A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 1. A Concepção Dialética e Metafísica do Concreto
4. Sobre a Relação de Noção e Conceito


A lógica pré-marxiana, estranha à abordagem dialética da relação da forma ou estágio sensorialmente empírico do conhecimento ao estágio racional, era incapaz, apesar de todos os seus esforços, de promover uma solução nítida ao problema da relação das noções aos conceitos.

O conceito foi definido como designação verbal do geral em um número de ideias simples (noções), como um nome/termo (Locke, Hobbes), ou simplesmente como “qualquer noção da coisa em nosso pensamento” (Christian Wolff), ou como “algo oposto à contemplação, na medida em que é uma noção geral ou uma noção de o que é mais comum a muitos objetos da contemplação” (Kant), ou como “noção do definitivo, inequívoco, estável, significado usualmente aceito” (Sigwart), ou como “noção da noção” (Schopenhauer). Hoje em dia, também, amplamente atual é a definição de conceito como simplesmente “o significado semântico de um termo”, o que quer que seja que isso signifique. Neopositivistas frequentemente se recusam a lidar com a relação entre conceito e noção, procedendo a definições puramente formais do conceito – especificando o conceito como “a função de uma expressão”, “função proposicional”, e assim por diante. Falando genericamente, esta questão tem permanecido extremamente confusa na filosofia e lógica burguesa moderna. É muito típico o ponto de vista expresso no Dicionário Filosófico de Heinrich Schmidt. O conceito é aqui definido como “o conteúdo significativo das palavras”, e no “senso lógico” estrito como um conteúdo significativo da palavra que é “livre da percepção momentânea de tal maneira que ele pode ser transferido para outras percepções similares como suas denominações” (Schmidt, 1934, S. 67).Referência 1 O Dicionário de Conceitos Filosóficos Básicos de Kirchner--Michaëlis tenta evitar a identificação do conceito e noção: “O conceito é, portanto, não somente uma noção geral próxima, ele emerge de noções através de suas comparações e extração daquilo que é comum a eles” (Michaëlis, 1911, S. 130).Referência 2

O lógico russo Vvedensky, um seguidor de Kant, procede da suposição que uma noção difere de um conceito não no “modo de experiência psicológico”, mas no fato de que na noção, coisas são consideradas “em consideração a quaisquer características que sejam”, enquanto no conceito, somente “em consideração às características essenciais”. Na próxima página, entretanto, ele descarta esta distinção em um argumento característico de que “algo pode ser essencial de um ponto de vista, e uma coisa bem diferente de outro”. Mas a questão de se certas características são “essenciais” ou “não essenciais” é resolvida em algum lugar fora da lógica como disciplina formal, em algum lugar na epistemologia, ética, ou alguma tal disciplina. Assim, lógica, de acordo com Vvedensky, é correta ao não considerar qualquer entidade “geral” verbalmente registrada, qualquer termo considerado de seu aspecto significativo, como um conceito.

Esses argumentos (muito típicos da lógica antidialética, não-marxista) levam em última análise, de uma maneira mais ou menos circular, para um e o mesmo desfecho: o termo “conceito” é tomado para significar qualquer “geral” expresso verbalmente, qualquer abstração terminologicamente registrada da multiformidade sensorialmente determinada, qualquer noção do que é comum a muitos objetos da contemplação direta.

Em outras palavras, todas as versões antidialéticas do conceito em última análise retornam à mesma fonte clássica – a definição de Locke e Kant e algumas vezes até mais antigas, para a definição do nominalismo medieval, que absolutamente não distinguia entre palavra e conceito.

A fraqueza fundamental da concepção de Locke e Kant reside que suas tentativas de distinguir entre noção como uma forma de conhecimento empírico sensorial e conceito como uma forma de conhecimento racional são firmemente baseados no modelo de epistemologia de Robinson Crusoé, no qual o sujeito do conhecimento é um indivíduo humano separado, isolado da concatenação de elos sociais, e oposto a “todo o resto”. É por isso que a relação da consciência da realidade objetiva recebe aqui uma interpretação bem limitada – somente como a relação da consciência individual, muitas vezes repetida, a tudo que reside fora dessa consciência e não depende de sua existência e vontade.

Mas não é somente a natureza material que existe fora e independentemente da consciência e vontade do indivíduo – assim também é a esfera extremamente complexa e historicamente formada da cultura material e espiritual da humanidade, da sociedade. Ascendendo à vida consciente dentro da sociedade, o indivíduo encontra um “ambiente espiritual” pré-existente, uma cultura espiritual objetivamente implementada. O último é oposto à consciência individual como um objeto específico que o indivíduo precisa assimilar levando em conta sua natureza como algo bem objetivo. Um sistema de formas de consciência social (no sentido mais amplo possível, incluindo formas de organização política da sociedade, direito, moral, vida cotidiana, e assim por diante, assim como formas e normas de ações na esfera do pensamento, regras sintáticas gramaticais para expressão verbal de noções, gostos estéticos etc.) estrutura desde o início o desenvolvimento da consciência e vontade do indivíduo, moldando-o em sua própria imagem. Como resultado, cada impressão sensorial separada que surge na consciência individual é sempre um produto da refração de estímulos externos através do prisma extremamente complexo das formas da consciência social que o indivíduo apropriou. Esse “prisma” é um produto do desenvolvimento humano social. Sozinho, face a face com a natureza, o indivíduo não possui tal prisma, e não pode ser entendido por uma análise das relações de um indivíduo isolado com a natureza.

O modelo epistemológico de Robinson Crusoé tenta compreender o mecanismo da produção de noções e conceitos conscientes precisamente no contexto de tal situação tipo conto de fadas. A natureza social de qualquer ato de produção, até mesmo o mais elementar, de noções conscientes é aqui ignorada desde o início e é assumido que o indivíduo primeiramente experimenta impressões sensoriais isoladas, e então abstrai indutivamente algo geral delas, designa isso por uma palavra, e então assume uma atitude de “reflexo” em direção a este geral, considerando suas próprias ações mentais e seus produtos – “ideias gerais” (isto é, noções gerais registradas no discurso) – como um objeto específico de estudo. Em resumo, a questão é apresentada da maneira delineada por John Locke, o representante clássico e sistematizador deste ponto de vista, em seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano.

Mas, a natureza humana social da consciência individual, que esta teoria expulsa porta a fora, retorna pela janela. “Reflexo”, isto é, a consideração dos produtos da atividade mental e operações sobre eles (silogismos, raciocínio baseado somente em conceitos), revelam de uma vez que estes produtos contêm certo resultado que é fundamentalmente inexplicável da limitada experiência pessoal. Na medida em que a experiência humana social é aqui interpretada somente como reiterada experiência pessoal, como mera soma de experiências separadas (e não como história de toda a cultura humana), todas as formas de consciência que tenham maturado no longo e contraditório desenvolvimento da cultura, parecem ser, em geral, inexplicáveis pela experiência dada a priori. Não existe caminho no qual eles poderiam necessariamente ser deduzidos da experiência individual e ainda assim eles determinam ativamente esta experiência, moldando a forma na qual ela procede.

Essa concepção está, em última análise, encarnada na doutrina de Kant “da unidade da apercepção transcendental”, em conexão na qual Kant define o conceito como uma noção geral, ou noção daqueles elementos gerais que são inerentes em muitos objetos da contemplação. A doutrina de Kant do conceito não é reduzida a essa simples definição, naturalmente; mas ela fundamenta todas as suas construções e possui lações integrais com elas. À primeira vista, essa definição coincide com a interpretação empírica unilateral do conceito de Locke. E é assim mesmo. Mas o empirismo limitado é inevitavelmente complementado por sua contraparte, a ideia da origem não-empírica e extra-experiencial de um número dos conceitos mais importantes da razão, as categorias. As categorias da razão, constituindo o mais complicado produto de milhares de anos de desenvolvimento da cultura do pensamento humano, não pode ser interpretada como noções gerais, como noções sobre o elemento geral em muitos objetos dados na contemplação individual.

Os conceitos universais, as categorias (causa, qualidade, propriedade, quantidade, possibilidade, necessidade, e assim por diante) se referem a todos os objetos da contemplação, sem exceção, ao invés de “muitos”. Consequentemente, elas devem conter uma garantia de universalidade e necessidade, uma garantia que um caso contraditório nunca vai chegar à experiência humana no futuro (um fenômeno sem uma causa, ou uma coisa desprovida de qualidade ou refratária a mensurações quantitativas etc.). A abstração indutiva empírica naturalmente não pode conter tais garantias – ela é sempre tratada pelo mesmo tipo de dissabor que aconteceu à proposição “todos os cisnes são brancos”.

Por esta razão Kant de fato adota uma definição fundamentalmente diferente para estes conceitos como formas a priori da apercepção transcendental e de maneira alguma como “noções gerais”. O próprio conceito de conceito é então emprestado pelo dualismo. Na verdade, existem duas definições mutuamente excludentes. Em uma mão, o conceito é simplesmente identificado com a noção geral, e na outra mão, conceito e noção são separados por uma lacuna. A forma “pura” (“transcendental”) do conceito, uma categoria da razão, prova ser totalmente a priori, enquanto que o conceito ordinário é simplesmente reduzido a uma noção geral. Essa é a retribuição inevitável pelo pecado da mentalidade limitada empirista, que nenhuma escola de lógica consegue escapar, que identifica o conceito com o significado de qualquer termo, com o sentido de uma palavra.

A dialética materialista de Marx, Engels e Lenin fornece uma boa solução para as dificuldades de definir o conceito e sua relação com a noção expressa no discurso, pois ela levou em conta a natureza sócio-histórica, sócio-humana de todas as formas e categorias do conhecimento, incluindo as formas do estágio empírico do conhecimento.

Devido ao discurso, o indivíduo “vê” o mundo não somente e não tanto através de seus próprios olhos, mas através de milhões de olhos. Marx e Engels, portanto, sempre interpretaram noções como outro algo que não seja imagem sensorial de coisas retidas na memória individual. A partir da perspectiva da epistemologia centrada no indivíduo social, uma noção é uma realidade social também. O conteúdo de uma noção compreende aquilo que foi retido na memória social, nas formas dessa memória social como representado, em primeiro lugar, pelo discurso, pela linguagem. Se um indivíduo obteve uma noção de uma coisa de outros indivíduos que a observaram diretamente, a forma adquirida da consciência disso é precisamente aquilo que ele teria retido se tivesse contemplado a coisa com seus próprios olhos. Ter uma noção significa ter uma contemplação compreendida socialmente (isto é, expressa no discurso ou capaz de ser expressa no discurso). Nem eu, nem alguns outros indivíduos, formamos um conceito de alguma coisa se eu, através do discurso, observo esta coisa através dos olhos de outros indivíduos ou este outro indivíduo contempla ela através de meus olhos. Nós nos engajamos em uma troca mútua de noções. Uma noção é precisamente isso – contemplação expressa verbalmente.

Contemplação e noção, desse modo, aparecem como categorias expressando a natureza sócio-histórica do sensorial, da forma empírica de conhecimento, e não de um estado psicológico do indivíduo. A noção sempre contém somente aquilo que eu, em minha contemplação individual percebo de uma maneira social, isto é, sou capaz de criar a propriedade de outro indivíduo através do discurso e, desse modo, minha própria propriedade como contemplação socialmente individual. Ser capaz de expressar os fatos contemplados sensorialmente no discurso significa ser capaz de transpor o contemplado individualmente no plano da noção como consciência social.

Mas isso de forma alguma coincide ainda com a habilidade e capacidade de resolver conceitos, a habilidade do processamento lógico da contemplação e noção no conceito. Isso também não significa ainda uma habilidade para proceder do primeiro estágio sensorial do conhecimento para o estágio de assimilação lógica.

Em se referindo ao processamento teórico de dados sensoriais, Marx toma esses dados principalmente como sendo algo diferente do que o indivíduo executando este processamento lógico viu diretamente com seus próprios olhos ou tocou com seus próprios dedos. Marx sempre tinha em mente a totalidade integral dos dados empíricos fatuais, da contemplação socialmente implementada. O material da atividade lógica disponível para o teórico, seus dados sensoriais, não é somente e não é tanto o que ele como um indivíduo contemplou diretamente, mas sim tudo que ele conhece sobre um objeto a partir de todos os outros homens. E ele pode conhecer tudo isso a partir de outros homens somente através do discurso, somente devido a milhões de fatos tendo sido já registrados em noções sociais.

Isso determina uma abordagem para compreender o processo do conhecimento bem diferente daquele que pode ser estabelecido na perspectiva da interpretação nominalista do pensamento e sua relação com a sensorialidade: contemplação e noção são para Marx apenas o primeiro estágio sensorial no conhecimento. E isso é nitidamente diferente da interpretação do estágio sensorial do conhecimento característico dos seguidores de Locke e Helvétius. Os dois últimos, inevitavelmente, se referem àquela forma de consciência que Marx chama noção (Vorstellung), ao estágio lógico e racional, no reflexo, devendo a sua concepção antropológica abstrata o sujeito do conhecimento.

A diferença entre conceito e noção geral expressa nas palavras era originalmente estabelecida claramente pelo dialético Hegel, e ele fez isso na estrutura da lógica (algo que ninguém fez antes dele). A razão porque ele pôde fazer isso foi que seu ponto inicial na lógica era a humanidade como um todo em seu desenvolvimento, ao invés de um indivíduo isolado.

Hegel apontou em numerosas ocasiões que se o processo do conhecimento é considerado a partir da perspectiva psicológica, isto é, na forma a qual ele entra na cabeça de um indivíduo isolado, “alguém pode se agarrar à fábula de que nós começamos com sensações e contemplações e que o intelecto extrai algo geral ou abstrato da diversidade do último” (Hegel, 1928b, S. 21).Referência 3

Hegel chama essa fase do desenvolvimento de transição da contemplação à noção, isto é, certa forma estável de consciência, uma imagem geral abstrata que é dado um nome, uma expressão no discurso, em um termo.

Entretanto, o pensamento lutando pela verdade não toma essa forma de consciência para ser seu objetivo ou resultado, mas meramente uma premissa, material para sua atividade específica. A velha lógica, observa Hegel, constantemente confunde premissas psicológicas de um conceito com o próprio conceito, tomando qualquer noção geral abstrata como conceito assim que ele tenha sido expressado em um termo, uma palavra, no discurso.

Para a velha lógica, qualquer noção geral abstrata registrada em uma palavra já é um conceito, uma forma de pensamento racional das coisas. Para Hegel é meramente um pré-requisito de um verdadeiro conceito, isto é, de tal forma de consciência que expressa a natureza real (dialética) das coisas.

Nos novos tempos, nenhum outro conceito se saiu pior do que o próprio conceito, o conceito por e para si mesmo, pois conceito é normalmente tomado para significar definitividade abstrata e unilateralidade da concepção ou do pensamento intelectual, o que, naturalmente, alguém não pode trazer cognitivamente na consciência tanto na totalidade da verdade ou a beleza concreta por ela mesma (Hegel, 1927b, S. 136).Referência 4

Hegel explica ainda que o conceito é interpretado nesta lógica de forma extremamente unilateral ou assimétrica, nomeadamente, é considerado somente do lado o qual é igualmente inerente a ambos o conceito e a noção geral.

Nesta estrutura, o conceito é essencialmente equacionado com a noção geral simples e todas aquelas características específicas do conceito que o faz provar ser capaz de expressar a natureza concreta do objeto são deixados fora da esfera de interesse da velha lógica.

O que alguém normalmente chama de conceitos, e, além disso, conceitos definitivos, por exemplo, homem, casa, animal etc., são qualquer coisa menos conceitos, são definições simples e noções-abstrações abstratas que emprestam do conceito somente o elemento de generalidade e deixam o particular e o individual, desse modo, sendo precisamente abstrações do conceito (Hegel, 1927a, S. 99).Referência 5

É fácil visualizar que essa distinção está vinculada muito próxima com a crítica de Hegel da abordagem metafísica na lógica e epistemologia. De maneira alguma rejeitando o fato bastante óbvio de que o conceito é sempre algo abstrato em comparação com a imagem sensorialmente concreta de uma coisa, Hegel mostra ao mesmo tempo a superficialidade do ponto de vista que reduz o conceito a uma mera expressão abstratamente idêntico, propriedade, característica ou relação abstratamente geral, inerente em toda uma série de fenômenos. Essa redução explica absolutamente nada sobre sua habilidade de refletir a natureza do objeto mais profundamente, corretamente e completamente do que a contemplação e a noção.

Entretanto, se o que foi tomado no conceito do evento concreto deve servir meramente como uma marca ou signo, ele pode, de fato, ser somente mera definição individual sensorial do objeto (Hegel, 1928b, S. 21).Referência 6

A diferença entre a imagem da contemplação viva e o conceito é então reduzida a uma diferença puramente quantitativa. O conceito expressa, ou, para ser mais preciso, designa somente uma das propriedades sensoriais do fenômeno, enquanto que a imagem sensorial contém toda uma série delas. Como resultado, o conceito é considerado somente como algo mais escasso do que a imagem da contemplação viva – somente como uma expressão unilateral abstrata dessa imagem.

A transição da imagem da contemplação ao conceito é então considerada meramente como destruição da concreticidade sensorialmente dada, como eliminação de um grande número de propriedades percebidas sensorialmente para o benefício de uma delas.

Assim [diz Hegel nessa conexão – E.I.], considera-se o abstrato menos importante do que o concreto, porque dele se teria retirado muito de matéria. Nesta opinião, a abstração significa que extraímos do concreto, unicamente para nossa utilização subjetiva [...] portanto, o entendimento não apreende toda esta riqueza e se contenta com a pobre abstração apenas por causa da sua impotência (Lenin, 2011, p. 151).Referência 7

A transição da contemplação concreta para abstrações do pensamento aparece, como resultado, somente como partida da realidade dada na contemplação direta, somente como manifestação da “incapacidade”, fraqueza do pensamento. Não surpreendentemente, Kant, iniciando desta premissa, chega à conclusão que o pensamento é incapaz de alcançar a verdade objetiva.

Lenin tomou notas abundantes dessa passagem em Hegel, fazendo observações à propos:

No fundo, Hegel tem toda a razão contra Kant. O pensamento, elevando-se do concreto ao abstrato, não se afasta – se ele é verdadeiro (N.B) (e Kant, como todos os filósofos, fala do pensamento verdadeiro) – da verdade, mas, ao contrário, se aproxima dela (Lenin, 2011, p. 151).Referência 8

Em outras palavras, o conceito pode ser algo abstrato quando comparado com a concreticidade sensorialmente percebida, mas sua força e vantagens sobre a contemplação não reside aí. A ascensão da concreticidade sensorialmente contemplada à expressão abstrata dela é meramente a forma na qual um processo mais significativo é realizado – o processo de alcançar a verdade que a contemplação é incapaz de agarrar. Ao comentar Hegel, Lenin aponta que as abstrações científicas (isto é, corretas, sérias, não absurdas) refletem a natureza não somente de forma mais profunda e corretamente que a contemplação viva ou noção, mas também mais plenamente. E “mais plenamente” na linguagem da lógica dialética significa nada mais que “mais concretamente”.

Eis por que [continua Hegel na passagem citada por Lenin – E.I.] o pensamento abstrativo não deve ser visto como o simples pôr de lado a matéria sensível que, por isto, nada perderia da sua realidade; ele é, sobretudo, a sua superação e a sua redução, como mero fenômeno, ao essencial, que só se manifesta como conceito (Lenin, 2011, p. 151).Referência 9

No processo o concreto não é de forma alguma perdido, como Kant acredita, junto com os empiristas; ao contrário, seu significado e conteúdo real são trazidos pelo pensamento. Isso é precisamente porque Hegel considera a transição da concreticidade sensorialmente contemplada ao conceito como forma de movimento da aparência à essência, da consequência ao seu antecedente.

Um conceito, de acordo com Hegel, expressa a essência dos fenômenos contemplados. E essa essência não é de forma alguma reduzida ao abstratamente idêntico em fenômenos diferentes, aos elementos idênticos observados em cada um dos fenômenos tomados isolados. A essência de um objeto está quase sempre contida na unidade dos elementos opostos e distintos, em sua concatenação e determinação mútua. Esse é o porquê Hegel diz que o conceito:

Na medida em que a natureza do conceito enquanto tal nos interessa, tomada por ela mesma não é uma unidade abstrata oposta às distinções da realidade, mas, como um conceito, ele já é uma unidade das diferentes definições, e assim realidade concreta. Então noções como “homem”, “azul” etc., não deveriam ser chamados conceitos, mas noções gerais abstratas, que somente se tornam conceitos quando mostram que contêm aspectos distintos em unidade, em que essa unidade determinada dentro de si mesma constitui o conceito (Hegel, 1927b, S. 156).Referência 10

Se o pensamento do homem meramente reduz a imagem concreta sensorial de um objeto a uma definição unilateral abstrata, ele produz somente uma noção geral e não um conceito. Isso é um processo bem natural se ele é interpretado como transição da contemplação à noção. Mas se ele é tomado como não sendo o que ele não é, nomeadamente, transição ao conceito, a característica mais importante dessa transição permanece inexplicável.

Lenin enfatiza, em mais de uma ocasião, a ideia de Hegel de que a transição da noção ao conceito deveria ser considerada na lógica, primeiro de tudo como transição do conhecimento superficial a um conhecimento mais correto, mais pleno, mais profundo.

“O objeto, tal como é sem o pensamento e sem o conceito, é uma representação ou um nome; ele é o que é nas determinações do pensamento e do conceito”, diz Hegel, e Lenin toma uma nota marginal: “Correto! A representação e o pensamento, o desenvolvimento de ambos, nil aliud [nada mais]” (Lenin, 2011, p. 187).Referência 11

Analisando os argumentos de Hegel sobre a relação de noção e pensamento, Lenin considerou necessário apontar que o idealismo de Hegel não estava em evidência se considerado este ponto: “Aqui, no conceito de tempo (e não na relação entre a representação e o pensamento), reside o idealismo de Hegel” (Lenin, 2011, pp. 189-190).Referência 12

A ideia principal de Hegel é que abstrações intelectuais não tomam a consciência para além do estágio empírico do conhecimento, que são formas da consciência empírica sensorial, ao invés de pensamento no sentido estrito do termo, são noções e não conceitos. Confundindo os dois, identificando noção com conceito com base de que ambos são abstrações, é a marca mais característica da metafísica na lógica, da lógica do pensamento metafísico.

Portanto, a primeira tarefa da lógica como ciência estudando o processo lógico dos dados empíricos em conceitos (transição da contemplação e noção em conceito) é delimitação estritamente objetiva do conceito e noção verbalmente expressa.

Essa delimitação não é de forma alguma uma exatidão teórica. É de enorme importância para a epistemologia assim como pedagogia. Formação de noções gerais abstratas é em si mesma um processo contraditório e suficientemente complicado. Enquanto tal, ela forma o tema de investigação especial, apesar de não na lógica.

A tarefa da lógica como ciência cresce para fora das reais necessidades do desenvolvimento do pensamento dos fenômenos do mundo circundante. A questão com a qual o pensamento do homem se volta para a lógica como ciência não é absolutamente a questão de como as abstrações poderiam ser criadas em geral, como alguém pode aprender a abstrair o geral dos fatos sensorialmente dados. Para fazer isso não é preciso, absolutamente, pedir conselho aos lógicos, pode-se meramente ter um comando de sua linguagem nativa e a habilidade de concentrar sua atenção nas similaridades e diferenças sensorialmente dadas.

A questão com a qual se volta para a lógica e que só pode ser respondida por ela envolve uma tarefa do pensamento muito mais complicada: como pode-se resolver uma abstração que poderia expressar a essência objetiva dos fatos dados em contemplação e noções? A forma na qual processar uma massa de fatos empiricamente óbvios produz uma generalização expressando a natureza real do objeto sob estudo – este é o verdadeiro problema, cuja solução é idêntica com aquela do problema da natureza dos conceitos como distinta das noções gerais abstratas.

Os conceitos sendo definidos como reflexo do essencialmente geral, o materialismo na lógica compele a distinguir muito estritamente entre o que é essencial para o sujeito (seus desejos, aspirações, objetivos etc.) e aquela à qual é essencial para a definição objetiva da natureza do objeto inteiramente independente das aspirações subjetivas.

A lógica neokantiana conscientemente obscurece essa distinção, supostamente para provar que o critério para distinguir entre o subjetivamente essencial e o que é essencial tanto quanto está preocupado o próprio objeto não pode ser encontrado ou dado. Esse ponto de vista é desenvolvido mais consistentemente no pragmatismo e concepções instrumentalistas. Qualquer conceito é construído como uma projeção de desejos, aspirações e impulsos subjetivos sobre o caos dos fenômenos sensorialmente dados. Claramente, não é somente a fronteira entre o subjetivo e o objetivo que é obliterada aqui, mas também a fronteira entre a noção espontaneamente formada e o conceito, entre o conhecimento empírico e lógico racional.

Como ilustração, vamos citar um exemplo característico da filosofia atual sobre o assunto do abstrato e do concreto – um artigo de Rudolf Schottlaender, um teórico da Alemanha Ocidental, que reflete, como em um espelho, o nível do pensamento burguês no campo das categorias dialéticas (Schottlaender, 1953, S. 220).Referência 13

O Alfa e Ômega dessa abordagem é a oposição do abstrato e do concreto como categorias pertencentes a duas esferas fundamentalmente diferentes. Para Schottlaender, o abstrato é somente um modo de ação do sujeito do conhecimento. O concreto é identificado com a imagem sensorialmente percebida da contemplação viva em sua integralidade, enquanto o objeto fora da consciência não é distinguido absolutamente de sua experiência sensorial. O sujeito “tira”, “extrai”, “retira” do concreto certas características abstratas gerais, aparentemente motivado por um propósito puramente subjetivo, construindo um conceito por fora dessas características. Se essas características abstraídas são essenciais ou não-essenciais é determinado, de acordo com Schottlaender, inteiramente pelos objetivos do sujeito do conhecimento, sua atitude “prática” para com a coisa. Não se pode considerar o essencial a partir da perspectiva do próprio objeto, acredita Schottlaender, sem voltar a posições da “quintessência escolástica”, da “essência real”.

O abstrato e o concreto são, desse modo, distribuídos metafisicamente entre dois mundos diferentes – o mundo “do sujeito do conhecimento” e o mundo “do objeto do conhecimento”. Por esses motivos Schottlaender considera oportuno soltar o problema da relação do abstrato e do concreto como uma questão de lógica, que estuda o mundo do sujeito.

E, desde que ele está lidando com lógica, não é o concreto que ele opõe ao abstrato, mas o “Subtrahendum” inventado para esse propósito, isto é, tudo que o sujeito criando uma abstração, consciente ou inconscientemente, deixa de lado, o restante não utilizado da riqueza da imagem percebida sensorialmente da coisa. E, mais ainda, ele considera oportuno, no espírito da tradição semântica moderna, também renomear o abstrato como “Extrahendum” (isto é, o que é extraído e incorporado no conceito).

Na medida em que uma síntese completa de abstrações correspondendo ao infinito pleno da imagem sensorial não é alcançada, a justificação filosófica de qualquer abstração (o “Extrahendum”) pode ser reduzida a uma indicação do objetivo ou valor em favor de que o sujeito do conhecimento tenha feito a extração. A plenitude da coisa agarrada intuitivamente, sensorialmente, menos o “Extrahendum” é chamado de “Subtrahendum”. O último é armazenado longe pelo sujeito do conhecimento como reserva para a ocasião quando “o essencial” estiver precisamente lá, na luz de outros objetivos, valores ou aspirações.

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Ao abordar a questão da relação do conceito e noção é preciso aparentemente levar em conta o fato de que a noção, como uma forma e um estágio no reflexo da realidade objetiva na mente do homem é também uma abstração, cuja formação é afetada por um grande número de fatores, e em primeiro de tudo o interesse prático direto, a necessidade do homem e o propósito refletindo a necessidade idealmente.

Os elos entre o conceito – uma abstração teórica expressando a essência objetiva da coisa – e prática é muito mais ampla, profunda e complicada. No conceito, o objeto é compreendido a partir da perspectiva da prática humana em seu volume total ao longo da história do desenvolvimento mundial, ao invés da perspectiva da necessidade e objetivo pragmático limitado, particular. Somente esse ponto de vista coincide a longo prazo com a consideração do objeto a partir do ponto de vista do próprio objeto. Somente a partir desta perspectiva pode-se distinguir as definições objetivamente essenciais da coisa – “aquelas nas quais o objeto é o que é”; em outras palavras, a abstração de um conceito é formada.

Definir um conceito não significa absolutamente descobrir o sentido conferido pelos homens ao termo correspondente. Definir um conceito significa definir o objeto. A partir da perspectiva do materialismo, é uma e a mesma coisa. A única definição correta é, portanto, chegar à essência da questão.

Pode-se sempre estabelecer uma convenção ou acordo sobre o significado ou sentido de um termo; o conteúdo de um conceito é uma coisa bastante diferente. Embora o conteúdo de um conceito é sempre trazido diretamente como o “significado de um termo”, isso não é de forma alguma uma e a mesma coisa.

Esse é um ponto extremamente importante vinculado muito próximo ao problema da concreticidade do conceito como interpretado na dialética materialista (lógica dialética).

Os neopositivistas reduzem o problema de definir o conceito ao estabelecimento de significado de um termo em um sistema de termos construído de acordo com regras formais, e a questão da correspondência entre definições do conceito e seu objeto existindo fora e independentemente da consciência, isto é, a partir da definição, é assim eliminado em geral. Como resultado, eles chegam em um problema absolutamente insolúvel do assim chamado objeto abstrato. Essa designação se refere ao significado de tal termo que não pode ser aplicado como um nome a uma coisa individual dada na experiência sensorial imediata do indivíduo. Notemos que a imagem sensorial do objeto único na consciência individual é aqui novamente nomeada de objeto concreto, que está em completo acordo com a duradoura tradição do extremo empirismo.

Na medida em que o todo da ciência verdadeira consiste em definições que não possuem equivalente imediato na experiência sensorial individual (isto é, possui algum “objeto abstrato” como seu significado), a questão da relação do abstrato e do concreto é transformada em um problema da relação do termo geral com uma imagem individual na consciência. Como uma questão da lógica, também é ignorada, sempre substituída por uma questão em parte psicológica, em parte linguística formal. Mas nesse plano é realmente impossível resolver o problema da verdade objetiva de qualquer conceito geral, pois a própria formulação da questão impede qualquer possibilidade de respondê-la. A “lógica” neopositivista focou no estudo dos elos e transições entre um e outro conceito (na verdade, entre um e outro termo), assumindo de antemão que não existe transição do conceito a um objeto fora da consciência (isto é, fora da definição e experiência sensorial), e pode não pode existir tal transição. Passando de termo em termo, essa lógica pode, em momento algum, descobrir uma ponte de um termo a um objeto, ao invés de outro termo, uma ponte para “concreticidade” em seu sentido genuíno, ao invés de uma coisa dada a um indivíduo em sua experiência direta.

A única ponte que leva de um termo a um objeto, do abstrato ao concreto e de volta, uma ponte que permite estabelecer uma conexão firme inequívoca entre os dois, é, como Marx e Engels já mostraram em A Ideologia Alemã, atividade prática envolvendo objetos, o ser objetivo das coisas e homens. O ato teórico puro não é suficiente aqui.

“Para os filósofos, uma das tarefas mais difíceis que há é a de descer do mundo do pensamento para o mundo real. A realidade imediata do pensamento é a linguagem. Assim como os filósofos autonomizaram o pensamento, também tiveram de autonomizar a linguagem num reino próprio. Este é o segredo da linguagem filosófica, na qual os pensamentos, como palavras, possuem um conteúdo próprio” (Marx e Engels, 2007, p. 429)Referência 14, escreveu Marx em 1845, quase um século antes das últimas descobertas positivistas no campo da lógica serem feitas. Como resultado dessa operação, “o problema de descer do mundo dos pensamentos para o mundo real se converte no problema de descer da linguagem para a vida” (Marx e Engels, 2007, p. 429)Referência 15, e é percebida pelos filósofos nesta tendência como uma tarefa para ser resolvida verbalmente, também, como uma tarefa de inventar palavras mágicas especiais que, enquanto permanecem como palavras, seriam algo mais do que palavras.

Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels demonstraram brilhantemente que aquela tarefa era imaginária, decorrente do ponto de vista de que linguagem e pensamento são esferas separadas organizadas de acordo com suas próprias regras e leis imanentes, ao invés de formas de expressão da vida real, do ser objetivo dos homens e coisas.

Vimos que todo o problema de chegar do pensamento à realidade e, em consequência, da linguagem à vida só existe na ilusão filosófica [...] Esse grande problema [...] naturalmente acabou por tomar o rumo de que um desses cavaleiros andantes saiu à procura de uma palavra que, como palavra, constituísse a transição em questão; que, como palavra, deixasse de ser mera palavra; que, como palavra, apontasse de modo misterioso, supralinguístico, a partir da linguagem em direção ao objeto real designado por ela (Marx e Engels, 2007, p. 432)Referência 16.

Nestes dias também, muitos filósofos burgueses tentam resolver este pseudoproblema enraizados na concepção de que todo o sistema gigante de “conceitos abstratos” é baseado em tal fundação balançada e elusiva como a imagem individual em uma percepção individual, como “o único individual”, isto é, separado de todo o resto, denominado o objeto “concreto”. Tudo isso não é mais que a velha busca pelo absoluto. Enquanto Hegel procurou pelo absoluto no conceito, neopositivistas estão procurando na esfera das palavras ou signos combinados de acordo com regras absolutas.

Marx e Engels, descartando resolutamente o idealismo na filosofia, viam o pensamento e linguagem como “que eles são apenas manifestações da vida real” (Marx e Engels, 2007, p. 429)Referência 17, e definições de conceitos, como definições verbalmente registradas da realidade. Mas a realidade foi aqui construída não simplesmente como um mar de coisas individuais em que indivíduos separados capturam definições gerais abstratas na rede da abstração, mas sim uma concreticidade organizada nela mesma, isto é, um sistema articulado das relações dos homens com a natureza. Linguagem e pensamento são precisamente uma expressão direta (forma de manifestação) do sistema dos homens e coisas.

Sobre esta base Marx e Engels resolveram o problema do significado objetivo de todas essas “abstrações” que hoje em dia aparecem na filosofia idealista (incluindo a filosofia neopositivista) como “objetos abstratos” específicos independentemente de existirem na linguagem.

Marx e Engels deram uma interpretação materialista a todas essas abstrações misteriosas que, de acordo com a filosofia idealista, existiam somente na consciência, no pensamento e linguagem, descobrindo seus objetivos fatuais equivalentes na realidade concreta. O problema da relação do abstrato e do concreto desse modo deixou de ser a relação de uma abstração expressa verbalmente a uma coisa individual, dada sensorialmente. Isso emergiu como o problema da divisão interna da realidade concreta nela mesma, como o problema da relação entre os elementos distintos desta realidade.

A solução para o problema descoberto por Marx e Engels é aparentemente muito simples: definições de conceitos são nada além de definições de elementos diferentes da verdadeira concreticidade, isto é, da organização governada por lei de um sistema de relações homem-homem e de homem-coisas. Estudo científico desta realidade concreta precisa produzir definições “abstratas” de conceitos expressando sua estrutura, sua organização. Cada definição abstrata do conceito precisa expressa o elemento distinto que é realmente (objetivamente) destacado na realidade concreta. A solução é muito simples à primeira vista, no entanto corta em um só golpe o nó górdio do problema que a filosofia idealista tem até então sido incapaz de resolver.

O abstrato não é, deste ponto de vista, somente um sinônimo do puramente ideal, existindo somente na consciência, no cérebro do homem na forma de sentido ou significado de uma palavra-signo. Este termo também é aplicado por Marx, com toda justificação, à realidade fora da consciência, por exemplo: “trabalho humano abstrato” (Marx, 2013, p. 116)Referência 18, ou “um indivíduo humano abstrato – isolado” (Marx e Engels, 2007, p. 538)Referência 19, ou “o ouro é a forma material da riqueza abstrata” (Marx, 2003, p. 126)Referência 20, e assim por diante.

Todas essas expressões parecerão absurdas e incompreensíveis para os lógicos e filósofos para quem o abstrato é um sinônimo do puramente ideal, mental, intelectual, enquanto o concreto é um sinônimo do individual, percebido sensorialmente. Isso é somente devido ao fato de que seu tipo de lógica nunca será capaz de resolver a tarefa dialética que a realidade concreta das relações capitalistas coloca perante o pensamento. Da perspectiva da escola lógica, essa realidade aparecerá totalmente mística. Aqui, por exemplo, não é “o abstrato” que possui o significado de um aspecto ou propriedade “do concreto”, mas, ao contrário, o concreto sensorial possui o significado de mera forma de manifestação do abstratamente universal. Nesta inversão, a essência do que não foi revelado antes de Marx, reside toda a dificuldade de entender a perspectiva da forma valor.

Esta inversão, pela qual o concreto sensorial emerge somente como uma forma do abstratamente geral, e não, reciprocamente, o abstratamente geral como uma propriedade do concreto, caracteriza a expressão do valor. É isso que torna sua compreensão difícil. Se eu digo que o direito romano e o direito alemão são ambos direito, isso é evidente. Seu eu digo, ao contrário, o direito, essa abstração, se realiza a si própria no direito romano e no direito alemão, nestes direitos concretos, então a relação se torna mística (Marx, 1867, S. 771).(1)

E esta não é simplesmente uma forma mistificadora de expressar fatos no discurso, na linguagem, também não é uma virada Hegeliana especulativa do discurso, mas sim uma expressão verbal completamente acurada da real “inversão” dos elementos da realidade conectados um com o outro. Esta é uma expressão de nada além do fato real da dependência universal dos elos isolados separados da produção social um sobre o outro, um fato completamente independente tanto da consciência dos homens quanto de sua vontade. Para o homem, este fato inevitavelmente aparece como um poder místico “do abstrato” sobre “o concreto”, isto é, o poder da lei universal guiando os movimentos das coisas separadas (individuais) e pessoas sobre cada pessoa individual e cada coisa individual.

A virada “mística” do discurso, tão reminiscente do modo de expressão Hegeliano, reflete a dialética real das “coisas” e “relações” dentro da qual a coisa existe. O ponto mais interessante é, entretanto, que a natureza mística desta expressão resulta precisamente do fato de que “o abstrato” e “o concreto” são usados no sentido atribuído a eles pela escola lógica.

Realmente, se “concreto” é aplicado à definição da coisa, e “abstrato”, à definição da relação entre eles, considerado como um objeto independente e especial do pensamento e definição, um fato como dinheiro instantaneamente começa a aparecer bastante místico. Pois, objetivamente, independentemente das ilusões que alguém pode ter sobre este ponto, “dinheiro, sob a forma de um objeto natural de propriedades determinadas, representa uma relação social de produção” (Marx, 2003, p. 20, itálicos de Ilienkov)Referência 21. Por esta razão, economistas burgueses, como Marx observa, são continuamente maravilhados “quando de repente se lhes apresenta como relação social o objeto que no mesmo instante gravemente julgavam segurar na mão, e quando inversamente zomba deles sob a forma de objeto o que acabavam de catalogar na categoria das relações sociais” (Marx, 2003, p. 20)Referência 22.

Devemos apontar que este “místico” não é uma característica específica somente da produção capitalista. A dialética da relação entre uma “coisa” individual (isto é, o objeto de um “conceito concreto”) e aquela “relação” dentro da qual a coisa é esta coisa particular (isto é, o objeto do “conceito abstrato”) é uma relação universal. Essa é uma manifestação do fato objetivamente universal de que em geral não existem coisas no mundo que existiriam isoladas dos elos universais – coisas sempre existem em um sistema de relações uma com a outra. Este sistema de coisas interagindo (o que Marx chamou concreticidade) é sempre algo determinante e, portanto, logicamente primário em se considerando cada coisa percebida sensorialmente separada. A situação extraordinária quando “relação” é tomada por uma “coisa”, e uma “coisa” por uma “relação”, surge precisamente devido a esta dialética.

Um sistema de coisas interagindo, certo sistema governado por lei dessas relações (isto é, “o concreto”) sempre aparece na contemplação como uma coisa percebida sensorialmente separada, mas aparece somente em uma manifestação particular, fragmentária, isto é, abstratamente. Toda a dificuldade da análise teórica é que a “relação” entre coisas não deveria ser considerada abstratamente, como um objeto específico independente, nem reciprocamente a “coisa” deveria ser vista como um objeto isolado existindo fora de um sistema de relações com outras coisas, mas ao invés disso, cada coisa deveria ser interpretada como um elemento ou momento de certo sistema concreto de coisas interagindo, como uma manifestação individual concreta de certo sistema de “relações”.

A virada do discurso apresentando “o concreto” como algo subordinado a “o abstrato” e até como seu produto (e esta é a raiz de toda mistificação Hegeliana do problema do universal, do particular e do individual), expressa na verdade a absolutamente real circunstância que cada fenômeno individual (coisa, evento etc.) é sempre gerado e existe em sua definição e mais tarde morre dentro de coisa todo concreto, dentro de um sistema de coisas individuais se desenvolvendo de forma governada por lei. O “poder” ou a ação determinante da lei (e lei é na realidade o universal na natureza e sociedade) em consideração a cada coisa individual, o determinante significativo do todo na relação com suas partes, é exatamente o que é percebido como o poder “do abstrato” sobre “o concreto”. O resultado é a expressão mistificada.

Marx revelou esta mistificação mostrando a realidade “do concreto” como um sistema total de coisas interagindo, desenvolvendo e resultando do desenvolvimento, como um todo dividido de acordo com alguma lei, ao invés de como uma coisa isolada individual. Dada esta interpretação, qualquer sombra de mistificação desaparece.

O concreto (e não o abstrato) – como realidade tomada como um todo em seu desenvolvimento, em sua divisão governada por lei – é sempre algo primário com respeito ao abstrato (seja se este abstrato deveria ser construído como um momento relativamente isolado separado da realidade ou seu reflexo mental verbalmente registrado). Ao mesmo tempo qualquer concreticidade existe somente através de seus próprios elementos distintos (coisas, relações) como sua combinação específica, síntese, unidade.

Isso é exatamente porque o concreto é refletido no pensamento somente como uma unidade de diversas definições, cada uma registrando precisamente um dos momentos realmente distinto em sua estrutura. Reprodução mental consistente do concreto é, portanto, percebida como “ascensão do abstrato ao concreto”, isto é, como combinação lógica (síntese) de definições particulares em um ponto de vista global teórico agregado da realidade, como movimento do pensamento do particular ao geral.

A forma de destacar as definições separadas (particular) e vinculá-las não é de forma alguma arbitrária. Essa sequência é determinada genericamente, como os clássicos do marxismo-leninismo mostraram, pelo processo histórico do nascimento, formação e aumento da complexidade da esfera concreta da realidade que neste caso é reproduzido no pensamento. As definições abstratas universais, primárias, fundamentais do todo, pelas quais a construção teórica deveria sempre começar, não são formadas aqui, de qualquer forma, através da simples abstração formal a partir de todos os “particulares” sem exceção que formam parte do todo.

Desse modo, valor, a categoria universal primária de O Capital, não é definida através de abstrações que reteriam as características gerais igualmente inerentes na mercadoria, dinheiro, capital, lucro e renda, mas através das melhores definições teóricas de um “particular”, a saber, mercadoria, todos os outros particulares, entretanto, sendo estritamente deixados de fora da consideração.

A análise da mercadoria, esta concreticidade elementarmente econômica, produz definições universais (e neste sentido abstrato) pertencentes a qualquer outra forma “particular” das relações econômicas. A questão toda é, entretanto, que mercadoria é o tipo de particular que é simultaneamente condição universal da existência de outros particulares registrados em outras categorias. Ela é uma entidade particular cuja toda especificidade reside em ser o universal e o abstrato, isto é, formação “celular”, elementar, não desenvolvida, se desenvolvendo através de suas contradições iminentemente inerentes em outras formações mais complexas e bem desenvolvidas.

A dialética do abstrato e do concreto no conceito reflete bastante precisamente a dialética objetiva do desenvolvimento de um tipo de relação real (historicamente definido) entre homens em outros tipos de relações, tão real, mediada por coisas. O movimento integral do pensamento do abstrato ao concreto é, portanto, ao mesmo tempo o movimento absolutamente estrito do pensamento de fato a fato, transição de considerar um fato a considerar outro fato, ao invés de movimento “do conceito ao conceito”.

Esta característica específica do método de Marx precisou ser continuamente enfatizada pelos clássicos do marxismo em seus argumentos contra interpretações kantianas da lógica de O Capital. Esta característica específica consiste em que ao aplicar este método “de não se tratar de um processo puramente lógico, e sim de um processo histórico e da sua reprodução inteligível no pensamento, da averiguação lógica dos seus nexos internos” (Engels, 2008b, p. 1173)Referência 23.

O problema da relação do abstrato e do concreto no conceito é resolvido corretamente somente com base desta abordagem. Todo conceito é abstrato no sentido de que registra somente um dos momentos particulares da realidade concreta, ao invés da realidade concreta em sua totalidade. Cada conceito é concreto, também, pois não registra as “características” formais gerais dos fatos heterogêneos, mas sim expressa de uma maneira mais precisa a definição concreta do fato ao qual pertence, sua característica específica devido à qual ele desempenha este e não aquele papel no todo agregado que é a realidade, tendo esta função particular e “significado” e não alguma outra.

Todo conceito (se é realmente um conceito bem desenvolvimento e não meramente uma noção geral verbalmente fixada) é, portanto, uma abstração concreta, por mais contraditório que possa parecer da perspectiva da velha lógica. É sempre a coisa que é expressa nele (isto é, um fato afirmado empiricamente, sensorialmente), mas uma coisa considerada em consideração com sua propriedade que possui especificamente como um elemento de um sistema concreto dado de coisas interagindo (fatos), ao invés de simplesmente como uma coisa abstrata que pertence a uma esfera indeterminada da realidade. Uma coisa considerada fora de qualquer sistema concreto de relações com outras coisas é também uma abstração – nada melhor do que relação ou propriedade considerada como um objeto específico desconectado das coisas, o suporte material das relações e propriedades.

A concepção marxista das categorias do abstrato e do concreto como categorias lógicas (universais) foi mais elaborada nos numerosos trabalhos filosóficos e fragmentos de Lenin em suas excursões na lógica que ele empreendeu considerando problemas políticos, político-econômicos e sociais. Sempre que ele tocou nestes problemas, Lenin inabalavelmente defendeu os pontos de vista desenvolvidos por Marx e Engels, enfatizando a importância objetiva das abstrações teóricas e vivamente rejeitando abstrações formais vazias que registravam de forma verbal afinidades formais escolhidas arbitrariamente, “características similares” de fenômenos heterogêneos realmente desconectados. Para Lenin, “o abstrato” era sempre um sinônimo de palavreado divorciado da vida, um sinônimo da criação formal da palavra, de uma definição não verdadeira e vazia a qual nenhum fato definido corresponde à realidade. E ao contrário, Lenin sempre insistiu na natureza concreta da verdade e de conceitos expressando a realidade, nos elos indissolúveis entre palavra e ação, pois somente estes elos que asseguravam reais sínteses sensatas do abstrato com o concreto, do universal com o particular e o individual. Os pontos de vista de Lenin nesta questão são de enorme importância para a lógica, necessitando de outros estudos cuidadosos, generalização e sistematização. É fácil entender que esses pontos de vista não possuem qualquer coisa em comum com a divisão metafísica de conceitos, dado de uma vez por todas, no “abstrato” (conceitos de coisas ou fatos individuais) e “concreto” (se referindo a relações e propriedades consideradas “em isolamento das coisas”, como “objetos específicos”). Lenin avaliou conceitos de ambos os tipos como igualmente abstratos, ele não valorizou eles altamente, sempre insistindo que fatos e coisas deveriam ser compreendidos em sua coesão global e interação concreta (isto é, em suas “relações”), enquanto qualquer consideração de relações sociais deveriam sempre ser baseadas em um tratamento mais cuidado e sério das “coisas”, dos fatos estritamente atestados, as relações sociais nunca sendo tomadas como “um objeto específico” considerada separadamente das coisas e dos fatos. Em outras palavras, Lenin insistiu em todas as ocasiões no pensamento concreto, pois concreticidade era para ele, assim como para Marx, um sinônimo do significado objetivo e veracidade dos conceitos, enquanto abstração, um sinônimo para seu vazio.

O que nós temos dito aqui garante a seguinte conclusão: em ambas as lógicas formal e dialética, é inadmissível dividir conceitos, de uma vez por todas, em duas classes – abstrato e concreto. Esta divisão é conectada com tradições na filosofia que estão longe de serem as melhores, precisamente aquelas tradições que não somente Marx e Lenin lutaram contra, mas também Hegel, Espinoza e genericamente todos aqueles pensadores que entenderam que conceito (como uma forma do pensamento) e termo (um símbolo verbal) eram coisas essencialmente diferentes. Existem certos motivos para dividir termos em nomes de coisas separadas percebidas sensorialmente pelo indivíduo e nomes de suas propriedades e relações “gerais”, enquanto em considerando os conceitos esta divisão não tem sentido. Não é uma divisão lógica. Não existe razão para isso na lógica.