MIA > Biblioteca > Hegel > Novidades
Introdução: Do Romântico em Geral
Conforme já demonstramos a respeito da arte simbólica e da arte clássica, a forma de arte romântica é também determinada pelo conceito intrínseco do conteúdo que se pretende representar. Tentaremos formar uma idéia precisa do princípio que está na base deste conteúdo novo, como conteúdo absoluto da verdade, de uma nova teoria do mundo e de uma nova forma de arte.
A gênese da arte foi caracterizada pela tendência da imaginação para se separar da natureza a fim de se orientar para a espiritualidade. Ainda se tratava apenas de uma tentativa do espírito que, por não ter encontrado o conteúdo verdadeiro para a arte, era obrigado a se contentar com revestir as significações naturais de formas exteriores ou as interioridades substanciais, de abstrações que não possuem subjetividade, tornando essas formas exteriores e abstrações o próprio centro da arte. As coisas se mostram de maneira muito diferente na arte clássica. Nela a espiritualidade, que busca sua afirmação à custa das significações naturais, é base e princípio do conteúdo, sendo o que há de natural neste, de corporal e sensível, o que lhe dá alicerce exterior. Mas em vez de ficar, como na fase anterior, superficial e indeterminada, impermeável ao seu conteúdo, esta forma é tal que, por causa dela, a arte se tornou capaz de atingir o mais alto grau de perfeição, penetrando-a de espiritualidade, fazendo dela uma realidade adequada ao espírito em sua individualidade substancial e idealizando o natural por via desta bela união entre o fora e o dentro. Dessa maneira a arte clássica se afirmou como a representação mais autêntica do ideal, como a implantação do reino da beleza. Nada de tão belo pode haver nem nunca mais haverá.
Entretanto existe algo mais elevado que a representação bela do espírito em forma sensível, direta, criada até por ele mesmo como sua adequação. É que aquela união, realizada no elemento exterior e que proporciona à realidade sensível uma existência conforme e adequada, não deixa de se opor ao verdadeiro conceito do espírito. O repouso e a tranqüilidade que o espírito achava ter encontrado na exteriorização corporal se mostram precários, e ele sente-se cada vez mais impelido a fechar-se em si mesmo, procurando o repouso num acordo consigo mesmo. A mera totalidade do ideal, sólida em aparência, desagrega-se e cliva-se em duas: o subjetivo em si e a manifestação exterior, e esta cisão vai permitir ao espírito realizar uma pacificação mais profunda, em acordo mais íntimo com seu domínio interior próprio. O espírito que se baseia no princípio da adequação a si mesmo, na fusão do seu conceito com a realidade, só no seu próprio mundo pode encontrar uma existência de acordo com sua natureza, no seu mundo espiritual, em sua própria alma, na sua sentimentalidade íntima, em suma, no mais íntimo e profundo de sua condição intrínseca. Desta forma o espírito adquire a consciência de ter em si mesmo o seu outro, a sua existência enquanto espírito e de gozar a sua infinitude e liberdade.
Esta elevação do espírito para si mesmo, por meio da qual ele encontra em si mesmo a subjetividade que tinha sido até então obrigado a buscar no mundo sensível e exterior, adquirindo assim o sentimento e a consciência da união consigo mesmo, esta elevação é o princípio fundamental da arte romântica. Um outro princípio liga-se por necessidade a este: o de que a beleza do ideal clássico, e portanto a beleza na forma ajustada melhor ao conteúdo que se precisa exprimir, não é o fim supremo e último da arte romântica. Na fase romântica, o espírito sabe que a sua verdade não consiste em mergulhar no corpóreo e que, pelo contrário, ele adquire a consciência de sua verdade somente quando se retira do exterior para regressar a si mesmo, pois já não encontra lá os elementos de uma existência adequada. Até o ponto em que este novo conteúdo impõe a si mesmo a tarefa de se apresentar em forma de beleza, esta, no sentido que vimos dando a tal palavra, continua a ser para ele um atributo secundário; a beleza que lhe importa é puramente espiritual, a beleza da interioridade como tal, da subjetividade infinita e espiritual em si mesma.
Para se instalar no infinito, o espírito deverá erguer-se no sentido do Absoluto, acima da personalidade formal e finita. Em outras palavras: o espiritual deverá representar-se pleno de substancialidade e, no coração desta, como sujeito dotado de um saber e de um querer que apenas vêm de si próprio. A substancialidade, pelo contrário, a verdade não deve ser concebida como um além do humano somente, o que implicará tão só a impressão do antropomorfismo grego; é o humano, enquanto real subjetividade, que se deve adotar por princípio, o que, pelo contrário, implicaria, conforme vimos, um antropomorfismo mais acabado e perfeito.
Quanto aos principais elementos envolvidos nesta determinação básica, temos de considerar, de um modo geral, apenas o conjunto dos objetos e a sua forma modificados pelo novo conteúdo da arte romântica.
O verdadeiro conteúdo da arte romântica é constituído por aquilo que é intrínseco em absoluto, e a forma correspondente pela subjetividade espiritual consciente de sua autonomia e liberdade. Estes infinito e universalidade em si e para si implicam uma atitude negativa em absoluto face a toda a particularidade, um acordo consigo mesmo que ignora quaisquer separações ou processos da natureza, a sucessão do nascimento, desaparecimento e reaparição, toda a limitação da vida espiritual, e o resultado desta atitude e a recondução de todos os deuses particulares a uma pura e simples identificação com a subjetividade espiritual. Tem-se assim um Panteão de deuses destronados, destruídos pela chama da subjetividade e, no lugar do politeísmo plástico, a arte agora já se reconhece um único deus, um espírito único que goza de autonomia absoluta, encontra-se numa perfeita e livre união consigo mesmo, e não se decompõe em uma multiplicidade de caracteres e funções particulares reunidas pelo único liame de uma necessidade obscura.
A subjetividade absoluta escaparia, como tal, ao domínio da arte e só pertenceria ao pensamento quando, para ser uma subjetividade real e em conformidade com seu conceito, ela não se introduzisse também na realidade exterior para, depois, refletir-se em si mesma. Graças a esta passagem através da realidade, a este contato íntimo e direto com ela, o Absoluto, em lugar de surgir com o aspecto de um deus cuja atividade se limitasse apenas a diminuir, ou até a suprimir, tanto a natureza quanto a existência humana em que nelas se manifestasse como subjetividade real e divina realmente, antes revela-se como o verdadeiro Absoluto, ficando desta forma acessível à apreensão e à representação artísticas.
Porquanto a existência de Deus não é um fato natural e sensível, mas um fato que vai além do sensível; é que ela se torna subjetividade espiritual e esta, em vez de perder o caráter absoluto na sua manifestação exterior, adquire justamente, por causa desta manifestação, a certeza de sua realidade como Absoluto. Em verdade, Deus não é um simples ideal criado pela imaginação, mas intervém na finitude da realidade exterior, feita de acasos e acidentes, sem que, no coração desta realidade, deixe de ser, e de saber que o é, a substância que permanece infinita em si mesma, e sendo, ela mesma, origem da infinitude. Como assim a manifestação de Deus torna-se o sujeito, a arte adquire o direito de utilizar a forma humana exterior para exprimir o Absoluto, embora a nova tarefa de que virá a incumbir-se consista não em fazer o trânsito da interioridade para o exterior corpóreo, mas, pelo contrário, em salvaguardar a independência da interioridade, tornando perceptível no sujeito a consciência espiritual de Deus. Os vários momentos que compõem o todo desta teoria de mundo, enquanto totalidade da verdade, agora se apresentam como manifestações humanas que já nada têm a ver com os momentos das fases anteriores, cuja forma e conteúdo eram representados ou pelos objetos naturais, como o Sol, os astros, etc., ou, conforme os gregos, por deuses de beleza radiante, por heróis, façanhas e ações relacionadas aos deveres impostos pela moral da família ou pela vida política; é o sujeito individual, real, animado de vida interior, que adquire valor infinito, como único núcleo onde são elaborados, e de onde irradiam os eternos momentos daquela absoluta verdade que só se realiza como espírito.
Ao comparar o caráter da arte romântica, conforme o acabamos de definir, com o da arte clássica, cuja expressão mais perfeita é a escultura grega, verificamos que as figuras plásticas dos deuses não exprimem o movimento e a atividade do espírito que abandona a esfera da sua representação exterior e regressa a si mesmo, ao seu intrínseco ser-para-si. O que existe de variável e acidental na individualidade empírica com certeza encontra-se reduzido ao mínimo nessas belas figuras de deuses, porém o que lhes falta é a subjetividade que existe para si, que se sabe e deseja a si mesma. Esta lacuna traduz-se exteriormente por faltar nas estátuas a luz do olhar, na qual a alma exprime-se em sua simplicidade. As obras mais completas da bela escultura demonstram este defeito, pois sua interioridade não se revela como tal e naquele estado de concentração espiritual que só o olhar é capaz de exprimir. Essa luz interior, em vez de emanar das estátuas, está no espectador cuja alma não se encontra diante de uma alma nem o olhar encontra outros olhos. O Deus da arte romântica é, contudo, um Deus que vê, que se sabe Deus e possui uma subjetividade intrínseca, um Deus com uma interioridade que se abre e revela-se à dos crentes. Com efeito, a negatividade infinita, o espiritual refletindo sobre si mesmo, suprimem a difusão total no que é corpóreo; a subjetividade é a luz espiritual iluminando a si mesma, que brilha onde só havia escuridão, e enquanto a luz natural só pode iluminar objetos fora dela mesma, o objeto e o âmbito da luz espiritual é ela mesma, ou seja, a subjetividade que se sabe como tal. Entretanto considerando que esta interioridade absoluta assume, em sua manifestação real, um aspecto humano, e dado que o humano liga-se por sua vez ao conjunto do mundo a que pertence, disso resulta uma grande variedade de formas, tanto do subjetivo espiritual quanto do objetivo concreto e exterior que o espírito reconhece como seu.
A realidade, elaborada desta maneira pela subjetividade absoluta, pode se manifestar de três maneiras, tanto pela forma quanto pelo conteúdo:
O Ponto de Partida nos será fornecido pelo próprio Absoluto que se realiza, afirma e sabe como espírito. A figura humana é representada de tal modo que possa, de imediato, ser reconhecida como participante do divino. O homem não se apresenta apenas como homem, com caráter puramente humano e paixões limitadas, com fins e realizações precárias, somente consciente de Deus; sim, como o próprio Deus único e universal, que viveu, teve sofrimentos, nasceu, morreu e ressurgiu, revelando, até a consciência finita, o que são o eterno e o infinito de acordo com a verdade. A arte romântica representa este conteúdo na história de Cristo, de sua mãe e de seus discípulos, bem como de todos os que o Espírito Santo inspira e agem movidos da sua divindade. Uma vez que é Deus, enquanto Universal, revelando-se na vida humana, a realidade que apresenta esta revelação não se limita apenas à manifestação individual e imediata do Cristo, mas amplia-se a toda a humanidade, onde o espírito de Deus afirma sua presença e permanece de acordo consigo mesmo. O âmbito desta auto-intuição, deste ser-em-si e para-si do espírito equivale à paz, à conciliação do espírito consigo mesmo em sua objetividade, ao nascimento de um mundo divino, de um reino de Deus onde o Divino, ao qual o princípio de conciliação com sua realidade é imanente, efetiva essa conciliação de modo pleno, e com ela a identificação perfeita consigo mesmo.
No entanto, se esta identificação, enquanto liberdade espiritual e infinitude, tem sua razão e suas raízes na essência mesma do Absoluto, a conciliação de onde ela provém não constitui um fato preexistente na realidade mundana, natural e espiritual; pelo contrário, ela se realiza graças à ascensão do espírito que, ao separar-se de sua manifestação imediata que se realiza realiza finita, ergue-se para a verdade. Para alcançar isto, para realizar a sua totalidade, conquistando a liberdade, o espírito deve começar por separar-se de si mesmo e se opor, com sua finitude, ao infinito em si. É em conseqüência desta separação de si mesmo, origem e causa de tudo o negativo e maligno na existência natural, finita e imediata, que o espírito se torna capaz de romper os laços que o prendem a essa existência, para se introduzir no reino do verdadeiro e santo. Trata-se portanto de uma atividade, de um movimento espiritual, de um processo composto por lutas e combates que trazem consigo a dor, a morte, o doloroso sentimento do nada, o tormento do espírito, do corpo. Da mesma forma que Deus começa por afastar para longe de si a realidade finita, também o homem finito, que tem seu ponto de partida fora do reino de Deus, deve elevar-se até Deus, afastar-se do finito, do que não possui valor nem dever, o que consegue quando ocorre a destruição da realidade imediata pela realidade verdadeira que Deus objetivou ao se manifestar como homem. A infinita dor que acompanha este sacrifício da subjetividade, o sofrimento e a morte que estavam mais ou menos eliminados nas representações da arte clássica, só adquirem caráter de necessidade na arte romântica.
Não é possível afirmar que os gregos tenham percebido o significado essencial da morte. Como nada viam de negativo em si, nem na natureza nem no caráter imediato do espírito associado ao corpo, consideravam ser a morte um trânsito abstrato, sem receio ou terror, com uma parada que não tinha outras conseqüências para o indivíduo morto. Mas quando a subjetividade, ao atingir o ser-em-si espiritual, adquire importância primordial, a negação implícita na morte aparece como negação da própria subjetividade, e isto a faz terrível. Ela se torna a morte da alma que, afastada para sempre de qualquer felicidade por ser negativa em-si e para-si, destina-se à infelicidade, á condenação eterna. Mas como a individualidade grega, considerada como subjetividade espiritual, não atribuía tal valor a si mesma, a morte lhe aparecia com rosto sereno, porque o homem só vê com receio as coisas às quais confere alto valor. Portanto a vida só adquire um valor infinito para a consciência quando o sujeito, considerando-se uma realidade espiritual, consciente, única, é tomado por um sentimento de terror ao pensar que o fim da morte é abolir essa realidade positiva da qual é, precisamente, a negação.
Por outro lado, a morte na arte clássica não possui a significação afirmativa que lhe atribui a arte romântica. Só com o progresso da reflexão e da consciência subjetiva, com Sócrates por exemplo, é que a imortalidade adquire um sentido mais profundo e aparece como a satisfação de uma exigência mais evoluída. Quando, no mundo subterrâneo, Ulisses declara (A Odisséia, XI, versos 482 a 491) que Aquiles é mais feliz do que todos os que viveram antes dele e viverão depois, pois sendo honrado outrora como igual aos deuses, agora reina entre os mortos, Aquiles, que parece não apreciar muito aquela felicidade, responde a Ulisses suplicando que este jamais pronuncie nenhuma palavra de consolo por ter (Aquiles) morrido, porque entre o destino do escravo de um homem pobre e o de reinar entre os mortos, preferia o primeiro. Por outro lado, a arte romântica representa a morte como um desejo da alma natural e da subjetividade finita, desejo que só é negativo perante aquilo que é negativo em si e que só tem em vista suprimir o que não tem valor ou libertar o espírito da sua finitude, também realizando a conciliação do sujeito com o Absoluto. Para os gregos, só a existência natural, exterior e mundana era afirmativa – essa existência de que a morte constitui apura e simples negação. Eles concebiam a morte como supressão, abolição da realidade imediata. Entretanto a morte, na visão romântica do mundo, significa a negatividade, ou seja, a negação, e isto a transforma em algo afirmativo; a morte liberta o espírito da naturalidade pura e simples e da finitude incompatível com o seu conceito. Assim, a dor e a morte da subjetividade cedem lugar ao reconhecimento em si, à satisfação e santidade, à existência afirmativa e pacificadora que o espírito só consegue atingir depois que dissipa a atmosfera negativa, isolante da verdade e da vida na verdade. Não se trata da morte que cai sobre o homem como uma fatalidade natural mas de um processo que, mesmo independentemente dessa negatividade exterior, o espírito deverá percorrer para se erguer a uma vida digna deste nome.
O terceiro aspecto do mundo absoluto do espírito é representado pelo homem na medida em que, em lugar de ser ele mesmo a manifestação do Absoluto e do Divino e de realizar o processo de ascensão e conciliação com Deus, continua preso nos limites do humano. O conteúdo aí se constitui pelo finito como tal, englobando esta expressão tanto os fins espirituais, os interesses profanos, as paixões, conflitos, sofrimentos, alegrias, esperanças, satisfações, quanto a natureza com toda sua riqueza de fenômenos particulares. Entretanto há duas maneiras de conceber este conteúdo. O espírito pode sentir-se, por um lado, como se estivesse no seu elemento legítimo, capaz de lhe oferecer todas as satisfações que deseja, e isto ocorre porque leva em conta apenas seu caráter positivo, se manifestando em seguida afirmativamente na realização e no caráter intrínseco; por outro lado, o mesmo conteúdo pode se degenerar até um estado de simples acidentalidade, sem aspirar a qualquer independência ou autonomia, e o espírito dessa forma não encontrará nele o seu modo verdadeiro de existir nem poderá realizar o acordo consigo mesmo, se não proceder de modo negativo em relação a esta finitude espiritual e temporal.
Conforme acabamos de ver, o elemento divino está muito reduzido na arte romântica. Em primeiro lugar, a natureza não tem caráter divino; o mar, as montanhas e vales, rios e fontes, o tempo e a noite, e todos os processos gerais da natureza perdem seu valor como formas de expressão do Absoluto ou partes que o constituem. As formações naturais não sofrem já uma simbólica ampliação, não sendo consideradas suas formas e manifestações como passíveis de traduzir os sinais da divindade. Ora, todos os grandes problemas referentes ao início do mundo, à origem e destino do homem, às finalidades da natureza, e todas as tentativas para resolver esses problemas por meio da representação plástica perderam a sua razão de ser desde o momento em que Deus se revelou no espírito; e até no domínio espiritual o mundo vivo e cheio de cores, com suas características, ações e ocorrências de aparência clássica, fez convergirem todos os seus raios para o coração do Absoluto com sua eterna história de redenção. Desta forma, o conteúdo está todo concentrado e localizado no caráter intrínseco do espírito, no sentimento e na representação, na alma que aspira a unir-se com a verdade, procurando evocar e fixar a divindade no sujeito. Os fins e feitos que ela tem de realizar neste mundo não pertencem a este mundo, ou, antes, sua única realização essencial consiste na luta interior do homem consigo mesmo, visando a conciliação com Deus, a realização e conservação da personalidade e sua representação com aparência divina.
O heroísmo que existe nesta luta e neste anelo não é um heroísmo que cria leis para si mesmo, impondo instituições, criando ou fazendo a transformação das situações; é um heroísmo de submissão, que vai de encontro a situações preexistentes e acabadas, e sua incumbência com elas é apenas acertar o que é temporal, aplicar as ordens que emanam de uma autoridade suprema, que existe em si e para si, às coisas do mundo passageiro. Mas como esse conteúdo absoluto concentra-se no coração da alma subjetiva e como todo o processo desenvolve-se agora na intimidade do homem, a esfera do conteúdo sofre nova ampliação, desta vez se ampliando numa extensão infinita, em ilimitada variedade de formas. Com efeito, apesar dessa história objetiva da redenção constituir o lado substancial da alma, o sujeito a percorre em todas as direções, seja para acentuar certos aspectos, seja para lhe acrescentar certos caracteres humanos, sendo, além disso, capaz de se identificar com a natureza para fazer dela o ambiente e o campo de atuação do espírito, usando-a em função do único e grande fim.
Disto surge um enriquecimento infinito do espírito, o que lhe permite adaptar-se às mais variadas circunstâncias. Quando o homem sai desta esfera do Absoluto e se mistura com as coisas do mundo, vê-se diante de interesses e fins, de sentimentos tanto mais variados e numerosos quando maior profundidade seu espírito adquiriu antes, o que lhe permite se impor aos conflitos e ataques das paixões multiplicadas ao infinito e sentir por isso todos os graus da satisfação. É o Absoluto Universal em si, tal como se apresenta à consciência humana, que constitui o conteúdo intrínseco da arte romântica, que obtém desta maneira, em toda a humanidadee no conjunto do seu desenvolvimento, matéria inesgotável.
Porém, não é enquanto arte que a manifestação artística romântica reproduz tal conceito, como o faz em parte a arte simbólica e principalmente a clássica com seus deuses ideais; se ela atribui forma artística ao conteúdo da verdade, é necessário não esquecer que tal conteúdo existia anteriormente fora do domínio artístico, na representação e no sentimento. Enquanto consciência geral da verdade, a religião constitui a pressuposição essencial da arte romântica, e suas manifestações exteriores e sensíveis se dão à consciência real em forma de eventos e fatos de atualidade imediata no dia-a-dia. Ora, dado que o conteúdo da revelação feita ao espírito é nada mais que a substância absoluta e eterna do espírito, afastando-se da natureza que a degrada, os fenômenos de que se compõe o mundo exterior só podem ser os de um mundo acidental de que o Absoluto afastou-se para cocar a si mesmo no espiritual e no intrínseco e tornar-se verdade em-si e para-si. Desta maneira o exterior se torna um elemento indiferente em que o espírito não pode se demorar e no qual não possui confiança alguma. Quanto mais indigna dele mesmo o espírito considerar a forma da realidade exterior, menos disposto estará a procurar satisfações nela, e à conciliação com ela.
É por isso que a arte romântica não ultrapassa, na representação dos fenômenos exteriores, os limites da realidade banal e vulgar, não sentindo medo em apropriar-se do mundo real com todos os seus defeitos, insuficiências e exatidão finita. Aqui não não estamos na presença da beleza ideal, que induzia o olhar de quem a contemplava para além do tempo, dando a impressão do eterno e imperecível, que sabia apreender e fixar a beleza da existência através das suas manifestações opacas e deformadas. A arte romântica já não aspira a reproduzir a vida em seu estado de serenidade infinita, a reproduzir a alma encarnada em um corpo; seu objetivo não é mais a realidade em si, adequada de maneira plena ao seu conceito; pelo contrário, volta as costas ao cume da beleza, faz a arte participar de tudo o acidental nas formas exteriores, atribuindo um lugar infinito ao que mais se acentua na antítese do belo.
Portanto na arte romântica estamos em presença de dois mundos: um mundo espiritual, perfeito em si, cuja alma é apaziguada e reconciliou-se consigo mesma, mundo da representação linear do nascimento e desaparição, que levam à reflexão sobre si e à verdadeira vida de fênix do espírito; e, por outro lado, um mundo exterior como tal, que se torna uma realidade completamente empírica logo que são rompidos os liames entre ele e o espírito, e cuja forma é indiferente para a alma. Na arte clássica, o espírito dominava os fenômenos empíricos e os penetrava por toda sua extensão, porque neles encontrava sua realidade perfeita. Agora a intrinsecidade aparece indiferente à maneira de representar o mundo exterior, pois o direto e imediato em nada interessa à alma e não contribui para sua santidade. O fora não pode mais exprimir o dentro, e se ainda se recorre a ele para se conseguir a representação interior, é justamente para demonstrar que o mundo exterior nunca poderá ser fonte de satisfações e insistir na importância que precisamos dar à interioridade, à alma, ao mundo dos sentimentos. Assim procedendo, a arte romântica deixa livre o mundo exterior, não lhe impondo nenhuma obrigação, e nem o submete a qualquer escolha; ela não elimina os objetos mais vulgares de suas representações, como por exemplo flores e árvores, ou os mais banais, como os utensílios domésticos, e tudo que existe de acidente e ocasional na natureza. Entretanto aceitando este conteúdo, ela jamais esquece que estes objetos são apenas exteriores, ou seja, indiferentes e vulgares, que só adquirem valor e dignidade na medida em que participam da alma, exprimindo a intrinsecidade como tal, e amostrando não na sua união com a exterioridade nem sua fusão mais ou menos completa com ela, mas na conciliação, no acordo total e completo consigo mesma. A interiorização, levada a este grau, não é mais do que o exterior despojado de sua exterioridade objetiva, um exterior invisível e imperceptível, uma sonoridade que emana de origem misteriosa, vôo sobre as águas, música de ondas que se expandem sobre um mundo o qual, por seus fenômenos heterogêneos, é apenas um fraco reflexo daquele ser-em-si da alma.
Resumindo esta relação entre forma e conteúdo na arte romântica, diremos que isto no qual o tom básico da arte romântica surge no seu aspecto mais autêntico é de natureza musical e, por causa do conteúdo preciso da representação, lírica; tal coisa explica-se porque a universalidade aí alcança o grau mais elevado e também porque a alma, para se exprimir, não pára de escrutinar suas profundezas mais íntimas. O abismo em verdade constitui a característica básica, essencial da arte romântica; encontra-se na epopéia e no drama e mesmo nas obras plásticas envoltas em um halo, vaporosa emanação da alma, pois em todas as produções desta arte a alma e o espírito dirigem-se apenas à alma e ao espírito.
A partir desta definição, falaremos do seu aspecto religioso, pois a história da redenção, a vida, morte e ressurreição de Cristo têm lugar importante. A determinação geral, neste ponto, é que o espírito manifesta atitude negativa perante sua condição imediata e finitude; ele consegue superar a ambas e, assim liberto, afirma-se como infinito e frui de absoluta independência no seu domínio próprio.
Quando o espírito adquire tal independência, por se tornar ele Divino e pela elevação do homem até Deus, ela é ampliada e se aplica às coisas do mundo terreno. É o sujeito como tal que, afirmativo face a si mesmo, adquiriu virtudes relacionadas com esta subjetividade afirmativa, que passam a constituir a substância da sua consciência e interesse da sua existência: Honra, Amor, Lealdade, coragem, fins e deveres da cavalaria romântica.
O Conteúdo e a forma do Terceiro Capítulo podem ser enfeixados, então, com o título genérico de independência formal do caráter. Se a subjetividade chegou a tal ponto que a independência constitui para ela o essencial, o conteúdo particular em que o aspecto subjetivo terá de se exercer deverá participar então dessa independência. Entretanto dado que este conteúdo não integra a substancialidade da vida subjetiva, ou seja, do domínio das verdades religiosas, sua independência apenas poderá ser formal. Por outro lado as circunstâncias e situações exteriores, ocorrências com seus encadeamentos e complicações, prosseguem, depois de recuperar sua liberdade, uma carreira aventurosa, sem ordem, nunca submetida a nenhuma diretiva. Veremos assim a arte romântica terminar por imprimir, tanto ao exterior como ao interior, um caráter acidental, e entre ambos estabelecendo uma separação que significa negar a arte e acentuar a necessidade da consciência em descobrir, para a expressão da verdade, formas mais elevadas do que aquelas que a arte lhe pode proporcionar.
Inclusão | 27/06/2014 |