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Primeira Edição: Marta Harnecker, renomada socióloga marxista-leninista chilena, fez uma grande entrevista em 2002 com Chávez, que estava há apenas três anos no governo e se forjava como uma grande figura histórica do continente. Nos anos posteriores, Chávez ganharia relevo na política internacional e se transformaria em um dos maiores inimigos das políticas intervencionistas dos Estados Unidos na América Latina. No Brasil, a entrevista saiu como livro em 2004, com o nome “Um homem, um povo”, com mais de 200 páginas, pela Editora Expressão Popular. Abaixo, leia a introdução escrita por Marta Harnecker em 2002.
Fonte: Escrevinhador Rodrigo Vianna https://www.revistaforum.com.br/blogs/rodrigovianna/page/2/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A idéia de entrevistar o presidente venezuelano Hugo Chávez Frías surgiu-me em abril de 2002. Eu havia programado fazer uma viagem por vários Estados da Venezuela para realizar palestras sobre meus últimos trabalhos sobre a esquerda.
Como não aproveitar essa ocasião para entrevistar o líder do processo revolucionário venezuelano, um processo tão tergiversado pelos meios de comunicação internacionais e tão pouco compreendido pelos setores progressista e de esquerda deste e de outros continentes?
Não é de se surpreender que isso ocorra, já que se trata de um processo sui generis, que rompe com os esquemas preconcebidos dos processos revolucionários.
Primeiro: surge a partir da esmagadora vitória de Chávez em uma disputa eleitoral e continua avançando pela via institucional, apesar de todas as provocações que recebe dos opositores.
Segundo: é conduzido por um ex-militar que, seis anos antes, ao procurar superar a crise política que já então vivia a Venezuela, ousou promover um levante militar contra o regime.
Terceiro: tem sido incapaz de eliminar a corrupção, uma de suas bandeiras de luta.
Quarto: não conta com um partido de vanguarda para conduzir o processo.
Quinto: é catalogado ideologicamente de indefinido, porque não assume ideologicamente o marxismo como ideologia, mas o bolivarianismo. Este, evidentemente, não fala da luta de classes, mas fala, sim, de integração latino-americana. Concebe a democracia como o sistema político que proporciona a máxima felicidade ao povo. Não aceita que um militar dirija suas armas contra o povo. E, talvez o mais significativo, adverte, já naquela época, que os “Estados Unidos da América do Norte parecem destinados pela providência a semear de misérias a América em nome da liberdade”.
Sexto: não materializou ainda transformações econômicas de envergadura e é um fiel pagador da dívida externa. Levando em conta tudo isso, muitos se perguntam: como falar então de processo revolucionário? Paradoxalmente teria havido uma contra-revolução sem uma revolução.
Propus, então, ao presidente Chávez, realizar uma longa entrevista, partindo das dúvidas da esquerda em geral, que lhe permitisse informar e refletir sobre temas como: o porquê da escolha da via institucional para realizar mudanças revolucionárias; as razões de uma presença militar tão importante tanto nos órgãos de governo quanto na condução de muitas das principais tarefas revolucionárias; as características das atuais gerações de militares venezuelanos que os tornam diferentes de outros exércitos latino-americanos; as relações históricas com a esquerda
organizada e suas desilusões; o tipo de modelo econômico que se pretende levar adiante e as razões do escasso avanço neste terreno; as dificuldades que teve de enfrentar, os erros cometidos; a aprendizagem conseguida através desses anos e uma visão dos últimos acontecimentos – o golpe reacionário de 11 de abril de 2002 e o retorno do presidente ao palácio de Miraflores.
Minha intenção era de que esta entrevista servisse não apenas para dar a conhecer o processo venezuelano e os enormes desafios que enfrenta ao tratar de avançar nas transformações profundas da sociedade pela via pacífica constitucional, mas também como material de formação para os que acreditam, diante do neoliberalismo selvagem que hoje arrasa o nosso continente, que outro mundo humanista e solidário é possível e procuram obstinadamente construí-lo.
Quando decidi empreender a tarefa, li algumas entrevistas que ele havia concedido e me dei conta de que vários dos temas que me interessava abordar já haviam nelas sido desenvolvidos. Estive a ponto de abandonar o empreendimento. Não tinha sentido obrigá-lo a repetir o que já havia dito a outros.
Duas coisas me fizeram decidir continuar adiante. Primeiro, o convencimento a que finalmente cheguei de que era possível aprofundar vários temas já abordados e levantar alguns novos. E, segundo, a possibilidade de difundi-lo de forma “massiva” entre os que acompanham meus trabalhos desde tempos atrás.
Compreendia as dificuldades que o presidente teria para me conceder uma longa entrevista e, por isso, devido ao tempo e para oferecer ao leitor o máximo de informação possível sobre cada tema, pensei que o melhor seria elaborar as perguntas precedendo-as de um longo comentário informativo que oferecesse uma síntese das idéias principais já expostas em outros lugares, entrevistas e discursos, permitindo-me evitar os temas já tratados e destinar o tempo que me concedesse para aprofundá-los e abordar os novos. Fiz então um longo questionário de 12 páginas que, como era de se esperar, dada as suas múltiplas tarefas, ele nunca leu.
Não pude realizar a entrevista da forma como me havia proposto. Chávez é um grande conversador, foi muito difícil que se centrasse exatamente no tema proposto. Costuma acompanhar suas exposições com episódios e referências históricas. Às vezes, parecia haver perdido o fio ou que não queria abordar a matéria proposta, mas, passado algum tempo e sem que eu lhe cobrasse, voltava sistematicamente à pergunta.
Por outro lado, em alguns assuntos, não pude impedir que repetisse a informação que havia concedido a outros entrevistadores, o que finalmente tornou-se positivo porque, em vários deles, o fez com maior profundidade, talvez motivado pelo perfil do leitor para o qual sabia estava destinado este trabalho.
Fui apreensiva para minha primeira entrevista: seria capaz de estar à altura da tarefa? Meu entrevistado compreenderia a dureza de algumas perguntas? O gravador funcionaria bem? Bastou conhecê-lo e conversar uns minutos para que todas as minhas preocupações se desvanecessem. Encontrei um homem simples, simpático, autocrítico, reflexivo, com uma grande capacidade para ouvir com atenção os comentários que lhe são feitos.
Apaixonado, com uma grande força interior. Chamou-me especialmente a atenção sua grande sensibilidade humana e sua genuína vocação popular. Adora suas filhas e filhos e é muito terno com eles. Não pode viver sem ter um contato direto e freqüente com os setores populares mais humildes, nos quais, ele sabe, reside sua maior força. Sabe que é adorado pelo seu povo, mas quer transformar esse amor em organização e desenvolvimento autônomo. É um dirigente extraordinariamente humano.
Todas essas virtudes não negam seus defeitos. Ele mesmo reconhece que tem grandes dificuldades para trabalhar em equipe, perde facilmente a paciência, ofende seus colaboradores, confia excessivamente em pessoas em quem não deveria confiar, é incapaz de organizar sua agenda de forma racional, fala mais do que deveria falar: diz toda a verdade quando só poderia dizer uma parte.
Não se define como marxista, mas sim como revolucionário e bolivariano. Está convencido de que só uma revolução – ou seja, uma profunda transformação econômico-social – pode tirar a Venezuela da crise que se arrasta há décadas e, sobre este tema, não está disposto a transigir, custe o que custar. Sabe que, no processo revolucionário bolivariano, está em jogo a esperança, não só de seu povo, mas também de muitos povos da América Latina e do mundo.
Escolheu a via pacífica para conseguir que esta se materialize e acredita sinceramente que este é o caminho mais desejável. Tem uma grande fé no papel que pode desempenhar o povo como poder constituinte para evitar que seus opositores obstruam este caminho. “O admirável em nossa nova
Constituição, costuma dizer, é que não permite que se aliene o Poder Constituinte”.
Esse é o último recurso no caso de o processo ser obstruído institucionalmente. Não pretende ter soluções claras e precisas para todos os problemas que angustiam a esquerda mundial. Reconhece honestamente que não possui todas as respostas, e está convencido de que deve caminhar guiado por algumas orientações básicas e ir criando muitas delas no caminho.
Tem absolutamente claro que não há processo revolucionário sem povo organizado e consciente e, por isso, dedica uma parte significativa de seu tempo a educar esse povo através de seus discursos e de seu programa semanal radiotelevisado “Alô, Presidente!”, além de seu contato direto com o povo. Não se cansa de chamá-lo para desempenhar um papel ativo na construção da nova sociedade que está nascendo. Sua obsessão tem sido transformar todo esse povo que se expressou nas ruas em 12, 13 e 14 de abril em organização. Não perde oportunidade para convocar pela construção de círculos bolivarianos dos mais diversos tipos. Sabe que um povo organizado e não desarmado, porque conta com o apoio de parte significativa da Força Armada, é invencível.
Mas, voltando à entrevista, apesar de ter gravado mais de 15 horas em diferentes sessões de trabalho, que ocorreram nos meses de junho e julho de 2002, em vários lugares da Venezuela, num jipe a caminho de El Vigia, em Mérida; num helicóptero em direção a um bananal, no mesmo Estado, onde se realizou o programa “Alô, Presidente!”; no avião presidencial em vôo de regresso para Caracas; na residência presidencial La Casona; na residência presidencial na ilha La Orchila, lugar onde esteve preso nas últimas horas do golpe militar de abril; no palácio de Miraflores; e no Forte Tiúna – foi impossível desenvolver completamente o amplíssimo questionário que eu havia elaborado.
As maiores lacunas ocorreram em dois temas: os elementos teóricos que fundamentam seu projeto e o instrumento político necessário para enfrentar os enormes desafios que ocorrem. Temas que, inclusive, ele reconhece como abertos.
Pareceu-me que a melhor forma de cobrir essas lacunas temporariamente, já que não renuncio à idéia de aprofundar esses temas em uma futura entrevista, era sintetizar os aspectos não abordados com dados conseguidos por mim da mesma forma que havia feito para o questionário, intercalando-os, sinteticamente, entre um tema e outro, ou no início de alguma pergunta.
A entrevista havia sido planejada para acontecer antes do golpe de Estado de 11 de abril de 2002, mas só foi possível materializá-la dois meses depois. As informações e reflexões sobre como um governante deposto por um golpe militar recupera o governo em menos de 48 horas, acontecimento único no mundo, ocupam um espaço importante neste livro.
E, falando do golpe, gostaria de terminar esta introdução com suas próprias palavras: “Quando penso no golpe do 11 de abril, lembro-me das idéias de John Kennedy, ex-presidente dos Estados Unidos, que disse: ‘Os que fecham o caminho para a revolução pacífica abrem o caminho para a revolução violenta’. Escolhemos fazer a revolução constitucionalmente, por um processo constituinte de inquestionável legitimidade. Se em algum momento de 11 e 12 de abril duvidei que uma revolução democrática e pacífica fosse possível, o que aconteceu em 13 e 14 de abril, quando essa imensa quantidade de pessoas saiu à rua para rodear o palácio de Miraflores e vários quartéis, exigindo meu retorno, reafirmou-se em mim, com muito vigor, a idéia de que, sim, é possível. Claro que a batalha é dura, e será dura e difícil. Trata-se da arte de tornar possível o que tem parecido e continua parecendo para muitos como algo impossível”.
Inclusão | 19/06/2019 |