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Até aqui quando usámos a palavra sociedade referimo-nos sempre a uma sociedade em que havia um único tipo de relações de produção: esclavagistas, servis ou capitalistas.
Mas existem ou existiram na realidade sociedades tão puras? Existem sociedades em que reine um único tipo de relações de produção?
Se, por exemplo, pensarmos em Portugal há uns anos atrás, constatamos que juntamente com as relações de produção capitalistas, que se encontravam principalmente nos centros urbanos e mineiros, as relações de produção que existiam no campo entre latifundiários e camponeses estavam muito mais próximas da servidão que do capitalismo, eram relações semi-servis; o camponês não era livre, não vendia a sua força de trabalho por um salário, mas devia sim trabalhar a terra do patrão com as suas próprias ferramentas, para receber em troca um pedaço de terra onde viver e do qual se pudesse alimentar.
Por outro lado, além dos capitalistas e dos operários, dos latifundiários e dos camponeses, existiam inúmeras pessoas que se dedicavam a fazer objectos em suas próprias casas ou a cultivar a sua própria terra, levando seguidamente os seus produtos ao mercado; estes artesãos e pequenos agricultores trabalhavam como pequenos produtores independentes ligados ao mercado.
Constatamos assim que nessa época podíamos afirmar que em Portugal existiam vários tipos diferentes de relações de produção: capitalistas, semi-servis, pequena produção independente, etc.
O que acontecia em Portugal há anos atrás ocorre ainda hoje se bem que com algumas diferenças pois a maior parte das relações semi-servis vão desaparecendo gradualmente para se transformarem em relações capitalistas.
Os camponeses trabalham hoje como os operários industriais, com ferramentas pertencentes ao patrão e recebendo a maior parte do pagamento do seu trabalho sob a forma de salário, se bem que ainda se conservem muitas influências de carácter ideológico das relações de produção anteriores.
Noutros países existem relações semi-servis no campo e nalguns existem mesmo grupos que vivem em comunidades onde as relações de colaboração recíproca são as mais importantes.
Então porque é que ao falarmos da sociedade nos referimos sempre a sociedades em que existe um único tipo de relações de produção?
Porque para compreender o que é a sociedade e distinguir um tipo de sociedade de outro usamos o método cientifico de explicar as coisas por meio de conceitos, isto é, investigamos qual é o elemento fundamental que determina a organização e funcionamento da sociedade e qual é o elemento fundamental que caracteriza cada um dos diferentes tipos de sociedade. Concluímos que este elemento fundamental são as relações de produção e que cada sociedade se distingue da outra por ter determinado tipo de relações de produção.
É para poder estabelecer esta distinção entre os diferentes tipos de sociedade que nos referimos a um único tipo de relações de produção em cada caso.
Isto leva a considerar a sociedade como «modo de produção».
Chamaremos MODO DE PRODUÇÃO ao conceito científico de sociedade que nos indica como ela se organiza com base nas relações de produção.
Com esta ideia clara que temos da sociedade, isto é, com os conceitos científicos que alcançámos, podemos estudar as sociedades concretas, por exemplo, Portugal. Neste caso já não se trata de compreender o que é uma sociedade ou de saber que existem diferentes tipos de sociedades mas sim de estudar uma sociedade que existe e que temos de conhecer para poder transformar.
É para fazer isto, para conhecer uma sociedade real, que necessitamos dos conceitos científicos de sociedade; eles são os instrumentos que usamos para conhecer e transformar a realidade social.
Em todas as sociedades reais encontramos simultaneamente diferentes relações de produção dominando uma delas as restantes.
Por isso o mais importante é assinalar por meio do estudo dessa sociedade em particular, qual é a relação de produção dominante e de que maneira domina as restantes.
São estas relações dominantes que permitem caracterizar uma sociedade determinada.
Por exemplo, quando falamos de Portugal dizemos que é um país capitalista. Fazemos igual afirmação relativamente a todos os países da Europa. Isto não significa que nestes países apenas existam relações de produção capitalistas. Também existem, como vimos, outras relações de produção que desempenham um papel secundário e que se vão desagregando à medida que se desenvolvem as relações de produção capitalistas.
Estas relações de produção diferentes dão origem a grupos sociais diferentes. Estes grupos sociais que se diferenciam entre si pelo lugar que ocupam na produção dos bens materiais, denominámo-las classes sociais(1).
Portanto, nesta sociedade concreta, a infraestrutura ou nível económico não é uma infraestrutura simples, formada por um só tipo de relações de produção, mas uma infraestrutura complexa em que há diferentes relações de produção. Isto implica que a superestrutura ou nível jurídico-político e ideológico, seja também complexa. Nela, juntamente com elementos dominantes que estão determinados pelas relações de produção dominantes, existem elementos secundários, determinados pelas outras relações de produção. O poder político, por exemplo, não resulta sempre do domínio puro de uma única classe mas pode resultar do domínio conjunto de duas ou mais classes contra os sectores explorados.
Quando estudamos ou falamos de uma sociedade real, de um determinado país, num momento determinado da sua história e em que existem diferentes relações de produção, utilizamos o termo «formação social».
Chamaremos FORMAÇÃO SOCIAL a toda a sociedade historicamente determinada.
Resumindo, analisámos qual a diferença entre o conceito de sociedade ou modo de produção e uma sociedade historicamente determinada ou formação social.
Estes conceitos permitem-nos compreender que para estudar uma formação social devemos dirigir a nossa atenção em primeiro lugar para o estudo do modo como se produzem nessa sociedade os bens materiais, quais são as relações de produção que ocorrem, qual destas relações é a dominante, que efeitos produzem estas relações nos níveis político, ideológico, etc.
Para realizar este estudo devemos observar a realidade concreta, procurar dados concretos, estatísticos ou de outro tipo, e estudá-los usando 08 conceitos que vimos. Não devemos nunca confundir estes conceitos com a realidade que estamos a estudar, isto é, não devemos nunca aplicar de forma cega e mecânica esquemas puros.
Não devemos, por exemplo, confundir a sociedade portuguesa com o conceito puro de modo de produção capitalista; já vimos que em Portugal existem outras relações de produção além das relações de produção capitalistas.
Além disso, se estudarmos estas relações de produção observando de forma concreta a nossa realidade, descobriremos que elas estão deformadas e submetidas às relações capitalistas dos países mais avançados(2).
Para concluir devemos afirmar que o conceito de modo de produção nos indica que em todas as formações sociais os elementos da superestrutura ajudam a manter e a reproduzir as relações de produção, mas em cada caso este facto tem características particulares.
Por isso, a luta dos trabalhadores contra a exploração económica exercida pelas, classes dominantes requer, para ter êxito, que se conduza ao mesmo tempo uma luta para destruir também os aparelhos por meio dos quais se exerce o poder político e ideológico das classes exploradoras. Exige, além disso, um conhecimento profundo da maneira como se exerce este domínio nesse país.
Esta luta dos trabalhadores contra a exploração vai sendo facilitada pois simultaneamente com a tendência para a reprodução das relações de produção surgem, no seio da própria sociedade capitalista, as condições que conduzem à sua destruição; agudizam-se as suas contradições internas e crescem e fortalecem-se as classes sociais que farão desaparecer este sistema de exploração.
Por isso os trabalhadores devem preparar-se para uma longa batalha e para utilizar todas as formas de luta que sejam necessárias para destruir definitivamente toda a exploração.
Notas de rodapé:
(1) O caderno de Educação Popular n.° 4: «Luta de Classes», aprofunda este tema. (retornar ao texto)
(2) No Caderno n.° 5 desenvolveremos este ponto. (retornar ao texto)