A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 3. Ascensão do Abstrato ao Concreto

1. Sobre a Formulação da Questão


Ao analisar o método da economia política, Marx propõe um número de proposições de enorme importância filosófica. Estas incluem a bem conhecida tese em respeito à ascensão do abstrato ao concreto como o único procedimento possível e correto para a solução pelo pensamento da tarefa específica do conhecimento teórico do mundo.

O concreto, na concepção de Marx, é unidade da diversidade.

É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação. [...] O todo, na forma em que aparece no espírito como todo-de-pensamento, é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, de um modo que difere da apropriação desse mundo pela arte, pela religião, pelo espírito prático (Marx, 2003, pp. 248-249)Referência 1.

O método de ascensão do abstrato ao concreto, onde “as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento” (Marx, 2011, p. 54)Referência 2, foi definida por Marx como um método correto na perspectiva científica. Este método é, de acordo com Marx, aquele específico “modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental” (Marx, 2011, pp. 54-55)Referência 3.

É somente este método que permite o teórico resolver sua tarefa especial, a tarefa de processar o dado da contemplação e noção em conceitos.

Visando uma importância particular dessas proposições para compreender o método de O Capital é preciso se debruçar sobre eles em grandes detalhes, pois eles têm se tornado frequentemente objetos de falsificação das ideias econômicas e filosóficas de Marx pelos filósofos burgueses e por revisionistas.

Vamos relembrar primeiro de tudo que por concreto Marx não entende absolutamente somente a imagem da contemplação viva, a forma sensorial de reflexo do objeto na consciência, e também ele não interpreta o abstrato como somente “destilação mental”. Se alguém lê as proposições acima de Marx na perspectiva dessas noções do abstrato e do concreto, característica do empirismo e neokantismo limitados, chegará em um absurdo incompatível com a teoria do reflexo. Teria a ilusão de que Marx recomenda a ascensão da abstração mental como algo imediatamente dado à imagem da contemplação viva como algo secundário e derivado em consideração ao pensamento.

Ao ler Marx, é preciso então tomar cuidado para se livrar de noções acríticas emprestadas dos tratados pré-marxianos e neokantianos da epistemologia.

Da perspectiva das definições de Marx do abstrato e do concreto, as proposições acima caracterizam a dialética da transição da contemplação viva ao pensamento abstrato, da contemplação e noção ao conceito, do concreto como é dado em contemplação e noção ao concreto como aparece no pensamento teórico.

Marx é primeiro de tudo um materialista. Em outras palavras, ele procede de um ponto de vista de que todas aquelas abstrações através das quais e pelas quais a síntese pela qual um teórico reconstrói mentalmente o mundo são réplicas conceituais de momentos separados da própria realidade objetiva reveladas pela análise. Em outras palavras, é suposto como algo bastante óbvio de que cada definição abstrata tomada separadamente é um produto de generalização e análise do dado imediato da contemplação. Neste sentido, e somente neste sentido, é o produto da redução do concreto na realidade à sua expressão resumida abstrata na consciência.

Marx diz que todas as definições usadas na (pré-marxiana) economia política eram produtos do movimento longe do concreto, dado em noção, a abstrações cada vez mais escassas. Ao descrever o caminho histórico percorrido pela economia política, Marx assim caracterizou como um caminho começando com o real e concreto e levando primeiro a “abstrações escassas” e somente depois disso, das “abstrações escassas” a um sistema, uma síntese, uma combinação de abstrações na teoria.

A redução do concreto pleno da realidade a sua expressão resumida (abstrata) na consciência é, evidente, um pré-requisito e uma condição sem a qual qualquer pesquisa teórica especial com tanto proceder ou até mesmo começar. Além disso, esta redução não é somente um pré-requisito ou condição histórica da assimilação teórica do mundo, mas também um elemento orgânico do próprio processo de construção de um sistema de definições científicas, isto é, da atividade sintetizante da mente.

As definições que os teóricos organizam em um sistema não são, naturalmente, emprestadas prontas da fase prévia (ou estágio) do conhecimento. Sua tarefa não é de forma alguma restrita à síntese puramente formal de “abstrações escassas” prontas, de acordo com as regras familiares para tais sínteses. Ao construir um sistema fora das abstrações obtidas anteriormente, prontas, um teórico sempre as analise criticamente, as verifica com fatos e assim vai mais uma vez através da ascensão do concreto na realidade ao abstrato no pensamento. Essa ascensão é assim não somente e não tanto um pré-requisito da construção de um sistema da ciência como um elemento orgânico da própria construção.

Definições abstratas separadas, cuja síntese produz o “concreto no pensamento”, são formadas no curso da própria ascensão do abstrato ao concreto. Assim o processo teórico levando à obtenção do conhecimento concreto é sempre, em cada elo separado assim como no todo, também um processo de redução do concreto ao abstrato.

Em outras palavras, pode-se dizer que a ascensão do concreto ao abstrato e a ascensão do abstrato ao concreto, são duas formas mutuamente supostas de assimilação teórica do mundo, do pensamento abstrato. Cada um deles é realizado somente através de seu oposto e em unidade com ele. A ascensão do abstrato ao concreto sem seu oposto, sem a ascensão do concreto ao abstrato se tornaria uma ligação puramente escolástica das abstrações escassas prontas, emprestadas acriticamente. Ao contrário, uma redução do concreto ao abstrato, desempenhada aleatoriamente, sem uma ideia geral claramente percebida da pesquisa, sem uma hipótese, não pode e também não irá produzir uma teoria. Produzirá somente uma pilha disjunta de abstrações escassas.

E mesmo assim, porque Marx, levando tudo isso em conta, definiu a ascensão do abstrato ao concreto como o único modo possível e cientificamente correto de assimilação (reflexo) teórica do mundo? A razão é que a dialética, diferente do ecletismo, não raciocina pelo princípio do “por um lado, por outro lado”, mas sempre aponta o aspecto determinante, aquele elemento na unidade de opostos que é na instância dada o líder ou determinante. Este é um axioma da dialética.

A característica peculiar e específica da assimilação (sendo distinto da mera familiaridade empírica com fatos) teórica é que cada abstração separada é formada dentro de um movimento geral de pesquisa em direção a uma concepção mais compreensiva e completa, isto é, concreta, do objeto. Cada generalização separada (de acordo com a fórmula “do concreto ao abstrato”) tem um significado somente na condição de que é um passo no caminho da ascensão do reflexo abstrato do objeto no pensamento, a sua expressão cada vez mais concreta no conceito.

Se um ato separado de generalização não é simultaneamente um passo em direção ao desenvolvimento da teoria, um passo ao longo do caminho do conhecimento já disponível a um conhecimento novo e mais completo, se ele não avança a teoria como um todo sendo enriquecido com uma definição geral nova, mas meramente repete o que já é conhecido, isso prova ser simplesmente insignificante em respeito ao desenvolvimento da teoria.

Em outras palavras, o concreto (isto é, o movimento contínuo a uma compreensão teórica cada vez mais concreta) surge aqui como um objetivo específico do pensamento teórico. Enquanto tal objetivo, o concreto determina, como uma lei, o modo de ação (ação mental, naturalmente) do teórico em cada caso particular, em cada generalização separada.

O abstrato nesta perspectiva prova ser meramente um meio do processo teórico, ao invés de um objetivo, enquanto cada ato separado de generalização (isto é, de redução do concreto ao abstrato) surge como um momento subordinada em desaparecimento do movimento global. Na linguagem da dialética “um momento em desaparecimento” é aquele que não tem importância por si mesmo, divorciado dos outros momentos – só é significante em conexão com estes, em interação viva com eles, em transição.

Essa é a grande questão. Precisamente porque Marx era um dialético, ele não se restringiu a uma mera afirmação do fato de que no pensamento teórico o movimento do concreto ao abstrato e do abstrato ao concreto têm lugar, mas apontou, primeiro de tudo, aquela forma de movimento do pensamento que na dada instância prova ser o principal e dominante, determinando o peso e importância do outro, seu oposto. Tal é a forma da ascensão do abstrato ao concreto nos estudos teóricos especiais. É assim uma forma específica de pensamento teórico.

Naturalmente, isso não significa absolutamente que a outra forma, a oposta, não tem lugar no pensamento. Isso meramente significa que a redução do concreto pleno de fatos à expressão abstrata na consciência não é uma forma específica nem, ainda menos, determinante de reflexo teórico do mundo.

O homem come para viver – ele não vive para comer. Mas somente um louco concluirá que o homem absolutamente não precisa de comida; isso seria tão estúpido de insistir nisso que o aforismo depreciaria o papel da comida.

O mesmo é verdade para a presente instância. É somente uma pessoa bastante ignorante em questões científicas que pode tomar a absorção do concreto sensorial pleno de fatos em abstração como a forma principal e determinante da atividade mental do teórico. Na ciência este é somente um meio necessário para a realização de uma tarefa mais séria, a tarefa que é específica para a assimilação teórica do mundo, constituindo o objetivo genuíno da atividade do teórico. Reprodução do concreto no pensamento é o objetivo que determina o peso e importância de cada ato separado de generalização.

O concreto no pensamento não é, naturalmente, o objetivo final, um fim em si mesmo. Teoria como um todo é também somente “um momento em desaparecimento” na troca real, prática objetiva de matéria entre homem e natureza. Da teoria, transição é feita na prática, e essa transição pode também ser descrita como uma transição do abstrato ao concreto. Prática não mais possui um objetivo mais elevado fora de si, ela postula seus próprios objetivos e aparece como um fim em si mesmo. É por isso que cada passo separado e cada generalização no curso de resolução de uma teoria é constantemente comensurado com o dado da prática, testado por ele, correlacionado com a prática como o mais elevado objetivo da atividade teórica. É por isso que Lenin, ao falar do método de O Capital, aponta uma das características mais peculiares: “Comprovação através dos fatos, da prática – é assim que, em cada passo, se faz a análise” (Lenin, 2011, p. 201) Referência 4.

Correlação constante de “cada passo” na análise com a direção do caminho da pesquisa científica como um todo e em última instância com a prática, é vinculada com a própria essência da concepção de Marx da especificidade da assimilação teórica do mundo. Cada passo separado na análise, cada ato individual de redução do concreto ao abstrato, precisa desde o início ser orientado ao todo que “tece na noção”, em contemplação viva, o reflexo o qual é o objetivo mais elevado do trabalho teórico (naturalmente somente enquanto lidamos com trabalho teórico, enquanto o homem encara o mundo somente em uma relação teórica).

É aí que reside o significado profundamente dialético da proposição de Marx que é exatamente a ascensão do abstrato ao concreto que constitui um traço especificamente inerente no processo teórico e é o único possível e assim o único modo cientificamente correto de desenvolvimento de definições científicas, um modo de transformação de dados da contemplação viva e noção em conceitos.

Isso significa que todas as definições abstratas genuinamente científicas (não absurdas ou vazias) não surgem na cabeça humana como resultado da redução irracional aleatória do concreto ao abstrato – elas aparecem exclusivamente através do avanço consistente do conhecimento no desenvolvimento governado por leis global da ciência, através da concretização do conhecimento disponível e sua transformação crítica.

Seria errado tomar o ponto de vista de que cada ciência precisa passar por um estágio de atitude analítica unilateral para com o mundo, um estágio de redução puramente indutiva do concreto ao abstrato, e somente depois, quando este trabalho está plenamente realizado, pode proceder na ligação das abstrações assim obtidas em um sistema, para ascender do abstrato ao concreto.

Quando Marx se refere à história da economia política burguesa, ao fato de que em sua origem realmente seguiu um caminho analítico unilateral, para somente depois adotar o caminho cientificamente correto, ele quer dizer, é claro, que toda ciência moderna deveria seguir este exemplo, isto é, primeiro ir através de um estágio puramente analítico e depois proceder à ascensão do abstrato ao concreto.

O método analítico unilateral, que é de fato característico dos primeiros passos da economia política burguesa, não é de forma alguma uma virtude que deveria ser recomendada como um modelo. Era na verdade uma expressão das limitações históricas da economia política burguesa, condicionada em particular pela ausência de um método dialético bem desenvolvido de pensamento. A lógica dialética não recomenda absolutamente à ciência moderna a primeiro assumir a análise pura, redução pura do concreto ao abstrato, e depois proceder à síntese pura, pura ascensão do abstrato ao concreto. Conhecimento concreto não é para ser obtido por este caminho, e se ele é, isso só pode ser devido ao mesmo tipo de divagações que o desenvolvimento da economia política burguesa estava sujeita antes de Marx.

O exemplo citado por Marx é mais um argumento em favor da tese de que a ciência atualmente deveria desde o começar tomar o caminho que é cientificamente correto, ao invés de repetir as divagações do século XVII. É preciso desde o próprio início usar o método dialético de ascensão do abstrato ao concreto no qual análise e síntese são intimamente entrelaçados, ao invés de um método analítico unilateral. Este é um argumento em favor da ciência procurando suas definições abstratas, desde o início, de tal forma que cada um deles poderia ao mesmo tempo ser um passo no caminho para o avanço em direção à verdade concreta, em direção ao conhecimento da realidade como um todo unificado, coerente e em desenvolvimento. Economia política burguesa tomou um caminho diferente no começo, mas isso não é razão para tomar isso como modelo.

Ciência, se é uma ciência genuína, ao invés de uma aglomeração de fatos e vários dados, deveria desde o início refletir seu objeto e desenvolver suas definições de uma forma que Marx caracterizou como o único possível e correto na ciência, e não deixar este método para mais tarde usar na exposição literário dos resultados já obtidos, como revisionistas neokantianos como Cunow, Renner e outros recomendam fazer. Mais tarde nós devemos discutir em detalhes estas tentativas de distorcer a essência do pensamento de Marx sobre o método da ascensão do abstrato ao concreto, para apresentar este método somente como um estilo literário de expor resultados disponíveis alegadamente obtidos de forma puramente indutiva.

Naturalmente, o método da ascensão do abstrato ao concreto é visto mais claramente naqueles trabalhos de Marx que expuseram sua teoria sistematicamente: Contribuição à Crítica da Economia Política, Grundrisse – Esboços da Crítica da Economia Política e em O Capital. Isso não significa, entretanto, que a exposição é aqui fundamentalmente diferente em seu método e da investigação, ou que o método aplicado por Marx na investigação é diretamente oposto à forma de exposição dos resultados de investigação.

Se assim fosse, a análise da “lógica de O Capital” não contribuiria em qualquer coisa para um entendimento do método de pesquisa, o método de processamento de dados da contemplação e noção aplicado por Marx. O Capital seria neste caso somente instrutivo como um modelo de exposição literária de resultados obtidos previamente e não como uma ilustração do método de obtê-los. Neste caso o método de Marx de investigação não deveria ser reconstruído de uma análise de O Capital, mas sim de uma análise dos rascunhos, excertos, fragmentos e argumentos que estiveram na cabeça de Marx em seu estudo original dos fatos econômicos. Neste caso deveria concordar com a insistência do fator de um panfleto anti-marxista, o teólogo Fetscher, que escreveu isso: “O método que Marx segue em O Capital é essencialmente o mesmo aplicado pelos estudiosos burgueses. Dialética foi usada por Marx, como ele mesmo diz no Posfácio da segunda edição de O Capital, somente como um ‘método de apresentação’, um método que de fato possui um número de vantagens e que nós não devemos considerar aqui em grandes detalhes” (Fetscher, 1957, S. 89)Referência 5, pois isso não tem suporte no problema do método do conhecimento.

Fetscher oferece uma interpretação bastante livre da afirmação bem conhecida de Marx de que a apresentação de uma teoria em sua forma desenvolvida não pode ser diferente da busca que resultou nessa teoria; mas a diferença formal entre as duas, referida por Marx, não afeta a essência do método de pensamento, do modo de processamento dos dados da contemplação e noção em conceitos. Este modo de análise permanece o mesmo, nomeadamente, dialético, ambos no processamento preliminar dos dados e na elaboração final, embora, naturalmente, foi aperfeiçoado enquanto o trabalho foi realizado no qual culminou na criação de O Capital.

A principal vantagem do modo de apresentação, que não é de forma alguma um caráter estilístico literário, consiste que o autor de O Capital não apresenta dogmaticamente e didaticamente resultados prontos obtidos em alguma forma misteriosa, mas sim percorre todo o processo de obtenção desses resultados, toda a investigação levando a eles, perante os olhos do leitor. “O leitor que quiser seguir-me deverá decidir-se a passar do particular ao geral” (Marx, 2003, p. 3)Referência 6, alertou Marx já em seu Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. O método de apresentação leva o leitor da compreensão de certos particulares, do abstrato, a um ponto de vista compreensivo cada vez mais concreto, desenvolvido, geral, da realidade econômica, ao geral como o resultado da combinação dos particulares.

Naturalmente, o processo de investigação não é reproduzido em todos os detalhes e desvios de mais de vinte e cinco anos de pesquisa, mas somente naquelas características principais e decisivas, que, como o próprio estudo mostra, realmente avançaram o pensamento ao longo do caminho do entendimento concreto. Na elaboração final dos fatos para publicação, Marx não mais repetiu aqueles numerosos desvios do tema principal de investigação que são inevitáveis no trabalho de qualquer estudioso. No curso da verdadeira investigação, fatos são frequentemente considerados que não são diretamente relevantes: é somente sua análise que pode mostrar se eles são ou não relevantes. Além disso, o teórico precisa recorrer, tão frequentemente quanto, à consideração de fatos que uma vez pareceram ser exaustivamente analisados. Como resultado, a pesquisa não procede tranquilamente em direção a, mas se move a frente em uma maneira bastante complicada com frequentes reversões e desvios.

Estes momentos não são, naturalmente, reproduzidos na apresentação final. Devido a isso, o processo de investigação em sua forma genuína, livre dos elementos acidentais e desvios. Aqui ele é endireitado, como era, assumindo o caráter do movimento contínuo para frente, que é um acordo com a natureza e movimentos dos próprios fatos. Aqui pensamento não procede da análise de um fato à análise do próximo antes de ter exaurido este fato; é por isso que não existe tempo de repetir novamente o mesmo assunto em ordem a enfrentar o que foi deixado inacabado.

Assim o método de apresentação do material em O Capital é nada exceto o método “corrigido” de sua investigação, as correções sendo não arbitrárias, mas em completo acordo com os requisitos e leis ditadas pela própria investigação. Em outras palavras, o método de apresentação é neste caso o método de investigação livre de qualquer coisa na natureza dos acessórios e quaisquer elementos confusos – um método de investigação estritamente conformado ao estudo objetivo das leis lógicas. Este é um método de investigação em forma pura, em uma forma sistemática desobscurecida de desvios e elementos oportunistas.

Quanto a diferença de forma, o que Marx fala no posfácio da segunda edição de O Capital, eles têm a ver com circunstâncias bastante diferentes, em particular, o fato de que Marx pessoalmente se tornou familiar com os diferentes círculos do inferno capitalista em uma sequência que é diferente da que corresponde à lei de seu próprio desenvolvimento e é apresentado em O Capital.

O método de ascensão do abstrato ao concreto não corresponde à ordem a qual certos aspectos do objeto em estudo por alguma razão ou outro entraram no campo de ponto de vista dos teóricos individuais ou a ciência como um todo. Ele é orientado exclusivamente pela ordem que corresponde às inter-relações objetivas de vários momentos dentro da concreticidade em estudo. Essa sequência genuína, não é necessário dizer, não é realizada de uma só vez. Uma justificação do método da ascensão do abstrato ao concreto não precisa ser procurada nas carreiras científicas dos teóricos ou até mesmo no desenvolvimento histórico da ciência como um todo. Ciência como um todo também chega ao seu ponto de partida genuíno através de uma busca longa e árdua.

Marx, por exemplo, chegou à análise e compreensão das relações econômicas a partir do estudo das relações políticas e legais entre os homens. A esfera do direito e política provou ser para ele o ponto de partida do estudo da estrutura do organismo sócia. Na apresentação da teoria do materialismo histórico, o requisito de Marx é proceder de um entendimento das relações materiais econômicas a um entendimento do direito e política.

Teóricos do tipo de Fetscher podem insistir, nesta base, que a tese de Marx de acordo com a qual o ponto de partida para o entendimento de todos os fenômenos sociais precisa ser econômico, ao invés do direito ou política, pertence meramente às peculiaridades da maneira literária da apresentação da teoria de Marx, enquanto na própria investigação, Marx e os marxistas fizeram o mesmo que qualquer cientista burguês.

A questão é, entretanto, que embora a esfera do direito e política foi estudada por Marx antes dele investigar a economia, ele entendeu esta esfera corretamente, da perspectiva científica (materialista), somente depois ele analisou a economia, seja em um esboço muito geral.

O mesmo é verdadeiro para o ponto de vista de Marx da economia política. Marx estudou as leis do movimento do dinheiro, lucro e renda muito antes de suceder a realização da natureza dual e genuína da mercadoria e do trabalho que produz mercadorias. Entretanto, até ele entender a real natureza do valor, sua concepção de dinheiro e renda era incorreta. Em Miséria da Filosofia ele ainda compartilha as ilusões da teoria ricardiana do dinheiro e renda. Somente uma concepção clara da natureza do valor obtida na década de 1850 mostrou dinheiro e renda em uma luz verdadeira. Antes disso, dinheiro não podia ser entendido a princípio.

No começo da década de 1850, Marx gastou muito tempo tentando entender a confusão e os conflitos envolvidos na circulação do dinheiro em tempos de crises e “prosperidade”. São essas tentativas que o levaram a concluir que as leis da circulação do dinheiro não podiam ser entendidas a não ser que se procurasse em grande detalhe o conceito de valor. Tendo encontrado esse conceito, ele viu que ele tinha compartilha um número de ilusões de Ricardo.

O método de ascensão do abstrato ao concreto como um método de investigação sobre fatos não pode assim ser justificado por referências à ordem na qual o estudo dos dados procedeu. Ele expressa a sequência na qual a concepção objetivamente correta correspondente ao objeto toma forma na mente do teórico, ao invés da ordem na qual certos aspectos da realidade, por alguma razão ou outra, chama a atenção do teórico e então entra no campo da ciência.

O método da ascensão do abstrato ao concreto expressa a lei interna do desenvolvimento do entendimento científico que no curso dos avanços históricos pavimenta seu caminho através da massa de momentos acidentais, desvios, frequentemente em uma forma indireta desconhecida aos próprios teóricos. Esta lei é assim difícil de descobrir na superfície do desenvolvimento científico (isto é, na consciência dos próprios teóricos). Na consciência dos teóricos esta lei pode não aparecer por muito tempo ou pode aparecer na forma que a tornará irreconhecível. Um representante individual da ciência, como Marx apontou, frequentemente possui uma concepção bastante equivocada do que ele realmente faz e como faz isso. Vendo isso, não se pode julgar um pensador pelo que ele pensa de si mesmo. É muito mais importante (e difícil) estabelecer a importância objetiva de seus pontos de vista e seu papel no desenvolvimento da ciência como um todo.

Por esta razão, a importância genuína dos fatos da biografia de um cientista e a ordem genuína do desenvolvimento das definições científicas não podem ser revelados através de uma investigação puramente biográfica. O real progresso do conhecimento científico (isto é, avanços sistemáticos do pensamento à verdade concreta) frequentemente diverge significantemente da sequência ordinariamente cronológica. Lenin apontou, em seu fragmento Sobre a Questão da Dialética, que cronologicamente em consideração a pessoas é desnecessário na análise da lógica do desenvolvimento do conhecimento, que nem sempre corresponde à verdadeira ordem de estágios pelo qual o pensamento concebe seu assunto.

Levando tudo isso em conta, pode desenhar a conclusão de que das características peculiares do método de Marx de investigação aparecem mais claramente e distintamente em O Capital e não nos rascunhos, excertos e argumentos que entraram em sua cabeça enquanto ele estava estudando os fatos econômicos.

Esta é onde a sequência genuína do desenvolvimento das definições científicas é revelada, a qual somente gradualmente vem à luz no curso do estudo preliminar do material e não foi sempre claramente realizado pelo próprio Marx. Um traço mais característica de Marx era, a todo tempo, uma atitude crítica sóbria de sua própria conquista: muitas vezes ele resolutamente corrigiu, “post factum”, os erros e omissões do estágio preliminar de investigação. Em geral é possível distinguir, com rigorosa objetividade, entre os núcleos da verdade objetiva e a forma na qual eles apareceram originalmente na consciência somente depois do evento: os rudimentos das formas mais avançadas só podem ser entendidos corretamente quando estas formas mais avançadas já são conhecidas.

Assim, se alguém tentou reconstruir o método de investigação de Marx a partir da massa de rascunhos e fragmentos de seus arquivos, ao invés de O Capital, isso somente complicaria a questão. Para entende-lo corretamente, seria necessário também ter que analisar O Capital primeiro. Caso contrário “rudimentos das formas mais avançadas” simplesmente não poderiam ser distinguidos nele. Além disso, é difícil entender porque esta investigação preferiria uma forma inicial e preliminar de expressar a uma forma de expressar posterior, mais refinada e madura. Isso só resultaria na forma inicial de expressão sendo tomada como uma ideal, e a forma posterior como uma variante distorcida. As formulações e o método de seu desenvolvimento em O Capital de fato teriam que ser atribuídos à maneira literária de apresentação e sua perfeição, ao invés da ampliação do escopo do pensamento, da percepção e método de investigação.

(Este truque estranho é, a propósito, assiduamente praticado por revisionistas atuais, que insistem que o marxismo genuíno deveria ser procurado nos manuscritos do jovem Marx, ao invés de seus trabalhos maduros. Como resultado, O Capital é apresentado como uma concepção distorcida do tão falado humanismo real desenvolvido por Marx e Engels em 1843-1844).

Foi por isso que Lenin apontou que no desenvolvimento Da Grande Lógica do Marxismo alguém poderia primeiro de tudo ter em mente O Capital, e que o método de apresentação aplicado por Marx em O Capital deveria servir como um modelo para a interpretação dialética da realidade e um modelo para o estudo e elaboração da dialética em geral. Procedendo dessas considerações preliminares, alguém poderia empreender um estudo mais detalhado do método de ascensão do abstrato ao concreto como um método cientificamente correto de formação de definições científicas, como um método do processamento teórico dos dados da contemplação viva e noção.

Vamos retomar novamente nesta conexão de que os dados da contemplação e noção são aqui tomados para significar algo diferente do que um indivíduo pessoalmente contempla e imagina em imagens sensoriais. Esta interpretação, característica da filosofia pré-marxista e da concepção antropológica do sujeito do conhecimento, é bastante falsa e extremamente limitada. Os dados da contemplação e noção foram sempre interpretados por Marx como a massa total das experiências empíricas socialmente acumuladas, a massa colossal total dos dados empíricos disponíveis ao teórico de livros, relatórios, tabelas estatísticas, jornais e relatos. É lógico, no entanto, que todos esses dados empíricos são armazenados na memória social de forma resumida, reduzida a uma expressão abstrata. Eles são expressos no discurso, na terminologia, em números, tabelas e outras formas abstratas. A tarefa específica dos teóricos que usam toda essa informação sobre a realidade não consiste, naturalmente, em emprestar a esta expressão abstrata uma forma mais abstrata. Ao contrário, seu trabalho sempre começa com uma análise e revisão crítica das abstrações do estágio empírico do conhecimento, com a superação crítica dessas abstrações, fazendo progresso através de uma crítica do caráter subjetivo e unilateral dessas abstrações e revelando as ilusões contidas nelas, a partir da perspectiva da realidade como um todo, em sua concreticidade. Neste sentido (e somente neste sentido) a transição do estágio empírico do conhecimento ao estágio racional também aparece como uma transição do abstrato ao concreto.

Naturalmente, a ascensão do conhecimento da forma mercantil simples à compreensão de tais formas bem desenvolvidas da riqueza burguesa como juros também aparece, de certa perspectiva, como o movimento do concreto às formas abstratas de sua manifestação na superfície dos eventos. Juros, por exemplo, expressa em sua linguagem quantitativa impessoal o processo mais complexo e profundo da produção capitalista. Nos juros, mais-valor assume uma forma extremamente abstrata de manifestação. Esta forma quantitativa abstrata só é explicada a partir de seu conteúdo concreto. Mas isso é também evidência do fato de que qualquer momento abstrato da realidade encontra uma explicação real somente no sistema concreto de condições que dão origem a ela, e só pode ser corretamente entendido através dela. Assim, juros são entendidos concretamente (cientificamente) somente na análise final, como resultado final, enquanto que na superfície dos fenômenos aparece como uma forma bastante abstrata.

Tudo isso também deve ser levado em conta.

A partir do ponto de vista do fato de que Marx formulou suas ideias sobre o método de ascensão do abstrato ao concreto em polêmica direta com sua interpretação hegeliana, seria apropriado ter um olhar crítico para com o último. A natureza materialista do método de Marx vai se destacar claramente e graficamente em comparação com isso.