretos. Isso significa que a realidade refletida neles é a realidade objetivamente existente no presente (ou em qualquer época no passado), existente por si mesma como um caso elementar e posteriormente indivisível de dada concreticidade. É exatamente por isso que ela pode ser isolada como um objeto específico de consideração e pode ser estudada e obtida por experimento.

Se se fosse conceber o valor (assim como qualquer outra categoria universal) somente como reflexo das características universais abstratas existentes em todos os fenômenos particular desenvolvidos sem exceção, não poderia ser estudado enquanto tal, todos esses fenômenos desenvolvidos estritamente ignorados. A análise do universal seria, neste caso, impossível em qualquer outra forma, exceto aquela da análise formal do conceito. No mundo sensorialmente determinado, não pode existir “animal em geral” ou “elemento químico enquanto tal” ou “valor” – como reflexos das características gerais abstratas eles realmente existem somente na cabeça.

Ricardo não tinha a menor suspeita de que o valor deveria ser estudo concretamente em sua forma, de que deveria, em geral, ser estudado enquanto tal, em estrita abstração do lucro, renda, juros, capital e competição. Sua abstração do valor é, portanto, como Marx mostrou, duplamente deficiente:

Por um lado, ele [Ricardo] deve ser repreendido por não ir longe o suficiente, por não levar sua abstração à conclusão, por exemplo, quando ele analisa o valor da mercadoria, ele de uma vez se permite ser influenciado por consideração de todos os tipos de condições concretas. Por outro lado, deve-se repreendê-lo por considerar a forma fenomênica como prova ou exposição imediata e direta das leis gerais, e por falhar em interpretá-las. Em consideração ao primeiro, sua abstração é muito incompleta; em consideração ao segundo, é a abstração formal mesma que está errada (Marx, 1968, p. 106)Referência1.

Não é difícil formular o próprio ponto de vista de Marx da categoria universal assumida por essa avaliação. A abstração deve ser, primeiro, completa, e segundo, significativa, ao invés de formal. Somente então será correta e objetiva.

Entretanto, o que isso significa?

Já mostramos que a plenitude de abstração assume que ela expressa diretamente algo bastante diferente das características universais abstratas inerentes em absolutamente todos os fenômenos particulares aos quais essa abstração universal se refere; ao invés disso, ela expressa as características concretas do elemento objetivamente mais simples posteriormente indivisível de um sistema de interação, uma “célula” do todo analisado.

No sistema capitalista de interação entre homens na produção social da vida material, essa célula acaba sendo uma mercadoria, a forma mercadoria elementar de interação. Na biologia, essa célula é aparentemente a estrutura proteica mais simples, na fisiologia a atividade nervosa superior, o reflexo condicionado etc.

Neste ponto, a questão do “início da ciência”, da categoria universal básica subjacente a todo o sistema de categorias concretas da ciência, está intimamente vinculada com a questão da concreticidade da análise dos limites objetivamente admissíveis da divisão analítica do objeto.

A análise teórica concreta significa que uma coisa é dividida em formas necessárias internamente conectadas de sua existência específica a ela, ao invés de componentes indiferentes a sua natureza específica.

O método analítico de Marx é diametralmente oposto a este respeito ao chamado método analítico unilateral, como ilustrado pela prática da economia política burguesa clássica. O método analítico universal, herdado pelos economistas dos séculos XVII e XVIII da ciência natural mecanicista contemporânea e a filosofia do empirismo (através de Locke), corresponde totalmente à concepção da realidade objetiva como um tipo de agregado dos elementos constituintes imutáveis e eternos, idênticos em qualquer objeto da natureza. De acordo com essa concepção, conhecer uma coisa significa analisa-la nestes constituintes imutáveis e eternos e então compreender o modo de interação deles com esta coisa.

“Trabalho”, “necessidade”, “lucro” na teoria de Smith e Ricardo são, a este respeito, um exemplo tão marcado das abstrações analítica unilaterais, nas quais toda a determinidade histórica concreta do objeto é extinta, quanto “a partícula” da física cartesiana, o “átomo” de Newton e categorias similares da ciência daquela época. Tanto Smith quanto Ricardo se esforçaram para entender o sistema capitalista de interação como um todo complexo cujas partes componentes são realidades idênticas eternas para qualquer estágio de desenvolvimento da humanidade: trabalho, instrumentos de trabalho (capital), necessidades, produto excedente etc.

Essa operação de divisão analítica do objeto pode sempre ser desempenhada tanto experimentalmente quanto mentalmente. Um coelho vivo pode ser analiticamente decomposto em elementos químicos, em “partículas” mecânicas etc. Mas, tendo assim obtido um agregado de elementos analiticamente isolados, não somos capazes de desempenhar uma operação reversa, mesmo depois de uma consideração mais detalhada desses elementos – nunca entenderemos porque sua combinação antes do desmembramento analítico existia como um coelho vivo.

Neste caso a análise matou e destruiu exatamente o que pretendíamos entender desta forma – a interação concreta e viva específica para a coisa dada. A análise tornou a síntese impossível.

Os economistas clássicos burgueses, a teoria de Smith e Ricardo, se depararam com a mesma dificuldade.

A síntese, uma compreensão da conexão necessária existente entre os elementos constituintes abstratamente considerados do objeto (trabalho, capital, lucro etc.), provou ser impossível exatamente porque a análise que isolou essas categorias era uma análise unilateral: ela quebrou aquela própria forma histórica concreta de conexão dessas categorias.

A dificuldade do problema de análise e síntese foi observado já por Aristóteles. Ele viu muito bem que a análise unilateral não poderia por si mesmo resolver os problemas do conhecimento. Em sua Metafísica, ele chega à conclusão de que a tarefa do conhecimento é dual: não é suficiente encontrar de quais partes uma coisa consiste – deve-se também descobrir porque essas partes constituintes estão interconectadas de tal forma que sua combinação constitui a coisa concreta determinada e não uma outra coisa.

Uma coisa determinada em contemplação não é difícil de analisar em seus elementos constituintes: a cadeira é preta, feita de madeira, com quatro pernas, pesada, com uma cadeira redonda etc., etc. Esse é um exemplo elementar da análise empírica e, ao mesmo tempo, um exemplo de síntese empírica de definições abstratas em um julgamento sobre uma coisa.

Deve-se observar que uma coincidência direta da análise e síntese também ocorre neste caso. Na proposição “a cadeira é preta”, pode-se discernir ambas. Por um lado, que é síntese pura, uma combinação de duas abstrações em uma proposição. Por outro lado, é uma análise tão pura – um isolamento de duas definições diferentes em uma imagem sensorialmente determinada. Tanto análise quanto síntese ocorrem simultaneamente em uma elocução de uma proposição elementar (julgamento) relativa à coisa.

Neste exemplo, entretanto, a garantia e base de exatidão da análise e síntese é direta contemplação: nela, as características sintetizadas na proposição aparecem como combinadas e, ao mesmo tempo, distintas. A própria contemplação é a base e critério de exatidão do isolamento analítico de abstrações vinculadas na proposição.

Assim, é fácil entender a coincidência da análise e síntese em uma proposição relativa a um fato individual, em uma elocução expressando o estado real das coisas. É muito mais difícil entender a relação entre a análise e a síntese e uma proposição teórica que precisa se basear em solos melhores que a mera indicação do fato de que uma coisa aparece na contemplação em um certo aspecto e não outro.

A proposição “todos os cisnes são brancos” não apresenta quaisquer dificuldades para compreensão a partir do ponto de vista da lógica, precisamente porque não expressa a necessidade de conexão entre as duas definições. A proposição “todos os objetos da natureza são extensivos” é uma questão bastante diferente. Um cisne pode muito bem ser não-branco, enquanto que a proposição “todos os objetos da natureza são extensivos” implementa uma síntese necessária de duas definições. Objetos inextensivos da natureza são não-existentes – e, pelo contrário, não pode existir extensão que não seria um atributo de um objeto da natureza.

Em outras palavras, uma proposição teórica é um elo de abstrações, cada uma expressando uma determinidade sem a qual a coisa cessa de ser o que ela é, cessa de existir como uma coisa determinada.

Um cisne pode ser pintado de qualquer outra cor que não branco – ele não deixará de ser um cisne.

Mas, a extensão não pode ser tirada de um objeto da natureza sem destruir o próprio objeto.

Uma proposição teórica deve, portanto, conter somente aquelas abstrações que expressam as formas de existência do objeto determinado necessariamente inerentes a ele.

O que é garantir que uma proposição conecta precisamente essas definições abstratas?

A contemplação empírica de uma coisa não pode responder essa questão. Para separar a forma necessário do ser de uma coisa de outra que pode ou não existir, sem prejudicar a existência de uma coisa como uma coisa concreta determinada (um cisne, um corpo da natureza, trabalho etc.), deve-se proceder da contemplação para o experimento sensorialmente prático, para a prática social do homem em sua totalidade histórica.

É somente a prática da humanidade social, isto é, a totalidade das formas historicamente desenvolvidas de interação real do homem social com a natureza, que prove ser tanto a base quanto o critério de verificação da análise e síntese teórica.

Como esse problema real se apresenta no desenvolvimento da economia política?

Isso pode ser facilmente rastreado ao se considerar a categoria de trabalho e a categoria de valor conectada com ele.

Na medida em que a categoria valor forma a base de toda a teoria e a base teórica de todas as outras generalizações, a concepção de trabalho como a substância do valor determina o entendimento teórico de todos os outros fenômenos do sistema capitalista.

A proposição “a substância do valor é o trabalho” verdadeira? Não é. Essa proposição teórica (julgamento) é equivalente em sua importância teórica à proposição “o homem é por natureza um proprietário privado” – uma afirmação que ser um proprietário privado é o mesmo tipo de atributo na natureza do homem como extensão em um corpo da natureza.

Em outros termos, a consideração da situação empiricamente determinada revela características abstratas das quais nenhuma está necessariamente contida na natureza do trabalho e valor.

Marx deu uma explicação lúcida de toda a questão. Uma propriedade historicamente transiente de trabalho é aqui tomada como a característica expressando sua natureza interna absoluta. De longe nem todos os trabalhos criam valor, nem qualquer forma historicamente concreta de trabalho, da mesma forma que não é o homem enquanto tal que é o proprietário da propriedade privada, mas um homem historicamente concreto, homem dentro de uma forma historicamente concreta, definida de ser social.

Mas, como distinguir entre aquilo que é inerente em uma forma historicamente definida da existência do homem, e aquela que é inerente ao homem em geral?

Isso só pode ser feito por uma análise detalhada da realidade sobre a qual um julgamento teórico é feito a partir da perspectiva de toda a prática da humanidade. O último é o único critério que permite confidentemente abstrair ou revelar analiticamente uma definição que expressaria a forma do ser que é o atributo do objeto.

Tanto na época de Smith e Ricardo quanto na de Marx, o ser do homem como um proprietário privado foi um fato empiricamente universal. A habilidade do trabalho de criar mercadorias e valor, ao invés de meramente um produto, foi também um fato empiricamente universal.

Os representantes clássicos da economia política gravaram esse fato empiricamente universal na proposição “a substância do valor é o trabalho” – trabalho em geral, sem maiores qualificações teóricas expressando sua determinidade histórica concreta dentro da qual ela cria mercadoria e não produto, valor e não valor de uso.

Na medida em que os clássicos da economia política elaboraram definições teóricas abstratas com a ajuda do método analítico unilateral, eles foram incapazes de entender porque o trabalho apareceu agora como capital, agora como salários, agora como renda.

Essa tarefa lógica que era comum tanto aos cientistas naturais dos séculos XVII e XVIII quanto para Smith e Ricardo, é essencialmente insolúvel. Os primeiros tentaram entender porque e de que maneira os átomos, partículas e mônadas poderiam formar em diferentes combinações agora um sistema cósmico, agora o corpo de um animal; os últimos se esforçaram para compreender porque e de que maneira o trabalho em geral gerava agora capital, agora renda, agora salários.

Nem os primeiros, nem os últimos poderiam obter uma síntese teórica – exatamente porque a análise deles não era concreta, mas sim dividia o objeto em partes comuns indiferentes a qualquer esfera objetiva ou qualquer forma histórica de produção.

O trabalho em geral é uma condição absolutamente necessária do surgimento e desenvolvimento da renda, capital, salários e todas as outras categorias especificamente capitalistas. Mas, é também uma condição do não-ser delas, da negação e destruição delas. O trabalho em geral é tão indiferente ao ser do capital quanto ao seu não-ser. É uma condição necessária universal de seu surgimento, mas não é uma condição internamente necessária, uma condição que é, ao mesmo tempo, uma sequência necessária. A forma da ação recíproca interna, condicionante recíproco interno, está ausente aqui.

Com relação a este defeito das abstrações analítica unilaterais elaboradas pelos clássicos da ciência burguesa, Marx comentou:

É igualmente impossível passar diretamente do trabalho ao capital, assim como das diferentes raças humanas diretamente ao banqueiro ou da natureza à máquina a vapor (Marx, 2010, pp. 45-46)Referência 2.

Esse é um eco do conhecido aforisma de Feuerbach, “não se pode deduzir diretamente até mesmo um burocrata da natureza”; Marx também traça a mesma conclusão a partir deste aspecto da questão: todas as dificuldades da análise e síntese teórica são resolvidas na realidade com base na categoria da ação recíproca histórica concreta, condicionante recíproco dos fenômenos dentro de um todo definido historicamente desenvolvido, dentro de um sistema histórico concreto de interação.

Colocando de forma diferente, tanto análise/síntese quando dedução/indução cessam de ser metafisicamente polares e, portanto, formas lógicas desamparadas somente com base em um ponto de vista histórico consciente da realidade analisada, com base na concepção de qualquer realidade objetiva como um sistema surgindo e se desenvolvendo historicamente de fenômenos interagindo.

Esse ponto de vista deu a Marx um critério claro que ele, procedendo a partir de toda a história racionalmente compreendida da prática da humanidade, confidentemente aplicou para a solução das dificuldades da análise e síntese teórica e dedução e indução teórica.

A prática da humanidade em sua totalidade histórica foi usada por Marx como critério para distinguir entre a síntese empírica e a síntese teórica, das abstrações analíticas refletindo o estado empírico universal das coisas e as abstrações teóricas da interconexão que reflete a conexão internamente necessária dos fenômenos que elas expressam.

Em Smith e Ricardo (e até mesmo em Hegel) a síntese puramente empírica é frequentemente exposta como uma síntese teórica; eles continuamente expõem a forma historicamente transiente do fenômeno como sua estrutura interna (como sua natureza eterna), deduzindo a justificativa dos fatos empíricos mais grosseiros a partir da natureza das coisas, enquanto que o método de Marx levanta as barreiras lógicas e filosóficas mais rigorosas no caminho de tal movimento do pensamento.

Dedução e indução, análise e síntese provam ser poderosos meios lógicos de processar fatos empíricos exatamente porque eles são conscientemente usados a serviço de uma abordagem essencialmente histórica de pesquisa, sendo baseado sobre a concepção materialista dialética do objeto como um sistema surgindo e se desenvolvendo historicamente de fenômenos interagindo em uma maneira específica.

Por essa razão, o método analítico de Marx, o método da ascensão do todo dado em contemplação para as condições de sua possibilidade, coincide com o método de dedução genética das definições teóricas, com o delineamento lógico da descida real de alguns fenômenos a partir de outros (do dinheiro a partir do movimento do mercado de mercadorias, do capital a partir do movimento da circulação de dinheiro-mercadoria na qual a força de trabalho se torna envolvida etc.). Esse ponto de vista essencialmente histórico das coisas e a expressão teórica delas permitiu a Marx formular claramente a questão da substância real das propriedades do valor do produto do trabalho, da substância universal de todas as outras categorias históricas concretas da economia política.

Não é o trabalho em geral, mas a forma histórica concreta de trabalho que foi concebida como a substância do valor. Nessa conexão, nova luz foi jogada sobre a análise teórica da forma do valor: ela surgiu como a categoria universal concreta que permite entender teoricamente (deduzir) que a necessidade histórica concreta real com a qual o valor é transformado em mais-valor, em capital, salários, renda e todas as outras categorias concretas desenvolvidas.

Em outras palavras, pela primeira vez uma análise estava dando o ponto de partida a partir do qual se pode realmente desenvolver um sistema inteiro de definições teóricas do objeto, o sistema que logicamente reflete a necessidade da gênese real da formação capitalista.

No que consiste a análise concreta da forma do valor, aquela mesma análise que David Ricardo falhou em conduzir? A resposta a essa questão deve nos dar a chave para um entendimento do método de ascensão do abstrato ao concreto.

A ascensão de uma definição teórica universal do objeto para um entendimento da inteira complexidade de sua estrutura historicamente desenvolvida (concreticidade) presume uma análise concreta e compreensiva da categoria universal básica da ciência. Vimos que a concreticidade insuficiente da análise do valor de Ricardo determinou o fracasso de sua intenção de desenvolver um sistema total de definições teóricas, de construir todo o edifício da ciência sobre uma base sólida única; isso não permitiu a ele deduzir até mesmo a categoria mais próxima, dinheiro, para não mencionar todas as outras categorias.

Em que reside a qualidade específica da análise de Marx do valor, que forma a base sólida da síntese teórica das categorias, permitindo a ele proceder de forma mais rigorosa da consideração do valor para a consideração do dinheiro, capital etc.?

Assim formulada, essa questão compele a lógica a encarar o problema da contradição nas definições de uma coisa, um problema que, em última análise, contém a chave para tudo o mais. A contradição como a unidade e coincidência de definições teóricas mutuamente excludentes foi descoberta por Marx como sendo a solução da charada do concreto e uma forma de expressar teoricamente o concreto em conceitos. Agora passaremos à análise deste ponto.