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Mas a guerra continua. E teremos de curar, durante muitos anos, as feridas múltiplas e às vezes indeléveis Infligidas aos nossos povos pela ruptura com o colonialismo.
O imperialismo, que agora luta contra uma autêntica libertação dos homens, abandona aqui e além germes de podridão que temos de descobrir implacàvelmente e extirpar das nossas terras e dos nossos cérebros.
Ocupamo-nos, aqui, do problema das perturbações mentais nascidas da guerra de libertação nacional que conduz o povo argelino.
Talvez pareçam inoportunas e deslocadas num livro como este algumas notas sobre psiquiatria. Não podemos evitá-lo de nenhuma maneira.
Não dependeu de nós que nesta guerra diversos fenómenos psiquiátricos, transtornos do comportamento e do pensamento tivessem obtido importância entre os actores da «pacificação» como na população «pacificada». A verdade é que a colonização, em essência, apresentava-se já como uma grande provedora dos hospitais psiquiátricos. Em diversos trabalhos científicos chamámos a atenção dos psiquiatras franceses e internacionais, desde 1954, sobre a dificuldade de «curar» correctamente o colonizado, isto é, de fazê-lo totalmente homogéneo num meio social de tipo colonial.
Como é uma negação sistemática do outro, uma decisão furiosa de privar o outro de qualquer atributo de humanidade, o colonialismo leva o povo dominado a perguntar-se constantemente: «Quem sou eu na realidade?»
As posições defensivas surgidas deste confronto violento do colonizado com o sistema colonial organizam-se numa estrutura que revela a personalidade colonizada. Basta simplesmente para compreender esta «sensitividade» apreciar o número e a profundidade das feridas sofridas por um colonizado durante um único dia no regime colonial. Deve recordar-se, em todo o caso, que um povo colonizado não é apenas um povo dominado. Debaixo da ocupação alemã, os franceses não deixaram de ser homens. Na Argélia, não há somente dominação, mas literalmente decisão de ocupar um território. Os argelinos, as mulheres de véu, as palmeiras e os camelos formam o panorama, o pano de fundo natural da presença humana francesa.
A natureza hostil, indócil, profundamente rebelde, está representada efectivamente nas colónias pela selva, os mosquitos, os indígenas e as febres. A colonização tem êxito quando toda essa natureza indócil for, por fim, amortecida. Caminhos de ferro através da selva, secagem dos pântanos, inexistência política e económica da população autóctone, são na realidade uma e a mesma coisa.
No período de colonização não impugnada pela luta armada, quando a soma de excitações nocivas passa um certo limite, as posições defensivas dos colonizados desmoronam-se e estes chegam em grande número aos hospitais psiquiátricos. Existe, pois, nesse período tranquilo da colonização triunfante uma patologia mental permanente e regular produzida directamente pela opressão.
Actualmente, a guerra de libertação nacional que conduz o povo argelino desde há sete anos, por abarcar a totalidade do povo, converteu-se em terreno favorável para a eclosão de perturbações mentais(1). Aqui, mencionamos alguns casos de enfermos argelinos e franceses tratados por nós e que nos parecem particularmente expressivos. Não publicamos — será inútil prevenir — um trabalho científico. Evitamos toda a discussão semiológica, nosológica ou terapêutica. Os escassos termos técnicos utilizados aqui servem simplesmente de guia. li: necessário insistir, sobretudo, em dois pontos:
Em geral, a psiquiatria clínica reúne os diferentes transtornos apresentados pelos nossos enfermos debaixo da rubrica «psicoses reactivas». Ao fazê-lo, dá-se maior importância ao acontecimento que desencadeou a enfermidade mesmo que, aqui e além, se mencione o papel do terreno em que se produz (a história psicológica, afectiva o biológica do sujeito) e do meio. Parece-nos que nos casos aqui apresentados, o acontecimento que desencadeia tudo principalmente a atmosfera sanguinária, desapiedada, a generalização de práticas desumanas, a impressão tenaz que têm os indivíduos de assistirem a um verdadeiro apocalipse.
O caso número 2 da série A, é tipicamente uma psicose reactiva, mas os casos números 1, 2, 4 e 5 da série B admitem uma causalidade muito difusa, sem que possa falar-se realmente de um acontecimento motivador particular. Aqui é a guerra, essa guerra colonial que com muita frequência se manifesta como um autêntico genocídio, esta guerra que perturba e despedaça o mundo é o que constitui o acontecimento motivador. Psicose reactiva, se quer utilizar-se um rótulo já estabelecido, mas dando-lhe aqui uma prioridade singular à guerra concebida na sua totalidade e nas suas particularidades de guerra colonial.
Depois das duas grandes guerras mundiais, não faltaram publicações sobre a patologia mental dos militares participantes na acção e dos civis vítimas do êxodo ou dos bombardeios. A fisionomia inédita de certos quadros psiquiátricos assinalados aqui confirma, se isso fosse necessário, que esta guerra colonial é original mesmo na patologia que produz.
Outra noção muito arreigada merece, em nossa opinião, uma ligeira reflexão: trata-se da relativa benignidade desses transtornos reactivos. E certamente puderam descrever-se, ainda que de forma sempre excepcional, psicoses secundárias, isto é, casos onde o conjunto da personalidade está definitivamente deslocado. Parece-nos, pelo contrário, que a regra geral aqui é frequente a malignidade dos processos patológicos. São perturbações que persistem durante meses, atacando fortemente o eu e deixando quase sempre como mazela uma fragilidade pràticamente perceptível à primeira vista. Evidentemente, o futuro desses enfermos está hipotecado. Um exemplo ilustrará o nosso ponto de vista.
Num dos países africanos independentes há vários anos, tivemos a oportunidade de receber um patriota, antigo membro da resistência. Este homem, de uns trinta anos, vinha pedir-nos conselho e alívio porque, ao aproximar-se uma determinada época do ano, era afectado por insónias, acompanhadas de ansiedade e de ideias fixas dc autodestruição. A data crítica era aquela em que, por Instruções da sua rede clandestina, havia colocado uma bomba em qualquer lado. Dez pessoas tinham morrido no atentado(2).
Esse militante, que nunca pensou renegar a sua acção passada, sabia claramente o preço que a sua pessoa tinha de pagar pela independência nacional. Alguns casos-limite como este colocam o problema da responsabilidade no quadro revolucionário.
As observações que fazemos aqui dizem respeito ao período que vai de 1954 a 1959. Alguns doentes foram tratados na Argélia, em centros hospitalares ou como clientes particulares. Os outros foram tratados nas instalações sanitárias do Exército de Libertação Nacional.
Reunimos aqui cinco casos. Referem-se a argelinos ou a europeus que apresentaram, após acontecimentos muito precisos, perturbações mentais de tipo reactivo.
B... é um homem de 26 anos. É-nos enviado pelo Serviço Sanitário da Frente de Libertação Nacional, porque padece de enxaquecas rebeldes e insónias. Ex-motorista de táxi, militou desde a idade dos 18 anos nos partidos nacionalistas. A partir de 1955 é membro de uma célula da F. L. N. Por várias ocasiões, utiliza o seu automóvel para o transporte de propaganda e dos dirigentes políticos. Frente ao agravamento da repressão, a F. L. N. decide levar a guerra aos centros urbanos. B... deve conduzir, então, alguns comandos até às cercanias dos pontos de ataque e, por vezes, tem de os esperar.
Um dia, porém, em plena cidade europeia, depois de uma acção relativamente importante, um cerco extremamente grave obriga-o a abandonar o seu táxi e o comando dispersa-se. B..., que consegue escapar ao adversário, refugia-se em casa de um amigo e uns dias depois, sem ter regressado ao seu domicílio, dirige-se por instrução dos seus responsáveis ao «maquis» mais próximo.
Durante vários meses não recebe notícias de sua mulher nem de sua filhinha de vinte meses. Em contrapartida, sabe que a polícia o procurou durante semanas na cidade. Após dois anos de permanência no «maquis», recebe de sua mulher uma mensagem em que lhe pede que a esqueça. Ela foi desonrada. Não deve, pois, pensar cm prosseguir a vida comum com ela. Terrivelmente preocupado, pede ao seu comandante autorização para ir clandestinamente ao seu domicílio. Negaram-lhe essa autorização. Por outro lado, tomam-se medidas para que um membro da F. L. N. estabeleça contacto com a mulher e os pais de B...
Duas semanas depois, uma informação pormenorizada chega ao comandante da unidade de B...
Pouco depois de descobrir o seu táxi abandonado (encontraram-se ali dois carregadores de metralhadora), soldados franceses acompanhados por polícias dirigiram-se ao seu domicílio. Por o não terem encontrado, levaram sua mulher e tiveram-na presa durante mais de uma semana.
Interrogaram-na sobre as amizades do seu marido e durante dois dias esbofetearam-na brutalmente. Mas no terceiro dia um militar francês — ela não sabe bem se se trata de um oficial — fez sair os outros e violou-a. Pouco depois outro, desta vez em presença de mais alguns, violou-a também e disse-lhe:
«Se algum dia voltares a ver o teu asqueroso marido, não te esqueças de lhe dizer o que te fizemos».
Permanece ali mais uma semana, sem sofrer qualquer interrogatório. Depois, transportam-na de novo a sua casa. Ao contar o sucedido a sua mãe, esta convence-a de que deve dizer tudo a seu marido. Por isso, ao entrar em contacto com B... confessa-lhe a sua desonra.
Passado o primeiro choque, e participando além disso numa acção ininterrupta, B... recupera-se. Durante alguns meses, escuta múltiplos relatos de mulheres argelinas violadas ou torturadas; ele terá a oportunidade de ver outros maridos de mulheres violadas e a sua desgraça pessoal, a sua dignidade de marido ofendido passam para o segundo plano.
Em 1958, é encarregado de uma missão no exterior. Ao voltar a reunir-se com a sua unidade, uma desacostumada distracção e insónias frequentes inquietam os seus camaradas e superiores. Atrasa-se a sua partida e decide-se fazer uma consulta médica. É neste momento que o vemos. Bom contacto imediato. Semblante móvel, talvez demasiado. Os sorrisos parecem um pouco exagerados. Euforia superficial:
«tudo vai bem... tudo vai bem... Agora, sinto-me melhor. Dê-me alguns reconstituintes, algumas vitaminas e deixe-me regressar».
Percebe-se por debaixo disto uma ansiedade básica. Em seguida, é hospitalizado.
Desde o segundo dia, o optimismo aparente afunda-se e é um deprimido pensativo, anoréctico, metido numa cama, que temos na nossa frente. Escapa-se às discussões políticas e manifesta um desinteresse notório por tudo o que se refere à luta nacional. Evita escutar as notícias relativas à guerra de libertação. O processo para abordar as suas dificuldades é muito trabalhoso, mas no fim de alguns dias podemos reconstruir a sua história:
Durante a sua permanência no exterior, tenta uma aventura sexual que fracassa. Pensando que se trata de uma fadiga normal depois das marchas forçadas e dos períodos de subalimentação, volta a tentar duas semanas mais tarde. Novo fracasso. Fala a um camarada, que o aconselha a tomar vitamina B12. Toma essa vitamina em forma de comprimidos. Nova tentativa e novo fracasso. Porém, uns momentos antes do acto, sente um desejo de rasgar uma fotografia de sua filha. Essa relação simbólica podia evocar a existência de impulsos incestuosos inconscientes. Não obstante, várias entrevistas e um sonho (o enfermo assiste à rápida putrefacção de um gatito de cheiro insuportável) conduzem-nos para outra direcção. «Essa menina, disse-nos um dia (trata-se de sua filha), tem algo de pútrido». A partir deste período, as insónias tomam-se muito pertinentes e, apesar de uma dose bastante grande de tranquilizantes, desenvolve-se um estado de excitação angustiosa que perturba consideravelmente o Serviço. Fala-nos, então, de sua mulher pela primeira vez e, rindo, diz-nos: «Ela já provou os franceses». É nesse momento que reconstruímos toda a história. Conta-nos o desenrolar dos acontecimentos. Diz-nos que antes de qualquer tentativa sexual pensa sempre em sua mulher. Todas as suas confidências parecem-nos de interesse fundamental.
«Casei-me com essa rapariga, mas eu gostava da minha prima. Mas os pais da minha prima fizeram o seu matrimónio com outro. Então, aceitei a primeira mulher que me propuseram os meus pais. Era agradável, mas eu não a amava. Dizia sempre a mim mesmo: és jovem... espera um pouco e quando encontrares a que te convenha, divorciar-te-ás e farás um bom casamento. Por isso, afastei-me dela cada vez mais. Nos últimos tempos, chegava a comer e a dormir quase sem lhe falar.
«No «maquis», quando soube que a haviam violado os franceses, senti em princípio raiva por esses porcos. Depois, disse: «Oh, não é grave; depois de tudo isso não a mataram. Poderá recomeçar a sua vida». E algumas semanas após dei conta de que a haviam violado porque me procuravam. Na verdade, castigaram-na apenas pelo seu silêncio. Poderia pelo menos revelar muito bem o nome de um militante, a partir do qual poderiam descobrir toda a rede, destruí-la e mesmo prender-me. Não era, pois uma simples violação, por ócio e por sadismo, como tive ocasião de ver nos aduares, e a violação de uma mulher obstinada, que aceitava tudo pra não vender o seu marido. E esse marido era eu. Essa mulher salvou-me a vida e protegeu toda a rede clandestina. Por minha causa, desonraram-na. Por isso, ela não me dizia: «Olha o que sofri por ti». Dizia-me o contrário: «Esquece-me, refaz a tua vida, eu estou desonrada».
«A partir deste momento decidi voltar para a minha mulher depois da guerra, porque devo dizer-te que vi muitos camponeses enxugar as lágrimas de suas mulheres que foram violadas perante ele mesmos. Isto comoveu-me muito. Devo confessar-te que em princípio não podia compreender a sua atitude. Mas progressivamente tivemos que intervir nessas histórias, para as explicar aos civis. Eu vi alguns civis que se ofereceram como voluntários para se casarem com uma jovem violada pelos militares franceses e embaraçada, tudo isto me levou a ver de outra maneira o problema de minha mulher.
«Decidi voltar para ela, mas, todavia, não sei como reagiria ao vê-la. E muitas vezes, ao ver a fotografia da minha filha, penso que ela foi também violada. Como se tudo o que viesse de minha mulher estivesse apodrecido. Se a tivessem torturado, se lhe tivessem partido os dentes, se lhe tivessem partido um braço, não me importava. Mas como é possível esquecer isso? E por que teria ela de me contar tudo?»
Pergunta-me, então, se a sua «debilidade sexual» era provocada, em minha opinião, pelas suas confusões.
Resposta: «Não seria impossível».
Senta-se na cama:
— Que farias tu se te acontecesse isto?
— Não sei...
— Voltarias para a tua mulher?
— Creio que sim...
— Ah, vês... não estás completamente seguro...
Leva as mãos à cabeça e, depois de uns instantes, sai do quarto.
A partir desse dia, aceita progressivamente escutar as discussões políticas, enquanto as enxaquecas e a anorexia desaparecem consideràvelmente.
No fim de duas semanas, regressa à sua unidade, dizendo-me:
«Quando chegar a independência, voltarei para minha mulher. Se as coisas não correrem bem, virei ver-te a Argel».
S..., de 37 anos, fellah. Vive num aduar em Constantina. Não se ocupou nunca de política. Desde os princípios da guerra, a sua região é cenário de batalhas violentas entre as forças argelinas e o exército francês. S... tem ocasião, assim, de ver mortos e feridos. Mas continua a manter-se à margem. De tempo a tempos, como todo o povo, os camponeses da sua aldeia ajudam os combatentes argelinos que estão de passagem. Mas um dia, em princípios de 1958, tem lugar uma emboscada de que resultam várias mortes, não longe do aduar. As forças inimigas organizam uma operação e sitiam a cidade, vazia de soldados. Todos os habitantes são reunidos e interrogados. Ninguém responde. Umas horas depois, um oficial francês chega de helicóptero e diz: «Este aduar dá muito que falar; destruam-no!» Os soldado começam a queimar as casas, enquanto as mulheres tratam de recolher algumas roupas ou de salvar algumas reservas, mas são repelidas a golpes de coronha. Alguns camponeses aproveitam essa confusão para se evadirem. O oficial dá ordem para reunir os homens que restam e fá-los conduzir até junto de um rio, onde começa a matança. Vinte e nove homens são mortos à queima-roupa. S... é ferido por duas balas que lhe atravessam, respectivamente, a coxa direita e o braço esquerdo, ocasionando-lhe esta última uma fractura do fémur.
S... desmaia e recupera depois no meio de um grupo do Exército de Libertação Nacional. É atendido pelo Serviço Sanitário e sai quando é possível mudar-se. No caminho, o seu comportamento cada vez mais anormal não deixa de inquietar a escolta. Pede uma espingarda, considerando-se assim como civil e nega-se a marchar na frente de alguém. Não deseja que ninguém o acompanhe. Uma noite apodera-se da arma de um combatente e dispara atabalhoadamente sobre os soldados adormecidos. Desde esse momento marchará com as mãos amarradas e assim chegará ao Centro.
Começa por nos dizer que não matou e que lhes fez uma boa partida. Pouco a pouco, podemos reconstituir a história do seu assassinato frustrado. S... não está angustiado, mas excitado em demasia, com fases de violenta agitação, acompanhadas de bramidos. Não despedaça nada, mas fatiga todo o mundo com a sua incessante tagarelice e o Serviço mantém-se em permanente alerta devido à sua manifesta decisão de «matar todo o mundo». Durante a sua hospitalização, ataca com armas improvisadas oito doentes. Os enfermeiros e os médicos também não escapam. Chegamos a perguntar se não estaremos em presença de uma dessas formas larvares de epilepsia caracterizada por uma agressividade global quase sempre em erecção.
Faz-se uma cura de sono. A partir do terceiro dia, uma visita quotidiana vai permitir-nos compreender melhor a dinâmica do processo psicológico. A desordem mental desaparece progressivamente. Eis aqui algumas passagens das declarações do enfermo:
«Deus está comigo... mas, então, não está com os que morreram... Tive muita sorte... Na vida, é preciso matar para se não ser morto... Quando penso que não sabia das suas histórias... Há franceses entre nós. Disfarçam-se de árabes. É necessário matá-los. Dá-me uma metralhadora. Todos esses falsos árabes são franceses... e não me deixam tranquilo. Quando quero dormir, entram no meu quarto. Mas agora já os conheço. Todos me querem matar. Mas eu defender-me-ei. Matarei todos sem excepção. Degolarei um após outro e a ti também. Vocês querem eliminar-me, mas terão de agir de outra forma. Não me importará a sua morte. Os pequenos, os grandes, as mulheres, as crianças, os cães, os pássaros, os burros... chegará a vez de todo o mundo... Depois, poderei dormir sossegado...»
Tudo isto é expresso numa linguagem cortante, numa atitude hostil, altaneira e depreciativa.
Após três semanas, a excitação desaparece, mas uma reserva, uma certa tendência para a solidão, fazem-nos recear uma evolução mais grave. No entanto, depois de um mês, solicita a sua saída para aprender um ofício compatível com a sua doença. Confia-se-lhe, então, o Serviço Social da F. N. L. Yimo-lo seis meses depois disso. Continuava bem.
Dj..., ex-estudante, militar no A. L. N., 19 anos. Quando chega ao Centro a sua doença já data de alguns meses. A sua aparência é característica: muito deprimido, os lábios secos, as mãos constantemente suadas. Incessantes pulsações batem no seu peito. Insónias prolongadas. Duas tentativas de suicídio desde o começo das suas perturbações. Durante a conversação, adopta atitudes de alucinada escuta. Por vezes, o seu olhar fixa-se durante alguns instantes num ponto do espaço, enquanto o seu semblante se anima e dá a impressão de que o enfermo assiste a qualquer espectáculo. Pensamentos enganosos. Alguns fenómenos conhecidos em psiquiatria com o nome de barreira: um gesto ou uma frase esboçados são bruscamente interrompidos sem qualquer razão. Mas, sobretudo, um elemento vai chamar particularmente a nossa atenção: o enfermo fala-nos do sangue que perdeu, das suas artérias que se esvaziam, do seu coração que falha. Suplica-nos para deter a hemorragia, para não permitir que o «vampirizem» também no hospital. Por momentos, consegue falar-nos e pede um lápis. Escreve: «Já não tenho voz, toda a minha vida se escapa». Esta despersonalização faz-nos pensar numa evolução muito grave.
Várias vezes no decorrer das nossas conversas, o doente fala-nos de uma mulher que, pela noite, vem persegui-lo. Como já me contaram que a sua mãe morreu e a quem ele queria muito, nada poderia consolá-lo dessa perda (a voz emudeceu consideràvelmente nesse momento e apareceram algumas lágrimas), dirijo a investigação sobre a imagem maternal. Como lhe peço que descreva essa mulher que o obceca e até o persegue, declara-me que não é uma desconhecida, que a conhece muito bem, porque ele mesmo a matou. Coloca-se, então, o problema de saber se estamos frente a um complexo de culpa inconsciente depois da morte da mãe, como o descreve Freud em «Duelo e Melancolia». Pedimos ao enfermo que nos fale mais largamente dessa mulher, dado que a conhece bem e ele mesmo a matou. É dessa forma que reconstituímos a história seguinte:
«Da cidade onde estudava fui para o «maquis». Depois de alguns meses, tive notícias de minha casa. Inteirei-me de que minha mãe havia sido assassinada à queima-roupa por um soldado francês e duas das minhas irmãs foram conduzidas ao quartel. Até agora ignoro o que lhes aconteceu. Transtornou-me terrivelmente a morte de minha mãe. Como o meu pai morrera há vários anos, eu era o único homem da família e a minha única ambição foi sempre a de chegar a ser alguém para melhorar a existência de minha mãe e das minhas irmãs. Um dia chegámos a uma propriedade de colonos onde o gerente, colonialista activo, matou já dois civis argelinos. Chegámos a sua casa pela noite. Mas não estava. Não havia mais ninguém senão a sua mulher. Ao ver-nos, suplicou que não a matássemos: «Sei que vêm pelo meu marido, mas ele não está... quantas vezes lhe disse que se não metesse em política». Decidimos esperar pelo marido. Mas eu olhava a mulher e pensava na minha mãe. Estava sentada numa poltrona e parecia ausente. Perguntava-me por que não a matávamos. E, num certo momento, ela deu conta de que eu a olhava. Lançou-se sobre mim e gritou: «Eu lhe suplico... não me mate... Tenho filhos». Um segundo depois estava morta. Matei-a com o meu cutelo. O chefe desarmou-me e deu ordem para partirmos. Uns dias depois fui interrogado pelo chefe do sector. Pensava que iam matar-me, mas não me importava(3). Então, comecei a vomitar após as refeições, a dormir muito mal. Desde esse momento, essa mulher vem todas as noites reclamar o meu sangue. E onde está o sangue da minha mãe?»
Pela noite, quando o enfermo se deita, o quarto «enche-se de mulheres», todas parecidas. É uma reedição em múltiplos exemplares de uma única mulher. Todas têm um golpe aberto no ventre. Estão exangues, pálidas e terrivelmente delgadas. Essas mulheres fustigam o jovem doente e exigem-lhe que lhes devolva o seu sangue perdido. Nesse momento, um ruído de água que corre chega ao quarto, amplifica-se até evocar a torrente de uma cascata e o doente vê como se enche de sangue, do seu sangue, o chão do seu quarto, enquanto as mulheres se tornam cada vez mais satisfeitas e as suas feridas começam a fechar-se. Banhado em suor e terrivelmente angustiado, o doente acorda e continua agitado até ao amanhecer.
O jovem enfermo é atendido com cuidado durante algumas semanas e os fenómenos oníricos (pesadelos) desapareceram completamente. No entanto, mantém-se uma grande falha na sua personalidade. Quando pensa na sua mãe, surge como dupla sombra essa mulher com o ventre aberto. Por pouco científico que isto possa parecer, pensamos que apenas o tempo poderá trazer alguma melhoria à personalidade desintegrada desse homem.
A..., de 28 anos, casado, sem filhos. Tomamos conhecimento de que há vários anos ele e sua mulher foram submetidos a um tratamento, infelizmente sem êxito, para terem filhos. Os seus superiores enviam-no por transtornos no comportamento.
O primeiro contacto revela-se bom. Espontâneamente, o doente fala-nos das suas dificuldades; entendimento satisfatório com a sua mulher e os seus sogros. Boas relações com os seus camaradas de trabalho; aliás, goza da estima dos seus superiores. O que o atormenta é que de noite ouve gritos que o não deixam dormir. E confessa-nos que desde há várias semanas, antes de se deitar, fecha as persianas e as janelas (estamos no Verão), perante o desespero de sua mulher que sufoca de calor. Além disso, enche os ouvidos de algodão para atenuar a violência dos gritos. Algumas vezes, a meio da noite, chega a ligar o aparelho de televisão ou ouve música para não escutar esses clamores nocturnos. Então, A... começa a contar-nos largamente o seu drama:
Há vários meses, destacaram-no para uma brigada anti-F. L. N. Em princípio, estava encarregado da vigilância de alguns estabelecimentos ou cafés. Mas após algumas semanas, trabalha quase incessantemente no Comissariado. Nessa altura, pratica interrogatórios, o que nunca se faz sem «maus tratos». «É que não querem nunca confessar».
«Algumas vezes — explica — dão vontade de lhes dizer que se tivessem um pouco de piedade de nós falariam sem os obrigarmos a sofrer durante horas para arrancar palavra por palavra as suas informações. Mas quem lhes pode explicar alguma coisa! A todas as perguntas respondem: «Não sei». Nem sequer são homens. Se se lhes pergunta onde vivem, respondem: «Não sei». Então, bem entendido, é preciso sabê-lo. Mas gritam muito. Ao princípio, ria-me. Mas depois comecei a inquietar-me. Agora, basta que oiça alguém gritar e posso dizer-lhe em que fase do interrogatório se encontra. Aquele que apanhou dois violentos socos ou o golpe de uma matraca atrás da orelha, tem uma certa maneira de falar, de gritar, de dizer que está inocente. Depois de estar duas horas bem amarrado pelos punhos, tem outra voz. Depois da baignoire, outra voz. E assim sucessivamente. Mas é sobretudo após a «electricidade» que se torna insuportável. Dir-se-ia que em qualquer momento vai morrer. Existem, claro, os que não gritam: são os duros. Mas pensam que vão ser mortos em seguida. Não, não nos interessa matá-los. O que precisamos é da informação. A esses, procura-se fazê-los gritar e, mais tarde ou mais cedo, gritam. Isso já é uma vitória. Depois, continuamos. Notem que nós desejávamos evitar isso. Mas eles não nos facilitam a tarefa. Agora, oiço esses gritos mesmo em minha casa. Sobretudo os gritos de alguns que morreram no comissariado. Doutor, repugna-me este trabalho. Se você me curar, pedirei a minha transferência para a França. Se não ma concederem, apresentarei a minha demissão».
Perante este panorama, prescrevo uma licença por doença. Como o interessado recusa a hospitalização, atendo-o em consulta privada. Um dia, pouco antes da consulta, chamam-me urgentemente. Quando A... chega a minha casa, minha mulher convida-o a esperar-me, mas ele prefere ir ao hospital buscar-me. Uns minutos depois, ao regressar para casa, encontro-o no caminho. Está apoiado numa árvore, com um aspecto manifestamente abatido, trémulo, banhado em suor, em plena crise de angústia. Faço-o subir para o automóvel e levo-o para minha casa. Uma vez instalado no sofá, conta-me que encontrou no hospital um dos meus doentes que havia sido interrogado nos locais da polícia (é um patriota argelino) e que é tratado devido a «perturbações pós-comocionais de pânico». Inteiro-me, então, de que esse polícia participou de maneira activa nas torturas infligidas àquele doente. Receito-lhe alguns sedativos que acalmam a angústia de A... Quando se foi embora, dirijo-me ao pavilhão onde está hospitalizado o patriota. O pessoal não deu conta de nada. O enfermo não aparece, apesar de tudo. Por fim, é descoberto num lavabo onde tentava suicidar-se (ele tinha reconhecido o polícia e pensava que unto vinha buscá-lo para o conduzir novamente ao posto do polícia).
Seguidamente, A... voltou a visitar-me várias vezes e, após uma evidente melhoria, conseguiu fazer repatriar-se por razões de saúde. Quanto ao patriota argelino, o pessoal precisou de muito tempo para o convencer de que se tratava de uma ilusão, que os polícias não podiam vir ao hospital, que ele estava cansado e encontrava-se ali para ser curado, etc...
R..., de 30 anos, vem consultar-me de livre vontade. É inspector de polícia e, desde há algumas semanas, compreende que «alguma coisa não caminha bem». Casado, três filhos. Fuma muito: cinco maços de cigarros por dia. Não tem apetite e muitas vezes é afectado por pesadelos. Tais pesadelos não têm características próprias. O que mais o aflige é o que ele chama as suas «crises de loucura». Em primeiro lugar, não gosta que o contrariem:
«Doutor, explique-me isso. Quando enfrento uma oposição, dá-me vontade de me ferir. Mesmo fora do trabalho, dão-me ganas de maltratar quem se atravessa no caminho. Por qualquer coisa. Por exemplo, vou buscar os jornais ao quiosque. Está muita gente. Forçosamente devo esperar. Estendo o braço ( o dono do quiosque é meu amigo) para recolher os jornais. Alguém da bicha diz-me com ar de desafio: «Espere a sua vez». Pois bem, dá-me vontade de o golpear e digo para mim: «Meu velho, se te agarrasse umas tantas horas, não te ficaria tempo para essas fanfarronices».
Não suporta o barulho. Em sua casa, a cada instante, sente vontade de golpear todos. E de facto chega a golpear os seus filhos, mesmo o mais pequeno de vinte meses, com uma rara selvageria.
Mas o que o encheu de pânico foi uma noite, quando a sua mulher o criticou bastante por ter ferido os filhos (chegou a dizer-lhe: «Por Deus, estás a ficar louco...», lançou-se sobre ela, agarrou-a e atou-a a uma cadeira, dizendo-lhe: «Vou ensinar-te, de uma vez por todas, quem é o patrão nesta casa».
Felizmente, os seus filhos começaram a chorar e a gritar. Compreendeu, então, a gravidade do seu comportamento, largou a sua mulher e no dia seguinte resolveu consultar um médico «especialista de nervos». Diz que «antes não era assim», que quase nunca castigava os seus filhos e não se zangava com a sua mulher. Os fenómenos actuais apareceram depois «dos acontecimentos». «É que agora fazemos trabalhos de infantaria. A semana passada, por exemplo, estivemos em operações como se pertencêssemos ao exército. Esses senhores do governo dizem que não há guerra na Argélia e que as forças da ordem, isto é, a polícia, devem restabelecer a calma. Mas a verdade é que há guerra na Argélia e quando derem conta disso será tarde. O que me fatiga são as torturas. Sabe você o que isto significa?... Algumas vezes, torturo durante dez horas seguidas...»
— Que sente ao torturar?
— Cansa-me... É verdade que há descansos, mas trata-se de saber em que momento se deve deixar o companheiro substituir-nos. Todos pensam que estão na altura de obterem as informações e não querem deixar voar o pássaro para outro que, naturalmente, receberá os elogios. Então, deixamo-lo... ou não o deixamos...
«Às vezes chegamos a oferecer dinheiro ao tipo, o nosso próprio dinheiro, para o fazer falar. O problema para nós é, na realidade, o seguinte: és capaz de fazer falar esse tipo? É um problema de êxito pessoal; estabelece-se uma competição... No fim, temos os braços esfrangalhados. Então, empregam-se os «senegaleses». Mas eles golpeiam muito forte e dão cabo do tipo em meia hora, muito depressa e isso não é eficaz. É preciso ser inteligente para fazer bem esse trabalho. É necessário saber em que momento comprimir e quando aliviar. É uma questão de faro. Quando o tipo está maduro, não merece a pena continuar a golpear. Por isso, nós mesmos temos de fazer o trabalho: vigiar do melhor modo a sua marcha. Eu não aprovo aqueles que mandam preparar os tipos e, de tempos a tempos, vejo como a coisa está. O que importa, sobretudo, é dar a impressão ao tipo de que não sairá vivo das nossas mãos. Perguntar-se-á, então, para quê falar se isso lhe não salvará a vida. Nesse caso não haveria qualquer possibilidade de conseguir obter alguma coisa. É absolutamente necessário que tenha esperança: é a esperança que o faz falar.
«Mas o que mais me aborrece é o problema da minha mulher. Sem dúvida, há ali algo transtornado. Você tem de me curar isso, Doutor».
Como os seus superiores lhe negaram a licença e, aliás, o doente não queria o certificado de um psiquiatra, empreendemos um tratamento em «plena actividade». Fàcilmente, podem adivinhar-se os fracassos de semelhante fórmula. Esse homem sabia perfeitamente que todas as suas perturbações eram provocadas directamente pelo tipo de actividade realizada nas salas de interrogatório, mesmo que atribuísse globalmente a responsabilidade aos «acontecimentos». Como não pensava (seria um contra-senso) deixar de torturar (era necessário que se demitisse), pediu-me sem rodeios que o ajudasse a torturar os patriotas argelinos sem remorsos de consciência, sem transtornos de comportamento, com serenidade.(4)
Reunimos aqui alguns casos ou grupos de casos em que o acontecimento motivador é, em primeiro lugar, a atmosfera de guerra total que reina na Argélia.
Trata-se de um exame médico-legal. Dois jovens argelinos de 13 e 14 anos, alunos de uma escola primária, são acusados de matarem um seu companheiro europeu. Confessaram ter cometido esse acto. O crime é reconstituído e as fotografias são incluídas no processo. Vê-se um dos rapazes a segurar a vítima, enquanto o outro a ataca com um cutelo. Os jovens acusados não rectificam as suas declarações. Sustentamos com eles algumas entrevistas. Reproduzimos agora as suas principais declarações:
a) O de 13 anos:
«Não nos dávamos mal com ele. Todas as quintas-feiras íamos acampar para junto do bosque, na colina, um pouco adiante da aldeia. Era nosso camarada. Já não ia à escola, porque queria ser mação como o seu pai. Um dia, decidimos matá-lo, porque os europeus querem matar todos os árabes. Nós não podemos assassinar os «grandes». Mas como ele tem a nossa idade, já podemos. Não sabíamos como matá-lo. Queríamos atirá-lo a um fosso, mas talvez ficasse apenas ferido. Então, agarramos num cutelo e matamo-lo.
— Mas porque o escolheram a ele?
— Porque brincava connosco. Um outro talvez não subisse connosco até ao alto.
— Portanto, não era um amigo?
— Porque querem também matar-nos? O seu pai, que é miliciano, diz que é necessário degolar-nos a todos.
— Mas, ele não te tinha dito nada?
— Ele? Não.
— Sabes que ele agora está morto?
— Sim.
— Que é a morte?
— É quando tudo se acabou e se vai para o céu.
— Foste tu que o mataste?
— Sim.
— Não te aflige teres morto alguém?
— Não, porque eles querem matar-nos, então...
— Não te aborreces de estares preso?
— Não.
b) O de 14 anos:
Este jovem acusado contrasta claramente com o seu companheiro. É quase já um homem, um adulto pelo aspecto muscular, a fisionomia, o tom e o conteúdo das suas respostas. Também não nega ter morto o seu colega. Porque o matou? Não responde, mas pergunta-me se vi algum europeu na prisão. Nunca um europeu foi preso por assassinar um argelino. Respondo-lhe que, efectivamente, nunca vi europeus encarcerados.
— E, sem dúvida, são mortos argelinos todos os dias, não é verdade?
— Sim.
— Então, porque existem apenas argelinos nos cárceres? Pode você explicar-me?
— Não, mas diz-me: porque mataste esse rapaz que era teu amigo?
— Vou explicar-lhe... Você ouviu falar do caso de Rivet?(5)
— Sim.
— Dois dos meus parentes foram assassinados nesse dia. Entre nós, diz-se que os franceses haviam prometido matar-nos a todos, um após outro. Foi preso algum francês por todos esses argelinos que foram assassinados?
— Não sei.
— Pois bem, ninguém foi preso. Eu queria subir ao djebel, mas sou muito jovem. Então, decidi com X... que havia de matar um europeu.
— Porquê ?
— Que devíamos nós fazer, em sua opinião?
— Não sei. Mas tu és um rapaz e o que está a acontecer é coisa para gente grande.
— Mas também matam os rapazes.
— Todavia, isso não era razão para matares o teu amigo.
— Já o matei; agora façam-me o que quiserem.
— Fez-te alguma coisa esse rapaz?
— Não, não me fez nada.
— Então ?...
— Já está...
Este doente é enviado ao hospital pela autoridade judicial francesa. Esta medida toma-se depois de um exame médico-legal feito por psiquiatras franceses que trabalham na Argélia.
Trata-se de um homem enfraquecido, em pleno estado de confusão. O corpo está coberto de equimoses e duas fracturas no queixo impossibilitam toda a absorção de alimentos. Durante mais de duas semanas haverá necessidade de alimentar o enfermo através de várias injecções.
No fim de duas semanas interrompe-se o vazio do seu pensamento; pode estabelecer-se um contacto e conseguimos reconstruir a história dramática deste jovem:
Durante a sua adolescência praticou o escutismo com estranho fervor. Tomou-se um dos principais responsáveis do movimento escuteiro muçulmano. Mas aos 19 anos abandonou totalmente o escutismo para se ocupar apenas da sua profissão. Mecanógrafo, estuda com tenacidade e sonha chegar a ser um grande especialista no seu ofício. O 1.° de Novembro de 1954 surpreende-o absorvido por problemas estritamente profissionais. Não tem sobre o momento qualquer reacção a respeito da luta nacional. Já não acompanhava os seus antigos companheiros. Definir-se-á a si mesmo nessa altura como «dedicado a aperfeiçoar as suas capacidades técnicas».
No entanto, em meados de 1955, durante um serão familiar, tem subitamente a impressão de que os seus pais o consideram como um traidor. Após alguns dias, essa impressão fugidia desvanece-se, mas vem-lhe a inquietude, um certo mal-estar que não consegue compreender.
Decide, então, fazer rapidamente as suas refeições, foge do meio familiar e recolhe-se no seu quarto. Evita todos os contactos. Nessas condições produz-se a catástrofe. Um dia, em plena rua, cerca da meia hora, ouve claramente uma voz que o acusa de cobarde. Volta-se, mas não vê ninguém. Apressa o passo e resolve não ir trabalhar. Fecha-se no seu quarto e não janta. Durante a noite, estala a crise. Ao longo de três horas escuta toda a espécie de insultos, vozes no seu cérebro e na noite: «traidor... cobarde... todos os teus irmãos morrem... traidor... traidor...»
Domína-o uma angústia indescritível: «O meu coração bateu durante 18 horas num ritmo de 130 pulsações por minuto. Pensava que ia morrer».
Desde então o doente não pode engolir nada. Emagrece a olhos vistos, confina-se a uma obscuridade absoluta, nega-se a abrir a porta do quarto a seu pais. Ao terceiro dia, põe-se a rezar. Está recolhido, diz-me, 17 a 18 horas diárias. Ao quarto dia, impulsivamente, «como um louco», com «uma barba que também devia fazê-lo parecer louco», sem casaco nem gravata, sai para a cidade. Uma vez na rua, não sabe para onde há-de ir; mas caminha e no fim de algum tempo encontra-se na cidade europeia. O seu aspecto físico (o aspecto de europeu) parece protegê-lo dos interrogatórios e controlos das patrulhas francesas.
Mas perto dele argelinos e argelinas são arrastados, maltratados, insultados, revistados... Paradoxalmente, ele não traz consigo qualquer documento. Essa amabilidade espontânea das patrulhas inimigas para com ele, confirma-lhe o seu delírio: «todo o mundo sabe que está com os franceses. Os próprios soldados têm ordem: deixam-no tranquilo».
Além disso, o olhar dos argelinos presos, com as mãos atrás da nuca, esperando serem revistados, parece-lhe carregado de desprezo. Vítima de uma agitação irreprimível, afasta-se a grandes passos. Chega depois frente ao edifício do estado-maior francês. Junto das grades, há vários militares com a metralhadora nas mãos. Aproxima-se dos soldados, lança-se sobre um deles e procura arrebatar-lhe a metralhadora, gritando: «Sou argelino».
Ràpidamente dominado, é conduzido aos postos de polícia, onde teimam em fazê-lo confessar os nomes dos seus chefes e os dos distintos membros da rede a que pertence. No fim de alguns dias, os polícias e os militares compreendem que se trata de um doente. Decidem submetê-lo a exame, e este diagnostica a existência de perturbações mentais e prescreve a sua hospitalização. «O que eu queria, diz-nos, era morrer. Ainda no quartel da polícia, pensava e esperava que após as torturas me matariam. Sentia-me satisfeito pelos golpes, porque isso provava que me consideravam também como o seu inimigo. Já não podia escutar essas acusações sem reagir. Não sou um cobarde. Não sou uma mulher. Não sou um traidor».(6)
Esta jovem de 21 anos, estudante, consulta-me por pequenos fenómenos de angústia que a afectam nos seus estudos e nas suas relações sociais. As mãos constantemente suadas, com períodos verdadeiramente inquietantes em que o suor «lhe corre pelas mãos». Opressões toráxicas, acompanhadas de enxaquecas nocturnas. Morde as unhas. Mas o que lhe desperta a atenção é, sobretudo, a facilidade do contacto, manifestamente muito rápido, enquanto se sente, subjacente, numa grande angústia. A morte de seu pai, recente segundo a data que indica, é referida pela doente com tal ligeireza que orientamos depressa as nossas investigações sobre as relações de seu pai. A exposição que nos faz, clara, absolutamente lúcida, de uma lucidez que raia a insensibilidade, vai revelar, precisamente pelo racionalismo, o transtorno desta jovem, a natureza e origem do seu conflito.
«O meu pai era um alto funcionário. Tinha sob a sua responsabilidade uma imensa região rural. Desde que começaram a acontecer coisas, lançou-se na caça de argelinos com uma raiva furiosa. Chegava a não comer, a não dormir, de tal modo o excitava ter de reprimir a rebelião. Assisti, sem poder fazer nada, à lenta metamorfose de meu pai. Por fim, decidi não voltar a vê-lo, de não permanecer na cidade. Efectivamente, cada vez que ia a casa, estava noites inteiras acordada, porque os gritos que chegavam de baixo não deixavam de me preocupar: no sótão e nos quartos vazios, torturava-se argelinos para obter informações. Você não pode imaginar como é espantoso ouvir gritar assim toda a noite. Algumas vezes pergunto-me como pode um ser humano suportar — não falo já de torturar —, mas simplesmente escutar esses gritos de sofrimento. E aquilo durava. Finalmente, deixei de ir a casa... As poucas vezes que meu pai vinha ver-me à cidade, não podia olhá-lo de frente sem me sentir horrivelmente oprimida e horrorizada. Era-me cada vez mais difícil abraçá-lo.
«É que eu vivi muito tempo na aldeia. Conheci quase todas as famílias. Os jovens argelinos da minha idade e eu jogámos e brincámos juntos quando éramos pequenos. Cada vez que chegava a casa, meu pai contava-me novas prisões. Chegou uma altura em que já não me atrevia a caminhar pela rua; tinha a impressão de encontrar o ódio por todos os lados. No fundo de mim mesma, dava razão a esses argelinos. Se eu fosse argelina, estaria na luta de guerrilhas».
Um dia, no entanto, recebe um telegrama com a notícia de que seu pai está gravemente ferido. Vai ao hospital e encontra o pai em estado de coma. Pouco depois, ele morre. No decorrer de uma missão de reconhecimento com um destacamento militar, havia sido ferido: a patrulha caiu numa emboscada preparada pelo Exército Nacional Argelino.
«O funeral repugnou-me — diz. Todos esses oficiais que vinham chorar pela morte de meu pai, cujas «altas qualidades morais haviam conquistado a população indígena», causava-me náuseas. Toda a gente sabia que era falso. Ninguém ignorava que meu pai dirigia os centros de interrogatório de toda a região. Todos sabiam que o número de mortos na tortura era de dez diários e vinham contar mentiras sobre a devoção, a abnegação, o amor à pátria, etc... Devo dizer que agora as palavras não têm para mim nenhum valor, ou não muito em todo o caso. Regressei imediatamente à cidade e evitei ver todas as autoridades. Propuseram-me algumas subvenções, mas eu recusei-as. Não quero o seu dinheiro. É o preço do sangue vertido pelo meu pai. Não quero. Trabalharei».
Trata-se de refugiados. São filhos de combatentes ou de civis mortos pelos franceses. Estão distribuídos por diferentes centros, na Tunísia e em Marrocos. Esses rapazes vão à escola. Organizam-se partidas de jogos, brincadeiras colectivas. Os rapazes são vigiados regularmente por médicos. Assim temos a oportunidade de examinar alguns:
Chamamos psicose puerperal às perturbações mentais que afectam a mulher como consequência da maternidade.
Essas perturbações podem aparecer imediatamente antes ou poucas semanas depois do parto. A determinação destas enfermidades é muito complexa. Mas pensa-se que as duas causas principais são um transtorno no funcionamento das glândulas endócrinas e a existência de um «choque afectivo». Este último termo, apesar de vago, designa o que o povo chama «forte emoção».
Nas fronteiras tunisianas e marroquinas, depois da decisão tomada pelo governo francês de praticar em centenas de quilómetros a política do glacis e da terra queimada, encontram-se cerca de 300 000 refugiados. Sabemos o estado precário em que vivem. Comissões da Cruz Vermelha Internacional acudiram várias vezes a esses lugares e, após terem comprovado a extrema miséria e a precariedade das condições de vida, recomendaram aos organismos internacionais a intensificação da ajuda a esses refugiados. Era previsível, pois, dada a subalimentação que reina nesses campos, que as mulheres mostrassem uma predisposição especial para a psicose puerperal.
As frequentes invasões de tropas francesas para aplicar «o direito de seguir e de perseguir», os ataques aéreos, os bombardeamentos — é sabido que os bombardeios de territórios marroquinos e tunisianos pelo exército francês são incontáveis, e Sakiet-Sidi-Youssef, a aldeia mártir da Tunísia, é o caso mais sangrento —, a situação de desintegração familiar, consequência das condições de êxodo, mantêm entre os refugiados uma atmosfera de insegurança permanente. São poucas as argelinas refugiadas que deram à luz sem apresentarem perturbações mentais.
Essas perturbações revestem-se de diversas formas. São agitações que podem tomar algumas vezes aspectos de fúria, ou fortes depressões imóveis com repetidas tentativas de suicídio ou, por fim, estados de angústia com pranto, lamentações, implorações de misericórdia, etc... Também o conteúdo do delírio varia. Encontramos assim um delírio de perseguição vaga, que se refere a alguém, ou uma agressividade delirante contra os franceses, que querem matar o filho por nascer ou recém-nascido, ou uma impressão de morte iminente; neste caso, as doentes imploram a invisíveis verdugos que não matem os seus filhos...
Também é necessário assinalar que os conteúdos fundamentais não são limpos pelo alívio e a regressão dos transtornos. A situação das enfermas curadas mantém e mostra esses núcleos patológicos.
Agruparemos nesta série os enfermos mais ou menos graves, cujos transtornos apareceram imediatamente depois ou durante as torturas. Descreveremos vários subgrupos, porque temos advertido que a cada tipo de tortura correspondiam, independentemente de uma perturbação leve ou profunda da personalidade, tipos mórbidos característicos.
Aludimos aqui aos métodos brutais onde se trata menos de torturar do que fazer falar. O princípio segundo o qual, além de certo limite, o sofrimento se torna intolerável, adquire aqui singular importância. O fim é, pois, chegar o mais ràpidamente possível a esse limite. Não se praticam requintes. Produz-se um ataque maciço e multiforme: vários polícias batem ao mesmo tempo; quatro polícias de pé rodeiam o prisioneiro e aplicam-lhe pontapés, enquanto outro polícia lhe queima o peito com um cigarro e outro martela-lhe as plantas dos pés com chicotadas de bastão. Alguns dos métodos de tortura postos em prática na Argélia pareceram-nos particularmente atrozes, referindo-nos sempre às confidências dos torturados:
а) Injecção de água pela boca, acompanhada de clister a forte pressão com água de sabão(7).
b) Introdução de uma garrafa pelo ânus.
Duas formas de suplício chamado «da imobilidade»:
c) O prisioneiro é colocado de joelhos, com os braços paralelos ao chão, as palmas das mãos voltadas para cima, o busto e a cabeça direitos. Não se lhe permite qualquer movimento. Atrás do prisioneiro, um polícia sentado numa cadeira fá-lo voltar à imobilidade a golpes de matraca.
d) O prisioneiro está de pé, com a cara voltada para a parede, os braços levantados e as mãos encostadas também à parede. Aqui, ao menor movimento, ao menor sinal de relaxamento, caíam-lhe em cima os golpes novamente.
Indiquemos agora que existem duas categorias de torturados :
1. Os que sabem alguma coisa.
2. Os que não sabem nada.
1. Os que sabem alguma coisa, quase nunca acorrem depois aos hospitais. Não se ignora que aquele patriota foi torturado nas prisões francesas, mas não o encontramos como enfermo(8).
2. Pelo contrário, os que não sabem nada vêm frequentemente consultar-nos. Não falamos aqui dos argelinos torturados no decorrer de um ratissage ou de um cerco. Também esses vêm ver-nos como enfermos. Falamos expressamente daqueles argelinos, não organizados, que são presos e conduzidos aos locais de polícia ou às quintas destinadas a interrogatórios, para serem submetidos à tortura.
a) Depressões agitadas: quatro casos.
São doentes tristes, sem angústia real, deprimidos, confinados a maior parte do tempo à cama, que fogem ao contacto e que, bruscamente, desenvolvem uma agitação muito violenta, cujo significado é sempre difícil de entender.
b) Anorexia mental: cinco casos.
Estes enfermos colocam problemas graves, porque essa anorexia mental é acompanhada de horror a todo o contacto corporal com os outros. O enfermeiro que se aproxima do doente e procura tocar-lhe, tomar-lhe a mão, por exemplo, é imediatamente afastado com rigidez. Não é possível praticar a alimentação artificial nem administrar medicamentos(9).
c) Instabilidade motriz: onze casos.
Aqui referimo-nos a doentes que não podem permanecer quietos. Constantemente solitários, torna-se difícil que aceitem fechar-se a sós com o médico no seu consultório.
Dois sentimentos nos pareceram frequentes neste primeiro grupo de torturados:
Primeiro, o da injustiça. O facto de ter sido torturado por coisa de nada, durante dias e noites, parece ter quebrado alguma coisa nestes homens. Um destes martirizados havia tido uma experiência particularmente penosa: depois de alguns dias de inúteis torturas, os polícias convenceram-se de que se tratava de um homem pacífico, totalmente alheio a qualquer rede da F. L. N. Apesar desta convicção, um inspector de polícia disse:
«Não o deixem ir assim. Apertem um pouco mais. Assim quando estiver lá fora, manter-se-á tranquilo»(10).
Depois, uma indiferença a qualquer argumento moral. Para esses doentes, não há causa justa. Uma causa torturada é uma causa débil. É necessário, pois, antes de mais, aumentar a sua força e não discutir se a causa está ou não bem fundada. Somente conta a força.
Nesse grupo reunimos os patriotas argelinos torturada principalmente com a electricidade. Com efeito, enquanto antes a electricidade fazia parte de um conjunto de processos de tortura, a partir de Setembro de 1956 certos interrogatórios realizaram-se exclusivamente com eletricidade.
a) Cenestopatias localizadas ou generalizadas: três casos.
Trata-se de doentes que experimentam uma sensação de formigueiro em todo o corpo, forte impressão de que lhes arancam as mãos, lhes estalam a cabeça, lhes travam a língua.
b) Apatia, abulia, desinteresse: sete casos.
São enfermos inertes, sem projectos, sem saída, que apenas vivem o dia.
c) Horror à electricidade:
Medo de acender a luz, medo de ouvir o rádio, medo do telefone. Impossibilidade absoluta para o médico de evocar sequer a possibilidade de um tratamento por electro-choque.
É conhecido o princípio em que se baseia este procedimento. Perante um enfermo que parece sofrer de um conflito interior inconsciente que a conversa não consegue revelar, recorre-se a métodos de exploração química. O pentotal, por injecções intravenosas, é a substância mais comumente utilizada com o fim de libertar o doente de um conflito que parece superar as suas possibilidades de adaptação. Para libertar o enfermo desse «corpo estranho», intervém o médico(11). De qualquer modo, percebeu-se a dificuldade de controlar a dissolução progressiva dos problemas psíquicos. Não era raro presenciar agravamentos espectaculares ou o aparecimento de novos quadros absolutamente inexplicáveis. Por isso, em geral, abandonou-se mais ou menos essa técnica.
Na Argélia, os médicos militares e os psiquiatras tiveram grandes possibilidades de experimentação nos postos de polícia. Se, nas neuroses, o pentotal derruba as barreiras que se opõem à exteriorização do conflito interior, nos patriotas argelinos deve romper, igualmente, a barreira política e facilitar a obtenção de confissões do prisioneiro sem necessidade de recorrer à electricidade (a tradição médica tende a evitar o sofrimento). É a forma médica da «guerra subversiva».
O argumento é o seguinte. Primeiro: «Eu sou médico, não sou polícia. Estou aqui para te ajudar». Assim se obtém, no fim de alguns dias, a confiança do prisioneiro(12). Depois: «Vou dar-te algumas injecções porque estás muito mal». Durante alguns dias, realiza-se qualquer tratamento: vitaminas, tónicos cardíacos, soros açucarados. Ao quarto ou quinto dia, uma injecção intravenosa de pentotal. Começa o interrogatório.
a) Estereotipias verbais:
O doente repete continuamente frases como: «Não disse nada. Têm de acreditar-me, eu não falei». Estas frases estereotipadas são acompanhadas de uma angústia permanente. O enfermo ignora, com efeito, se puderam arrancar-lhe algumas informações. A culpabilidade a respeito da causa defendida e dos irmãos cujos nomes e direcções haja podido revelar, pesa aqui de maneira dramática. Nenhuma afirmação pode restabelecer a calma com essas consciências destroçadas.
b) Percepção intelectual ou sensorial opaca:
O enfermo não pode afirmar a existência de um objectivo definido. Assimila um raciocínio, mas de maneira indiferenciada. Não distingue, fundamentalmente, o verdadeiro do falso. Tudo é verdadeiro e tudo é falso ao mesmo tempo.
c) Horror às entrevistas pessoais:
Este medo deriva da impressão aguda de que poderá, em qualquer momento, ser novamente interrogado.
d) Inibição:
O doente está na defensiva: regista palavra por palavra a resposta projectada. Daí a impressão de quase inibição, com diminuição da actividade psíquica, interrupção das frases, retrocessos, etc...
É claro que estes enfermos negam-se obstinadamente a qualquer injecção intravenosa.
Falou-se muito ultimamente da «acção psicológica» na Argélia. Não queremos proceder ao estudo crítico destes métodos. Bastar-nos-á evocar aqui as consequências psiquiátricas. Existem duas categorias de centros de tortura para a lavagem ao cérebro na Argélia.
Aqui o princípio consiste em fazer com que o prisioneiro actue de harmonia com determinado papel. É evidente a escola psico-sociológica a que isto nos remete(13).
a) Fazer o jogo da colaboração.
O intelectual é convidado a colaborar, elaborando justificações dessa colaboração. Obriga-se, pois, a levar uma dupla existência: é um patriota conhecido como tal que, preventivamente, foi retirado da circulação. O fim da acção empreendida é atacar, desde o mais fundo, os elementos que constituem a consciência nacional. Não deve apenas colaborar, mas tem também ordem para discutir «livremente» com os opositores e reticentes e procurar convencê-los. É uma maneira airosa de fazê-lo designar os patriotas, de servir de delator. Se porventura diz não encontrar opositores, designa-se-lhe ou pede-se-lhe que actue como se se tratasse de opositores.
b) Fazer exposições sobre o valor da obra francesa esobre os fundamentos positivos da colonização.
Para realizar esta tarefa, são largamente precisos muitos «conselheiros políticos»: funcionários de assuntos coloniais, ou melhor ainda: psicólogos, socio-psicólogos, sociólogos, etc.
c) Colocar os argumentos da Revolução Argelina e combatê-los um por um.
A Argélia não é uma Nação, não foi nunca uma Nação, não será nunca uma Nação.
Não existe o «povo argelino».
O patriotismo argelino não tem sentido.
Os «fellagas» são ambiciosos, criminosos, pobres tipos enganados.
Por sua vez, cada intelectual deve fazer uma exposição sobre estes temas e a exposição deve ser convincente. As notas (as famosas «recompensas») são atribuídas e totalizadas no fim de cada mês. Servirão de elementos de apreciação para decidir ou não a saída do intelectual.
d) Levar uma vida colectiva absolutamente patológica.
Estar só é um acto de rebelião. Por isso, é necessário estar sempre com alguém. O silêncio está igualmente proibido. É preciso pensar em voz alta.
Trata-se de um universitário internado e submetido durante alguns meses à lavagem ao cérebro. Os responsáveis do campo, num dado momento, felicitam-no pelos progressos realizados e anunciam-lhe a sua próxima libertação.
Conhecendo as manobras do inimigo, abstém-se de tomar a sério a notícia. A técnica consiste, de facto, em anunciar aos prisioneiros a sua saída e, uns dias antes da data fixada, organizar uma sessão de crítica colectiva.
Ao finalizar a sessão, toma-se frequentemente a decisão de suspender a libertação, dado que o prisioneiro não parece apresentar todos os sintomas de uma cura definitiva. A sessão, dizem os psicólogos presentes, demonstrou a persistência do vírus nacionalista.
Desta vez, portanto, não se trata de um subterfúgio. O prisioneiro é libertado. Uma vez fora, na cidade e no seio da sua família, o antigo prisioneiro felicita-se de haver apresentado muito bem o seu papel. Alegra-se por poder ocupar de novo o seu lugar na luta nacional e procura estabelecer contacto com os seus responsáveis. Nesse momento, uma ideia lancinante e terrível atravessa-lhe o espírito. Talvez não tenha enganado ninguém, nem os carcereiros, nem os companheiros detidos, nem sobretudo a si mesmo.
Onde terminaria o jogo?
Neste caso, é necessário restabelecer a confiança, suprimir a hipoteca da culpabilidade.
a) Horror de qualquer discussão colectiva.
Quando se encontram três ou quatro, a inibição reaparece, a desconfiança, a reticência impõem-se com particular densidade.
b) Impossibilidade de explicar e defender determinada posição.
O pensamento desenvolve-se por dualidades opostas. Tudo o que se afirma pode negar-se, no mesmo instante, com idêntica força. É certamente a série de coisas mais dolorosa que temos encontrado nesta guerra. Uma personalidade obcecada é o fruto da «acção psicológica» posta ao serviço do colonialismo na Argélia.
Nos centros como Berrouaghia, não se parte já da subjectividade para modificar as atitudes do indivíduo. Apoiam-se, pelo contrário, no corpo que se quebra, esperando que a consciência nacional se desintegre. É um verdadeiro processo de domesticação. A recompensa traduz-se na ausência de torturas ou a possibilidade de se alimentar.
a) É necessário reconhecer que não se pertence à F. L. N. É preciso gritá-lo em grupo. É preciso repeti-lo durante algumas horas.
b) Depois, é necessário reconhecer que se pertenceu à F. L. N. e se compreendeu que isso estava mal. Portanto, abaixo a F. L. N.
Depois desta fase, vem outra: o futuro da Argélia é francês, não pode ser senão francês.
Sem a França, a Argélia volta à Idade Média.
Enfim, alguém é francês. Viva a França!
Os transtornos encontrados aqui não são graves. É o corpo enfermo e doloroso que necessita de repouso e de paz.
A guerra colonial da Argélia não teve apenas como consequência a multiplicação das perturbações mentais e o favorecer a eclosão de fenómenos mórbidos específicos. Fora da patologia da tortura, da patologia da torturado e da do torturador, existe na Argélia uma patologia da atmosfera, a que faz dizer comummente aos médicos frente a um enfermo que não conseguem compreender: «Tudo isto acabará com a maldita guerra».
Agruparemos nesta quarta série as enfermidades observadas entre os argelinos, alguns dos quais foram internados em campos de concentração. A característica peculiar destas enfermidades é que são de tipo psicossomático.
Chamamos patologia psicossomática ao conjunto de desordens orgânicas cuja eclosão é favorecida por uma situação conflituosa(14). Psicossomática, porque a causa é de origem psíquica. Esta patologia é considerada como uma maneira a que tem de responder o organismo, isto é, de adaptar-se ao conflito que enfrenta, sendo a perturbação ao mesmo tempo sintoma e cura. Mais precisamente, diz-se que o organismo (uma vez mais trata-se da unidade córtico-visceral, psicossomática dos antigos) supera o conflito por maus caminhos, mas, em resumidas contas, económicas. É o mal menor que o organismo escolhe para evitar a catástrofe.
Em geral, esta patologia é muito bem conhecida na actualidade, ainda que os distintos métodos terapêuticos propostos (relaxamento, sugestão) nos pareçam muito aleatórios. Durante a Segunda Guerra Mundial, na Inglaterra, no decorrer dos bombardeios e na União Soviética nas populações sitiadas, especialmente em Estalinegrado, as descrições de transtornos aparecidos multiplicaram-se. Hoje, sabe-se perfeitamente que não é preciso estar ferido com uma bala para sofrer no corpo ou no cérebro a existência da guerra. Como qualquer guerra, a guerra da Argélia criou o seu contingente de enfermidades córtico-viscerais. Se se exceptua o grupo g, todas as perturbações observadas na Argélia foram descritas nas guerras «clássicas». O grupo g pareceu-nos específico da guerra colonial da Argélia. Esta forma particular de patologia (a contracção muscular generalizada) já havia chamado a atenção antes de estalar a Revolução. Mas os médicos que a descreviam consideravam-na um estigma congénito do indígena, uma originalidade (?) do seu sistema nervoso, onde se afirmava estar a prova de um predomínio no colonizado do sistema extra-piramidal(15). Esta contracção é, na realidade, simplesmente o acompanhamento postural, a aparição nos músculos do colonizado da sua rigidez, da sua reticência, da sua recusa perante a autoridade colonial.
a) Úlceras de estômago.
Muito numerosas. As dores predominam durante a noite com vómitos, emagrecimento, tristeza e morosidade, sendo uma excepção a irritabilidade. Deve assinalar-se que a maioria destes doentes são muito jovens: dos 18 a 25 anos. Regra geral, nunca aconselhamos a intervenção cirúrgica. Duas vezes fez-se uma gastrectomia. Nesses dois casos houve necessidade de voltar a intervir nesse mesmo ano.
b) Cólicas nefríticas:
Também aqui encontramos sofrimentos com paroxismo nocturno. Evidentemente, quase nunca existem cálculos. Estas cólicas podem produzir-se, que é raro, em pessoas de 14 a 16 anos.
c) Transtornos da menstruação:
Esta patologia é muito conhecida e não nos deteremos nela. Mesmo que as mulheres permaneçam três ou quatro meses sem mênstruo ou que essas dores intensas se repercutam sobre o carácter e o comportamento, tudo isso acompanha as regras.
d) Hipersónias por tremores idipáticos:
Trata-se de adultos jovens, privados de qualquer repouso por um tremor generalizado, frequente, semelhante a um Parkinson total. Também nestes casos os «espíritos científicos» poderiam referir-se a um determinismo extra-piramidal.
e) Precoces cabelos brancos:
Entre os que se escapam dos centros de interrogatório, os cabelos embranquecem subitamente, por madeixas, por regiões ou mesmo inteiramente. Com frequência estas perturbações são acompanhadas de astenia profunda, com desinteresse e impotência sexual
f) Taquicardias paroxísticas:
O ritmo cardíaco acelera-se bruscamente: 120, 130, 140 pulsações por minuto. Estas taquicardias são acompanhadas de angústia, da impressão de morte iminente e o fim da crise é assinalado por uma copiosa transpiração.
g) Contracção generalizada, rigidez muscular:
Trata-se de doentes de sexo masculino que têm uma dificuldade progressiva (em dois casos o seu aparecimento foi brutal) para a execução de certos movimentos: subir escadas, andar depressa, correr. A causa desta dificuldade reside numa rigidez característica que lembra irresistivelmente uma pancada em certas regiões do cérebro (núcleos cinzentos centrais). É uma rigidez em extensão e a marcha faz-se em pequenos passos. A flexão passiva dos membros inferiores é quase impossível. Nenhum descanso se pode obter. Contraído, incapaz do menor relaxamento voluntário, o enfermo parece feito de uma só peça. O rosto permanece fixo, mas exprime um alto grau de desorientação.
O doente não parece poder «desmobilizar os seus nervos». Constantemente está em tensão, à espera, entre a vida e a morte. Eis o que nos dizia um deles: «Veja, já estou rígido como um morto»(16).
Não é necessário apenas que se combata pela liberdade do povo. Também é preciso ensinar a esse povo e a nós mesmos, durante o tempo da luta, a dimensão do homem. Deve remontar-se pelos caminhos da história, da história do homem condenado pelos homens e provocar, tornar possível o reencontro com o seu povo e com os outros homens.
Na verdade, o militante que se entregou a uma luta armada, a uma luta nacional, tem a intenção de conhecer todas as degradações infligidas ao homem pela opressão colonial. O militante tem por vezes a impressão fatigada de que deve conduzir a tudo o seu povo, tirá-lo do poço, da caverna. O militante compreende a cada passo que não tem apenas de rechaçar as forças inimigas, mas também os núcleos de desespero cristalizados no corpo do colonizado. O período de opressão é doloroso, mas a luta, ao reabilitar o homem oprimido, desenvolve um processo de reintegração extremamente fecundo e decisivo. A luta vitoriosa de um povo não consagra somente o triunfo dos seus direitos. Procura, aliás, para esse povo densidade, coerência, homogeneidade. Porque o colonialismo não fez outra coisa senão despersonalizar o colonizado. Esta despersonalização ressente-se igualmente no plano colectivo ao nível das estruturas sociais. O povo colonizado vê-se reduzido, então, a um conjunto de indivíduos que não encontram a sua razão de ser, senão em presença do colonizador.
A luta de um povo pela sua libertação leva-o, segundo as circunstâncias, a recusar ou a fazer estalar as supostas verdades instaladas na sua consciência pela administração civil colonial, a ocupação militar, a exploração económica. E apenas a luta pode exorcizar realmente essas mentiras «obre o homem que inferiorizam e literalmente mutilam os mais conscientes de todos nós.
Quantas vezes, em Paris ou em Aix, em Argel ou em Hasse-Terre, temos visto alguns colonizados protestarem com violência sobre a suposta preguiça do negro, do argelino ou do vietnamês. E, sem dúvida, não é verdade que num regime colonial, um fellah dedicado ardorosamente ao trabalho, um negro que recusasse o descanso, seriam simplesmente indivíduos patológicos? A preguiça do colonizado é a sabotagem consciente à máquina colonial; é, no plano biológico, um sistema de auto-protecção notável e, em todo o caso, trata-se de um atraso seguro infligido à vontade do ocupante na totalidade do país.
A resistência das florestas e dos pântanos à penetração estrangeira, é aliada natural do colonizado. Haveria que compreendê-lo e deixar de argumentar e de afirmar que o negro é um grande trabalhador e o bicot um arroteador excepcional. No regime colonial, a verdade do bicot, a verdade do negro, é não mover sequer o dedo mindinho, não ajudar o opressor a aproveitar-se melhor da sua presa. O dever do colonizado, que todavia não amadureceu a sua consciência política nem decidiu recusar a opressão, é fazer com que lhe arranquem literalmente o menor gesto. É uma manifestação muito concreta da não-cooperação, em todo o caso de uma cooperação mínima.
Estas observações, que se aplicam às relações do colonizado e do trabalho, poderiam aplicar-se igualmente ao respeito do colonizado pelas leis do opressor, ao pagamento regular dos impostos, às relações do colonizado com o sistema colonial. No regime colonial, a gratidão, a sinceridade, a honra, são palavras vazias. Nos últimos anos, tive ocasião de comprovar um facto clássico: a honra, a dignidade, o respeito à palavra dada, não podem manifestar-se senão dentro do quadro de uma homogeneidade nacional e internacional. Quando vós e os vossos semelhantes forem liquidados como cães, não lhes resta outra coisa senão utilizar todos os meios para restabelecerem a vossa importância como homens. É necessário, então, pesar o mais possível o corpo do torturador para que o espírito extraviado nalgum lado recupere por fim a sua dimensão universal. Nestes últimos anos, tive a oportunidade de presenciar na Argélia combatente como a honra, a entrega de si mesmo, o amor à vida, o desprezo da morte, podiam revestir-se de formas extraordinárias. Trata-se de uma comprovação trivial que os mais furiosos colonialistas não puderam deixar de fazer: o combatente argelino tem uma maneira singular de lutar e de morrer e nenhuma referência ao Islamismo ou ao Paraíso Prometido podem explicar essa generosidade de si próprio quando se trata de proteger o povo ou de salvar os irmãos. E esse silêncio esmagador — o corpo, bem entendido, grita — esse silêncio destrói o torturador. Encontramos aqui a velha lei que impede a certa parte de nós próprios que permaneça imóvel quando a nação se põe em marcha, quando o homem reivindica e afirma ao mesmo tempo a sua humanidade ilimitada.
Entre as características do povo argelino que havia estabelecido o colonialismo, deter-nos-emos na sua pavorosa criminalidade. Antes de 1954, os magistrados, polícias, advogados, jornalistas, médicos-legistas, convinham unânimemente que a criminalidade do argelino era um problema. O argelino, afirmava-se, é um criminoso nato. Elaborou-se uma teoria, fizeram-se provas científicas. Esta teoria foi objecto, durante mais de 20 anos, de ensino universitário. Estudantes argelinos de medicina receberam esse ensino e, pouco a pouco, imperceptivelmente, depois de se adaptarem ao colonialismo, as elites adaptaram-se também às taras naturais do povo argelino. Preguiçosos, mentirosos, ladrões, assassinos, tudo isso eram sintomas natos do argelino.
Propomo-nos expor aqui esta teoria oficial, recordar as suas bases concretas e a sua argumentação científica. Depois, recolheremos os factos e procuraremos reinterpretá-los.
O argelino mata frequentemente: É um facto, dirão os magistrados, que quatro dos cinco processos instaurados se referem a golpes e a feridas. A taxa de criminalidade na Argélia é uma das mais importantes, das mais elevadas do mundo, afirmam. Não há pequenos delinquentes. Quando o argelino, e isto aplica-se a todos os norte-africanos, se coloca fora da lei, fá-lo sempre no máximo.
O argelino mata selvaticamente: E, em primeiro lugar, a arma preferida é o cutelo. Os magistrados «que conhecem o país» formaram uma breve filosofia acerca disto. Os habitantes de Kabylia, por exemplo, preferem a pistola ou a espingarda. Os árabes da planura têm predilecção pelo cutelo. Alguns magistrados perguntam a si próprios se o argelino necessita de ver sangue. O argelino, dirão, precisa sentir o calor do sangue, banhar-se no sangue da vítima. Esses magistrados, esses polícias, esses médicos, dissertam muito sèriamente sobre as relações da alma muçulmana com o sangue(17). Certo número de magistrados chegam a afirmar que para o argelino matar um homem é, antes de mais, degolá-lo. A selvageria do argelino manifesta-se sobretudo pela multiplicidade das feridas, a inutilidade de algumas infligidas depois da morte. As autópsias estabelecem seguramente isto: o assassino dá a impressão, pela gravidade de todas as feridas infligidas, que desejou matar um número incalculável de vezes.
O argelino mata por nada: Com frequência, magistrados e polícias hesitam perante os motivos do assassinato: um gesto, uma alusão, uma expressão ambígua, uma discussão junto de uma oliveira possuída em comum, uma rês que avança na oitava parte de um hectare... Frente ao assassinato, algumas vezes frente ao duplo ou triplo assassinato, a causa procurada, o motivo que se espera justifique esses assassinatos, determina-se numa trivialidade desesperante. Daí a impressão habitual de que o grupo social oculta os verdadeiros motivos.
Por último, o roubo praticado por um argelino realiza-se sempre com ferimento, acompanhado ou não de assassinato, mas sempre com agressão contra o proprietário.
Todos estes elementos reunidos em feixe sobre a criminalidade argelina, pareceram ser suficientes para especificar o facto e elaborar uma tentativa de sistematização.
Observações semelhantes, apesar de menos ricas, foram feitas em Marrocos e na Tunísia e falou-se cada vez mais da criminalidade norte-africana. Durante mais de 30 anos, debaixo da direcção constante do professor Porot, professor de psiquiatria na Faculdade de Argel, várias equipas vão definir as modalidades de expressão desta criminalidade e propor uma interpretação sociológica, funcional, anatómica.
Utilizaremos aqui os principais trabalhos dedicados a este problema pela escola psiquiátrica da Faculdade de Argel. As conclusões das investigações realizadas durante mais de 20 anos foram objecto, recordamo-lo, do magistrais cursos na cátedra de psiquiatria.
Assim foi como os médicos argelinos diplomados nu Faculdade de Argel tiveram de ouvir e de aprender quo o argelino é um criminoso nato. Recordo-me de um colega que expunha muito sèriamente essas teorias aprendidas. E acrescentava: «É duro de engolir, mas está cientificamente provado».
O norte-africano é um criminoso, o seu instinto depredador é conhecido, a sua agressividade maciça é perceptível ao simples olhar. O norte-africano gosta dos extremos; por isso, nunca se pode ter integralmente confiança. Hoje o maior amigo, amanhã o maior inimigo. Impermeável aos matizes, o cartesianismo é-lhe fundamentalmente estranho, o sentido do equilíbrio, da ponderação, da medida exacta, esbarra com as suas inclinações mais íntimas. O norte-africano é um violento, hereditàriamente violento. Existe nele uma impossibilidade de disciplinar e de canalizar os seus impulsos. Sim, o argelino é um impulsivo nato.
Mas, esclareça-se, essa impulsividade é fortemente agressiva e geralmente homicida. É assim que se explica o comportamento não ortodoxo do melancólico argelino. Os psiquiatras franceses da Argélia encontraram-se perante um problema difícil. Estavam habituados, frente a um doente de melancolia, a temer o suicídio. Mas o melancólico argelino mata. Esta enfermidade da consciência moral que é sempre acompanhada de auto-acusação e de tendências autodestrutivas, reveste-se no argelino de formas heterodestrutivas. O argelino melancólico não se suicida. Mata. É a melancolia homicida bem estudada pelo professor Porot na tese do seu discípulo Monserrat.
Como explica a escola argelina esta anomalia? Primeiro, diz a escola de Argel, matar-se é voltar sobre si mesmo, contemplar-se, praticar a introspecção. Mas o argelino é rebelde à vida interior. Não existe vida interior no norte-africano, pelo contrário, desembaraça-se das suas preocupações lançando-se sobre o que o rodeia. Não analisa. Como a melancolia é por definição uma enfermidade da consciência moral, é claro que o argelino não pode padecer senão de pseudomelancolias, dado que tanto a precaridade da sua consciência como a fragilidade do seu sentimento moral são bem conhecidas. Esta incapacidade do argelino para analisar uma situação, para organizar um panorama mental, compreende-se perfeitamente se nos referimos aos tipos de causas propostas pelos autores franceses.
E, em primeiro lugar, dizem respeito às aptidões intelectuais. O argelino é um débil mental. Se se quer compreender bem este facto, deve recordar-se a semiologia estabelecida pela escola de Argel. O indígena, diz-se, apresenta as seguintes características:
O argelino não compreende o conjunto. As questões que se colocam referem-se sempre aos pormenores e excluem qualquer síntese. Pontilhoso, agarrado aos objectos, perdido no detalhe, insensível à ideia, rebelde aos conceitos. A expressão verbal reduz-se ao mínimo. O gesto sempre impulsivo e agressivo. Incapaz de interpretar o pormenor a partir do conjunto, o argelino absolutiza o elemento e toma a parte pelo todo. Assim, haverá reacções globais perante incitações parcelares e insignificantes como uma figueira, um gesto, um carneiro que penetrou noutro terreno. A agressividade em estado puro(19).
Abandonando a fase descritiva, a escola de Argel aborda o plano explicativo. É em 1935, no Congresso de Alienistas e Neurologistas de língua francesa que se celebrava em Bruxelas, que o professor Porot define as bases científicas da sua teoria. Discutindo a comunicação de Baruk sobre a histeria, dizia que o
«indígena norte-africano, cujas actividades superiores e corticais estão pouco evoluídas, é um ser primitivo cuja vida em essência vegetativa e instintiva está dominada sobretudo pelo seu diencéfalo».
Para medir bem a importância desta descoberta do professor Porot deve recordar-se que a característica da espécie humana, quando é comparada com os outros vertebrados, é a corticalização. O diencéfalo é uma das partes mais primitivas do cérebro e o homem é, principalmente, o vertebrado que domina o córtex.
Para o professor Porot, a vida do indígena norte-africano está dominada pelas instâncias diencefálicas. Isto equivale a dizer que o indígena norte-africano está, em certo sentido, privado do córtex cerebral. O professor Porot não evita esta contradição e em Abril de 1939, na Sud Médical et Chirurgical, define, em colaboração com o seu discípulo Sutter, actualmente professor de psiquiatria em Argel:
«O primitivismo não é uma falta de maturidade, uma interrupção no desenvolvimento do psiquismo intelectual. É uma condição social chegada ao termo da sua evolução, adapta-se de maneira lógica a uma vida diferente da nossa».
Finalmente, os professores abordam a própria base da doutrina:
«esse primitivismo não é apenas uma forma resultante de uma educação especial, tem raízes muito mais profundas e até pensamos que possa ter o seu substracto numa disposição particular da arquitectónica, pelo menos da hierarquia dinâmica dos centros nervosos».
Como se vê, a impulsividade do argelino, a frequência e os caracteres dos seus assassinatos, as suas constantes tendências para a delinquência, o seu primitivismo, não são um acaso. Estamos na presença de um comportamento coerente, de uma vida coerente cientificamente explicável. O argelino não tem córtex cerebral ou, para ser mais preciso, predomina nele, como nos vertebrados inferiores, o diencéfalo. As funções corticais, se existem, são muito frágeis, pràticamente não integradas na dinâmica da existência. Não há, pois, nem mistério nem paradoxo. A reticência do colonizador para confiar uma responsabilidade ao indígena não é racismo nem paternalismo, mas simplesmente uma apreciação científica das possibilidades biologicamente limitadas do colonizado.
Terminemos esta revisão referindo-nos a uma conclusão, sobre a África em geral, do doutor Carothers, perito da Organização Mundial de Saúde. Este especialista internacional reuniu num livro publicado em 1954(20) o essencial das suas observações.
O doutor Carothers trabalhava na África central e oriental, mas as suas conclusões coincidem com as da escola norte-africana. Para o perito internacional, com efeito,
«o africano utiliza muito raramente os seus lóbulos frontais. Todas as particularidades da psiquiatria africana podem atribuir-se a uma preguiça frontal»(21)
Para se fazer entender, o doutor Carothers estabeleço uma comparação muito viva. Assim, estabelece que o africano normal é um europeu lobomizado. É sabido que a escola anglo-saxónica havia desejado encontrar uma terapêutica radical de certas formas graves de enfermidades mentais praticando a exclusão de uma parte importante do cérebro. As grandes perturbações da personalidade comprovadas conduziram depois para o abandono deste método. Segundo o doutor Carothers, a semelhança existente entre o indígena africano normal e o lobomizado europeu é notável.
O doutor Carothers, depois de estudar os trabalhos dos diferentes investigadores que trabalham em África, propõe-nos uma conclusão que estabelece uma concepção unitária do africano. «Estes são — escreve — os elementos de casos que se não referem às categorias europeias. Foram recolhidos nas diferentes regiões da África oriental, ocidental, meridional e em geral cada um dos autores tinha pouco ou nenhum conhecimento dos trabalhos dos outros. A semelhança essencial desses trabalhos é, pois, absolutamente assinalável»(22).
Anotemos, antes de terminar, que o doutor Carothers definia a rebelião dos Mau-Mau com a expressão de um complexo inconsciente de frustração, cuja repetição poderia evitar-se cientificamente mediante adaptações psicológicas espectaculares.
Assim, pois, um comportamento inabitual: a frequência da criminalidade do argelino, a trivialidade dos motivos descobertos, o carácter homicida e sempre muito sanguinário das lutas, colocava um sério problema aos observadores. A explicação proposta, que se converteu em matéria de ensino, parece ser, em última análise, a seguinte: a disposição das estruturas cerebrais do norte-africano explica por uma vez a preguiça do indígena, a sua incapacidade intelectual e social e a sua impulsividade quase animal. A impulsividade criminal do norte-africano é a transgressão à ordem do comportamento de certa disposição do sistema nervoso. É uma reacção neurològicamente compreensível, inscrita na natureza das coisas, da coisa biologicamente organizada. A não integração dos lóbulos frontais na dinâmica cerebral explica a preguiça, os crimes, os roubos, as violações, a mentira. E a conclusão deu-me um subprefeito — agora prefeito—:
«A esses seres naturais — dizia —, que obedecem cegamente às leis da natureza, devem opor-se quadros estritos e implacáveis. É necessário domesticar a natureza, não a convencer».
Disciplinar, domesticar, reduzir e agora pacificar são os vocábulos mais utilizados pelos colonialistas nos territórios ocupados.
Se temos exposto largamente as teorias dos homens de ciência colonialista, foi menos para mostrar a sua pobreza e o seu absurdo do que para abordar um problema teórico e prático extremamente importante. De facto, entre as questões que se colocavam à revolução, entre os temas que podiam ser debatidos no plano da explicação política e a desmistificação, a criminalidade argelina não representava senão um subsector. Mas precisamente as entrevistas que tiveram lugar em torno deste assunto foram até tal ponto fecundas que nos permitiram aprofundar e destacar melhor a noção de libertação individual e social. Quando na prática revolucionária se aborda perante os quadros e os militantes a questão da criminalidade argelina; quando se expõe o número médio de crimes, de delitos, de roubos do período anterior à revolução; quando se explica que a fisionomia de um crime, a frequência dos delitos se produzem em função das relações existentes entre os homens e as mulheres, entre os homens e o estado e que todos compreendem; quando se assiste com um simples olhar ao deturpar da noção de argelino ou de norte-africano criminoso por vocação, noção que estava igualmente fixada na consciência do argelino porque, na verdade, «somos coléricos, tumultuosos, maus... assim é..então, sim, pode dizer-se que a revolução progride.
O problema teórico importante é que em qualquer momento e em todos os lados deve tornar-se explícito, desmistificador, suprimir o insulto ao homem que é em si. Não se deve esperar que a nação produza novos homens. Não se deve esperar que, em perpétua renovação revolucionária, os homens se transformem insensivelmente. É verdade que estes dois processos são importantes, mas deve ajudar-se a consciência. A prática revolucionária, se quer ser globalmente libertadora e excepcionalmente fecunda, exige que nada de insólito subsista. Sente-se com singular força a necessidade de totalizar o acontecimento, de levar tudo consigo, de regulamentar tudo, de ser responsável por tudo. A consciência não se nega, então, a voltar atrás, a marcar passo se for necessário. Por isso, na marcha de uma unidade de combate sobre o terreno, o fim de uma emboscada não significa descanso, mas o momento de encaminhar também a consciência, porque tudo deve seguir a par.
Sim, espontâneamente, o argelino dava razão aos magistrados e aos polícias(23). Deve tomar-se, pois, essa criminalidade argelina vivida no plano do narcisismo como manifestação da autêntica virilidade e colocar novamente o problema no plano da história colonial. Por exemplo, demonstrar que a criminalidade dos argelinos em França difere fundamentalmente da criminalidade dos argelinos submetidos à exploração directamente colonial.
Uma segunda coisa devia chamar a nossa atenção: na Argélia, a criminalidade argelina desenvolve-se pràticamente em círculo fechado. Os argelinos roubavam-se entre si, despedaçavam-se entre si, matavam-se entre si. Na Argélia, o argelino apenas atacava os franceses e evitava as lutas com franceses. Na França, pelo contrário, o emigrante criará uma criminalidade intersocial, entre os diferentes grupos.
Na França, a criminalidade argelina diminui. Dirige-se sobretudo aos franceses e os motivos são radicalmente novos. Um paradoxo ajudou-nos consideràvelmente a desmistificar os militantes: desde 1954 comprova-se um quase desaparecimento dos delitos comuns. Já não existem disputas, não há razões insignificantes que provoquem a morte de um homem. Já não existem cóleras explosivas porque o vizinho tenha olhado de frente a cara de minha mulher ou o seu ombro esquerdo. A luta nacional parece ter canalizado todas as cóleras, nacionalizado todos os movimentos afectivos ou emocionais. Os juízes e os advogados franceses já o haviam comprovado, mas era preciso que o militante tivesse consciência disso, tinha de se lhe fazer conhecer as razões.
Resta a explicação.
Será necessário dizer que a guerra, terreno privilegiado de expressão de uma agressividade por fim socializada, canaliza até ao ocupante os gestos congènitamente criminais? É uma comprovação trivial que as grandes sacudidelas sociais diminuem a frequência da delinquência e das perturbações mentais. Podia explicar-se perfeitamente esta regressão da criminalidade argelina, assim, pela existência de uma guerra que rompia a Argélia em duas, recusando ao lado inimigo o maquinismo judicial e administrativo.
Mas, nas regiões de Magreb já libertadas, este mesmo fenómeno assinalado no decurso das lutas de libertação mantém-se e define-se com a independência. Parece, pois, que o contexto colonial é suficientemente original para autorizar uma reinterpretação da criminalidade. É o que temos feito pelos combatentes. Agora todo o mundo sabe, entre nós, que a criminalidade não é consequência do carácter nato do argelino nem da organização do seu sistema nervoso. A guerra da Argélia, as guerras de libertação nacional, fazem surgir os verdadeiros protagonistas. Na situação colonial, como se demonstrou, os indígenas vivem entre eles. Tendem a servir-se reciprocamente de palco. Cada um oculta ao outro o inimigo nacional. Depois, fatigado por uma dura tarefa de dezasseis horas, o colonizado tomba na sua esteira e essa criança quo, do outro lado da cortina, chora e não o deixa dormir, é de facto um pequeno argelino. Quando vai pedir um pouco de sémola ou um pouco de azeite ao dono da tenda de comestíveis, a quem já deve alguns centos de francos e lhe negam o favor, ele enche-se de uma enorme raiva e um ávido desejo de matar o merceeiro que é um argelino. Quando, depois de o haver evitado durante algumas semanas, se encontra um dia encurralado pelo caid que lhe reclama «impostos», nem sequer tem o prazer de odiar o administrador europeu; aí está o caid que atrai esse ódio e é um argelino.
Exposto a tentativas de assassinato quotidianas: fome, expulsão do quarto que não pagou, o seio maternal vazio, as crianças esqueléticas, as obras paradas, os desempregados que pululam ao redor do gerente como corvos, o indígena chega a ver o seu semelhante como um inimigo implacável. Se ele esfola os pés descalços nas duras pedras do caminho, foi o indígena quem as colocou ali e quando se dispõe a recolher as suas poucas uvas, sabe que os filhos de X..., pela noite, as foram comer. Sim, no período colonial na Argélia e em todos os lados, podem fazer-se muitas coisas por um quilo de sémola. É possível matar várias pessoas. Faz falta a imaginação para compreender estas coisas. Oh, a memória! Nos campos de concentração os homens mataram-se por um bocado de pão. Recordo-me de uma cena horrível. Era em Orão em 1944. Do campo onde esperávamos ser embarcados, os militares lançavam pedaços de pão a pequenos argelinos que os disputavam com raiva e ódio. Os veterinários poderiam explicar estes fenómenos, recordando o famoso peck-order que se produz nos currais. A farinha de milho que é distribuída é objecto, na verdade, de uma competição implacável. Algumas vezes, os mais fortes, devoram todos os bocados, enquanto outros menos agressivos emagrecem a olhos vistos. Toda a colónia tende a converter-se num imenso curral, num imenso campo de concentração, onde a única lei é a do cutelo.
Na Argélia, tudo mudou com a guerra de Libertação Nacional. As reservas inteiras de uma família ou de uma metcha podem ser oferecidas numa única noite a uma companhia que vem de passagem. O único burro da família pode ser emprestado para assegurar o transporte de um ferido. E quando, vários dias depois, o proprietário se inteira da morte do seu animal metralhado por um avião, não se lançará em imprecações e ameaças. Não falará da morte do seu animal, mas perguntará, inquieto, se o ferido está são e salvo.
No regime colonial, qualquer coisa pode fazer-se por um quilo de pão ou um miserável borrego... As relações do homem com a matéria, com o mundo, com a história, são na fase colonial relações com os alimentos. Para um colonizado num contexto de opressão como o da Argélia, viver não é incarnar valores, inscrever-se no desenvolvimento coerente e fecundo de um mundo. Viver é não morrer. Existir é manter a vida. Cada data é uma vitória. Não um resultado do labor realizado, mas uma vitória concebida como triunfo da vida. Assim, cruzar os braços, permitir que o borrego coma a erva do vizinho, não são uma negação da propriedade dos outros, a transgressão de uma lei ou uma falta de respeito. São tentativas de assassinato. K necessário ter visto em Kabylia homens e mulheres irem buscar terra durante semanas ao fundo do vale e transportá-la em pequenas canastras, para compreender que um roubo é uma tentativa de assassinato e não um gesto pouco amistoso ou ilegal. É que a única perspectiva é esse estômago cada vez mais reduzido, cada vez menos exigente, é verdade, mas que, de qualquer maneira, é necessário contentar. A quem dirigir-se? O francês está na planície com os polícias, o exército e os tanques. Na montanha somente existem argelinos. Acolá, o céu com as suas promessas de além-túmulo; lá em baixo, os franceses com as suas promessas bem concretas de prisão, de sovas, de execuções. Forçosamente, recai-se sobre si próprio. Aqui, descobre-se o núcleo desse ódio a si mesmo que caracteriza os conflitos raciais nas sociedades segregadas.
A criminalidade do argelino, a sua impulsividade, a violência dos seus assassinatos, não são, portanto, a consequência de uma organização do sistema nervoso nem de uma originalidade de carácter, mas o produto directo da situação colonial. Que os combatentes argelinos hajam discutido este problema, que não hajam temido pôr em dúvida as crenças que o colonialismo lhes havia inculcado, hajam compreendido que cada qual era o espelho do outro e que, na verdade, cada um se suicidava ao lançar-se sobre o outro, devia ter uma importância primordial na consciência revolucionária. Uma vez mais, o objectivo do colonizado que luta é provocar o fim da dominação. Mas igualmente deve velar pela liquidação de todas as mentiras introduzidas no seu corpo pela opressão. Num regime colonial, tal como existia na Argélia, as ideias professadas pelo colonialismo não influíam somente na minoria europeia, mas também no argelino. A libertação total é a que concerne a todos os sectores da personalidade. A emboscada ou o corpo-a-corpo, a tortura ou a matança de seus irmãos, enraízam a determinação de vencer, renovam o subconsciente e alimentam a imaginação. Quando a nação se desamarra totalmente, o homem novo não é um produto a posteriori dessa nação, mas coexiste, desenvolve-se e triunfa com ela. Esta exigência dialéctica explica a reticência perante as colonizações adaptadas e as reformas de fachada. A independência não é uma palavra que deva exorcizar-se, mas uma condição indispensável para a existência de homens e mulheres realmente libertados, quer dizer, donos de todos os meios materiais que tornam possível a transformação radical da sociedade.
Camaradas: é necessário decidir a partir deste momento uma mudança de rumo. A grande noite em que estivemos submersos, é preciso sacudi-la e sair dela. O novo dia que já se descobre, deve encontrar-nos firmes, despertos e resolutos.
Devemos esquecer os sonhos, abandonar as nossas velhas crenças e as nossas amizades anteriores. Não percamos o tempo em estéreis litanias ou em mimetismos nauseabundos. Deixemos essa Europa que não deixa de falar do homem ao mesmo tempo que o assassina onde quer que o encontra, em todas as esquinas das suas próprias ruas, em todas as partes do mundo.
Há séculos que a Europa deteve o progresso dos outros homens e os submeteu aos seus desígnios e à sua glória; há séculos que, em nome de uma falsa «aventura espiritual» sufoca quase toda a humanidade. Olhem-na hoje a oscilar entre a desintegração atómica e a desintegração espiritual.
E, sem dúvida, no seu interior, no plano das realizações, pode dizer-se que triunfou em tudo.
A Europa assumiu a direcção do mundo com ardor, com cinismo e com violência. E vejam como se estende e se multiplica à sombra dos seus monumentos. Cada movimento da Europa fez estalar os limites do espaço e do pensamento. A Europa rejeitou toda a humildade, toda a modéstia, mas também toda a solicitude, toda a ternura.
Apenas se mostrou parcimoniosa com o homem, sòmente foi mesquinha, carniceira, homicida com o homem.
Então, camaradas, como não compreender que temos alguma coisa de melhor a fazer do que seguir essa Europa?
Essa Europa que nunca deixou de falar do homem, que jamais deixou de proclamar que só a preocupava o homem, agora sabemos com que sofrimentos pagou a humanidade cada uma das vitórias do seu espírito.
Camaradas, o jogo europeu terminou definitivamente, é preciso encontrar outra coisa. Podemos fazer qualquer coisa sob a condição de não imitar a Europa, sob condição de não nos deixarmos obsidiar pelo desejo de alcançar a Europa.
A Europa adquiriu tal velocidade, louca e desordenada, que escapa agora a qualquer condutor, a qualquer razão e atinge uma vertigem terrível num abismo de que devemos afastar-nos o mais rapidamente possível.
É verdade, claro, que precisamos de um modelo, de esquemas, de exemplos. Para muitos de nós, o modelo europeu é o mais exaltante. Mas nas páginas anteriores vimos as desgraças a que nos levava esta imitação. As realizações europeias, a técnica europeia, o estilo europeu, devem deixar de nos tentar e de nos desequilibrar.
Quando procuro o homem na técnica e no estilo europeu, vejo uma sucessão de negações do homem, uma avalanche de assassinatos.
A condição humana, os projectos do homem, a colaboração entre os homens em tarefas que acrescentem a totalidade do homem, são problemas novos que exigem verdadeiros inventos.
Decidamos não imitar a Europa e orientemos os nossos músculos e os nossos cérebros numa direcção nova. Tratemos de inventar o homem total que a Europa foi incapaz de fazer triunfar.
Há dois séculos, uma antiga colónia europeia decidiu imitar a Europa. Conseguiu-o a tal ponto que os Estados Unidos da América se converteram num monstro onde as taras, as enfermidades e a desumanidade da Europa alcançaram terríveis dimensões.
Camaradas, não teremos outra coisa a fazer senão criar uma terceira Europa? O Ocidente quis ser uma aventura do espírito. E em nome do espírito, do espírito europeu, bem entendido, a Europa justificou os seus crimes e legitimou a escravidão que mantém em quatro quintas partes da humanidade.
Sim, o espírito europeu teve singulares fundamentos. Toda a reflexão europeia se desenvolveu em sítios cada vez mais desertos, cada vez mais escarpados. Assim se adquiriu o costume de encontrar ali cada vez menos o homem.
Um diálogo permanente consigo mesmo, um narcisismo mais obsceno, não deixaram de preparar o terreno num quase delírio, onde o trabalho cerebral se converte num sofrimento, onde as realidades não são já as do homem vivo, que trabalha e se forma a si próprio, mas palavras, diversos grupos de palavras, as tensões aparecidas dos significados contidos nas palavras. Houve europeus, sem dúvida, que convidaram os trabalhadores europeus a romper com esse narcisismo e a quebrar com essa irrealidade.
Em geral, os trabalhadores europeus responderam a essas chamadas. Porque os trabalhadores também acreditaram participar na aventura prodigiosa do espírito europeu.
Todos os elementos de uma solução dos grandes problemas da humanidade existiram, em diferentes momentos, no pensamento da Europa. Mas os actos dos homens europeus não responderam à missão que lhes correspondia e consistia em reflectir violentamente sobre esses elementos, em modificar o seu aspecto, o seu ser, em modificá-los, em levar, finalmente, o problema do homem a um nível incomparàvelmente superior.
Hoje, assistimos a um verdadeiro êxtase da Europa. Fujamos, camaradas, desse movimento imóvel onde a dialéctica se transformou pouco a pouco em lógica do equilíbrio. É preciso reformular o problema do homem. É necessário reformular o problema da realidade cerebral, da massa cerebral de toda a humanidade, cujas conexões precisam multiplicar-se, cujas redes devem diversificar-se e cujas mensagens temos de re-humanizar.
Camaradas, temos demasiado trabalho para nos divertirmos com os jogos da retaguarda. A Europa fez o que tinha a fazer e, em resumo, fê-lo bem; deixemos de a acusar, mas digamos-lhe firmemente que não deve continuar a fazer tanto barulho. Já não temos nada a temer dela, deixemos, pois, de a invejar.
O Terceiro Mundo está agora frente à Europa como uma massa colossal, cujo projecto deve ser tratar da resolução dos problemas a que essa Europa não soube dar solução.
Mas, então, não se deve falar de rendimentos, de intensificação, de ritmo. Não, não se trata de regressar à Natureza. Trata-se concretamente de não conduzir os homens por direcções que os mutilem, de não impor ao cérebro ritmos que rapidamente o obliteram e perturbam. Com o pretexto de alcançar a Europa não se deve forçar o homem, arrancá-lo de si mesmo, da sua intimidade, não se deve cansá-lo, nem assassiná-lo.
Não queremos alcançar ninguém. Mas queremos marchar constantemente, de noite e de dia, em companhia do homem, de todos os homens. Trata-se de não alargar a caravana, porque, então, cada fila apenas compreende a que a precede e os homens que não se reconhecem já, encontram-se e falam cada vez menos.
Trata-se, para o Terceiro Mundo, de recomeçar uma história do homem que tome em conta ao mesmo tempo as teses, algumas vezes prodigiosas, sustentadas pela Europa, mas também os crimes da Europa, o mais odioso dos quais foi, no seio do homem, o esquartejamento patológico das suas funções e a desintegração da sua unidade; dentro do quadro de uma colectividade, a ruptura, a estratificação, as tensões sangrentas alimentadas pelas classes; na imensa escala da humanidade, por último, os ódios raciais, a escravidão, a exploração e, sobretudo, o genocídio tão sangrento que representa a exclusão de mil e quinhentos milhões de homens.
Não paguemos, pois, camaradas, um tributo à Europa, criando estados, instituições e sociedades inspiradas nela.
A humanidade espera alguma coisa de nós que não seja essa imitação caricatural e em geral indecorosa.
Se queremos transformar a África numa nova Europa, a América numa nova Europa, confiemos, então, aos europeus os destinos dos nossos países. Saberão fazê-lo melhor que os mais dotados de nós.
Mas se queremos que a humanidade avance com audácia, se queremos elevá-la a um nível diferente do que foi imposto pela Europa, então é necessário inventar e descobrir.
Se queremos responder à esperança dos nossos povos, não devemos fixar-nos apenas na Europa.
Além disso, se queremos responder à esperança dos europeus, não devemos reflectir uma imagem, mesmo ideal, da sua sociedade e do seu pensamento pelos quais sentem de quando em quando uma imensa náusea.
Pela Europa, por nós próprios e pela humanidade, camaradas, é necessário mudar de pele, desenvolver um pensamento novo, tratar de formar um homem novo.
Notas de rodapé:
(1) Na introdução não publicada nas duas primeiras edições do L’An V de la Révolution Algérienne já assinalávamos que toda uma geração de argelinos, submersa no homicídio gratuito e colectivo com as consequências psico-afectivas que isto supõe, seria a herança humana da França, na Argélia. Os franceses que condenam a tortura na Argélia adoptam constantemente um ponto de vista estritamente francês. Não é uma censura, é uma comprovação: quer proteger-se a consciência dos torturadores actuais e, sobretudo, trata-se de evitar a podridão moral da juventude francesa. Não podemos deixar de estar de acordo com esta Intenção. Algumas observações reunidas aqui, principalmente os casos 4 e 5 da série A, ilustram e justificam tristemente esse temor dos democratas franceses. Mas o nosso propósito, em todo o caso, é demonstrar que a tortura sofrida desloca profundamente, não podia ser de outra forma, a personalidade do torturado. (retornar ao texto)
(2) As circunstâncias de aparição desses transtornos, são interessantes por mais de uma razão. Vários meses depois da independência do seu país, havia conhecido alguns cidadãos da antiga nação colonialista. Haviam-lhe parecido simpáticos. Esses homens e mulheres saudavam a independência obtida e rendiam homenagens sem reservas ao valor dos patriotas na luta de libertação nacional. Aquele militante experimentou, então, uma espécie de vertigem. Perguntou-se com angústia se entre as vítimas da bomba não existiriam pessoas semelhantes aos seus interlocutores. De facto o café atacado era um reduto de notáveis racistas, mas nada impedia que qualquer outro ali entrasse para tomar alguma coisa. Desde o dia em que sentiu essa primeira vertigem, o homem tratou de evitar pensar nos acontecimentos passados. Mas, paradoxalmente, uns dias antes da data que o afligia, apareceram as primeiras perturbações.' Desde então repetem-se com regularidade.
Por outras palavras, os nossos actos não deixam nunca de nos perseguir. A sua aparência, a sua ordem, as suas motivações, podem perfeitamente modificar-se de maneira profunda a posteriori. Não é uma das menores ciladas que nos mostra a História e as suas múltiplas determinações. Mas podemos escapar à vertigem? Quem pode afirmar que a vertigem não nos assedia toda a vida? (retornar ao texto)
(3) Depois do exame médico-legal em que pus em evidência o carácter patológico do acto, o procedimento judicial iniciado pelo estado-maior do A. L. N. interrompeu-se. (retornar ao texto)
(4) Esta observação situa-nos perante um sistema coerente que não deixa nada intacto. O verdugo que ama os pássaros ou goza a calma de uma sinfonia ou de uma sonata, isso é simplesmente uma fase. Posteriormente, existe apenas uma consciência que se inscreve de forma total no plano de um sadismo radical e absoluto. (retornar ao texto)
(5) Rivet é uma aldeia que, a partir de certo dia de 1956, se fez célebre na região de Algérois. Uma noite, a aldeia foi invadida por milicianos franceses que, após fazerem levantá-los da cama, assassinaram quarenta homens. (retornar ao texto)
(6) No decorrer do ano de 1955, os casos deste tipo foram muito numerosos na Argélia. Desgraçadamente, nem todos os doentes tiveram a oportunidade de chegar ao hospital. (retornar ao texto)
(7) Este tipo de tortura provoca grande número de mortes. Depois desses clisteres a forte pressão, com efeito, a mucosa intestinal sofre lesões múltiplas que provocam microperfurações intestinais. As embolias gasosas e as peritonites são, depois, muito frequentes. (retornar ao texto)
(8) Falamos evidentemente de argelinos que, sabendo alguma coisa, não confessaram sob tortura, porque qualquer argelino que fale é assassinado pouco depois. (retornar ao texto)
(9) O corpo médico deve revezar-se, dia e noite, ao lado do enfermo num trabalho de explicação. É evidente que a fórmula «forcemos um pouco o doente», não pode ser aqui utilizada de forma válida. (retornar ao texto)
(10) Esta tortura preventiva converte-se, em algumas regiões, em «repressão preventiva». Foi assim que em Rivet, quando reinava a calma, os colonos, para não serem apanhados desprevenidos (as regiões mais próximas começavam a agitar-se), decidiram suprimir pura e simplesmente os membros eventuais da F. L. N.; mais de quarenta argelinos foram assassinados num só dia. (retornar ao texto)
(11) Na verdade, não é nada estranho. O conflito é sòmente o resultado da evolução dinâmica da personalidade, onde não poderia haver um «corpo estranho». Digamos que se trata antes de um corpo mal integrado. (retornar ao texto)
(12) Citaremos também o caso dos psiquiatras pertencentes aos grupos «Presença francesa» que, designados para examinar um prisioneiro, tinham o costume de proclamar, desde o primeiro contacto, a sua grande amizade com o advogado de defesa e afirmar que ambos (o advogado e ele) tirariam dali o prisioneiro. Todos os presos examinados nestas condições foram guilhotinados. Estes psiquiatras jactavam-se perante nós pela forma elegante como venciam as «resistências». (retornar ao texto)
(13) É sabido que nos Estados Unidos se desenvolveu uma corrente psico-sociológica. Os expoentes desta escola pensam que o drama do indivíduo contemporâneo está contido no facto de que já não desempenha um papel, que o mecanismo social o limita apenas a ser uma roda. Daí a terapêutica proposta para permitir ao homem que represente determinados papéis numa verdadeira actividade lúcida. Se representa qualquer papel, se inclusive muda de função num mesmo dia, é possível pôr-se simbolicamente no lugar de qualquer outro. Os psiquiatras das fábricas dos Estados Unidos fazem prodígios, segundo parece, com a psicoterapia de grupo dos operários. Permite-lhes, com efeito, assemelhar-se com determinados heróis. A tensão das relações entre patrões e operários diminui consideràvelmente. (retornar ao texto)
(14) Esta designação que expressa uma concepção idealista é abandonada progressivamente. Na verdade, a terminologia córtico-visceral herdada dos trabalhos soviéticos — sobretudo de Pavlov — tem ao menos a vantagem de pôr o cérebro no seu lugar, quer dizer, de considerá-lo como a matriz onde se elabora precisamente o psiquismo. (retornar ao texto)
(15) Quanto mais nos elevamos no plano neurológico, menos se é extra-piramidal. Como se vê, tudo parecia concordar. (retornar ao texto)
(16) É supérfluo acrescentar que não se trata de uma contracção histérica. (retornar ao texto)
(17) É sabido, com efeito, que o islamismo obriga a não consumir carne sem se assegurar antes de que ao animal foi tirado todo o seu sangue. Por isso, as reses são degoladas. (retornar ao texto)
(18) Professor A. Porot, Annales Médico-Psychologiques, 1918. (retornar ao texto)
(19) Na boca do decano dos juízes de uma câmara de Argel esta agressividade do argelino traduz-se pelo seu amor à «fantasia». «Toda esta revolta — dizia em 1955 —, é um erro considerá-la política. De tempos a tempos tem de sair esse amor do barulho que sentem!» Para o etnólogo, estabelecer uma série de testes e de jogos projectivos susceptíveis de canalizarem os instintos agressivos globais do indígena, poderia, em 1955-1956, deter a revolução nos Aurés. (retornar ao texto)
(20) Carothers, «Psychologie normale et pathologique de l'Africain», Études Ethno-Psychiatriques. Masson. (retornar ao texto)
(21) Op. cit., pág. 176. (retornar ao texto)
(22) Op. cit., pág. 178. (retornar ao texto)
(23) É claro que, aliás, essa identificação à imagem produzida pelo europeu era muito ambivalente. O europeu, com efeito, parecia render uma homenagem — igualmente ambivalente — ao argelino violento, apaixonado, brutal, zeloso, soberbo, orgulhoso, que joga com a sua vida por causa de um pequeno motivo ou por uma palavra, etc. Assinalemos de passagem que nos confrontos com o francês da França, os europeus da Argélia tendem cada vez mais a identificar-se com esta imagem do argelino por oposição ao francês. (retornar ao texto)
Inclusão | 20/04/2014 |
Última atualização | 18/11/2015 |