Solidariedade e Individualismo

Luigi Fabbri

Maio de 1904


Primeira edição: Il Pensiero – Ano II, Número 7-8, maio 1904

Observação: Série de 3 artigos polémicos sobre o individualismo stirneriano, publicados originalmente em 1903 na revista Il Pensiero de Roma (números 7, 8 e 10, que podem ser consultados online aqui). Esta obra foi também publicada em brochura, pelo menos em 1904 em Praga e em 1973 no México. Leia dois outros artigos [01 - 02], e o artigo de Jean Grave publicados em números posteriores da mesma revista Il Pensiero, que dão continuação à polémica. Todas as notas são do autor.

Fonte: Última Barricada - https://ultimabarricada.wordpress.com/2020/01/12/o-individualismo-stirneriano-no-movimento-anarquista/

Tradução: João Black

HTML: Fernando Araújo.


Tomei a liberdade de deixar passar três longos números entre a publicação da resposta de Corbella aos meus artigos, sobre o individualismo stirneriano em relação à anarquia, e esta minha réplica, porque outras questões mais urgentes e outros colaboradores mais exigentes impediam-me de tirar à presente revista todo o espaço necessário a uma discussão que pretenda responder ponto por ponto ao longíssimo artigo do meu contraditor — de oito bem densas colunas — sobre Max Stirner e o anarquismo. De resto, melhor tarde que nunca; e o atraso não é um grande mal visto que o único prejudicado sou eu, que posso até ter passado aos olhos do amigo Corbella (o que não lhe pode ter causado desprazer) por incapaz de lhe responder.

Mal não houve para os leitores, já que se trata duma discussão totalmente doutrinária, à qual se pode regressar comodamente e com mais calma após um (ainda que não breve) intervalo; e por outro lado confesso que, preocupado principalmente com as questões mais práticas do problema social, as questiúnculas puramente especulativas e doutrinárias pouco me interessam e pouco ou nada me apaixonam, exceto quando é para as combater onde elas se tornam um obstáculo ou uma distração diante das batalhas mais urgentes a travar.

Mais do que o próprio Max Stirner, eu critiquei o individualismo anarquista que se religa a Max Stirner e que hoje constitui uma verdadeira e própria tendência intelectual em filosofia e literatura, e combati-o nas suas atuais explicações egoístas e aristocráticas que me parecem contrárias ao interesse e ao espírito das teorias anarquistas, as quais são aceites pela generalidade dos que hoje se dizem anarquistas e surgiram desde o início do movimento que por elas tomou o nome.

Pretendi antes de tudo fazer uma retificação histórica e factual: desmentir nomeadamente a gratuita afirmação de vários diletantes de anarquismo — pró ou contra, pouco importa — que fazem derivar de Max Stirner e das suas ideias, seja histórica ou ideologicamente, o movimento anarquista contemporâneo. Demonstrei, e parece-me que irrefutavelmente, com a história à mão, que quando o movimento libertário era já forte e adulto, Max Stirner não tinha sido ainda desenterrado e portanto não era conhecido. Demonstrei ainda que o ideal anarquista — palavra, teoria e agitação —, além da diferente origem histórica, tem diferente origem ideológica, sendo mais um produto do socialismo que do individualismo, mais uma forma do primeiro do que uma encarnação do segundo. Em todo o caso, nem Max Stirner se disse anarquista, nem os stirnerianos atuais aceitaram ainda todos este termo; e se alguns, como Corbella, o aceitam, não é certamente no sentido em que é tomado pela generalidade das pessoas que se dizem anarquistas, nem como foi assumido pelos que primeiro fizeram dele bandeira de luta e lhe atribuíram um significado político e social.

Lodovico Corbella responder-me-á que isto pouco lhe importa; e terá talvez razão: cada um pode qualificar-se como quiser. Mas ele não pode negar que a sua anarquia é toda uma outra coisa que não a anarquia dos anarquistas geralmente conhecidos como tais, que em torno desta palavra construiram, desde Proudhon e, melhor, desde Bakunin em diante, com os escritos, a propaganda e a ação revolucionária, toda uma teoria orgânica, todo um movimento e uma completa página de história contemporânea.

E é isto o que no fundo eu tencionava demonstrar estudando a influência do individualismo stirneriano no movimento anarquista.

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O movimento anarquista atual sofre certamente uma influência por parte das ideias stirnerianas e nietzscheanas, como sofreu já a influência das teorias marxistas; na verdade a influência stirneriana é agora um pouco menor, e há contra ela uma forte reação precisamente onde no passado mais se fez sentir, em França especialmente; e noto um arrependimento dos anarquistas em sentido socialista; o que me dá muito prazer.

Mas houve um certo período, de 1891 a 1896, em que a corrente individualista conseguiu quase predominar; o que ajudou muito a desorientar o movimento, a confundir as ideias até as tornar extravagantes e mirabolantes, até conduzir os militantes a enormes erros táticos e a formas de propaganda absolutamente deletérias(I). É sobretudo a consciência desta confusão babilónica trazida para o nosso campo que, nos meus artigos, após demonstrada a justeza da minha afirmação em matéria de história da teoria e do movimento anarquista, me levou também a tentar demonstrar que os stirnerianos não são verdadeiramente anarquistas.

É inútil eu repetir aqui o que entendo por anarquia; já o disse no mesmo número em que foi publicado o artigo de Lodovico Corbella. Eu tomo a anarquia como um conceito muito prático e muito relativo, e sobretudo muito determinado. Não creio na liberdade absoluta, como não creio na felicidade absoluta, como não creio, enfim, em nada de absoluto. No absoluto crêem os religiosos e… os individualistas stirnerianos.

Por isso não percebo a ideia da absoluta independência ou absoluta autonomia individual dos individualistas. Mas aqui entramos num outro campo, o campo para onde me quer arrastar Lodovico Corbella. E eu não me recuso, visto que fui eu a provocá-lo com os ataques à sua teoria; mas na condição de que fique estabelecida a verdade da minha afirmação, que constituía o tema principal dos meus artigos anteriores, e que acima repeti, sobre a nenhuma relação de origem, a nenhuma derivação um do outro, como movimento ou como teoria, ou até como simples terminologia, entre o anarquismo atual e o individualismo stirneriano.

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Aquele certo ar de superioridade que Lodovico Corbella assume em direção a mim não me impede de lhe dizer que é justamente a confusão endiabrada que há nas suas ideias que o faz trocar por anarquia o seu conceito abstrato e apriorístico da autonomia individual. Eu argumentei que Stirner desmonta sem reconstruir (não que por isso eu tenha pretendido, como mostra crer Corbella com o seu ar sarcástico, ser eu um reconstrutor e ainda menos «reconstrutor por excelência»); argumentei que, enquanto os anarquistas se preocupam com uma reorganização social e por isso substituem a cooperação forçada, sustentada pelas leis e pela violência, pela cooperação voluntária regida pelos livres pactos da solidariedade, os individualistas não se encarregarão disso de todo, mercê do conceito metafísico de que para ter uma sociedade nova é necessário primeiro reformar os homens e torná-los «indivíduos no sentido próprio, puro e completo da palavra».

Enquanto nós anarquistas pensamos numa reconstrução possível não em dois mil anos, mas o mais breve possível, e com os homens e o material que tivermos à mão, Lodovico Corbella pretende para Stirner o monopólio da perfeita reconstrução só porque, segundo ele, Stirner construiu… uma nova tábua de valores!

Não digo que seja pouco, mas caramba! não é tudo. Uma nova tábua de valores cada nova escola a constrói, e os anarquistas também o fizeram. E nesta tábua está escrito, e para mim também, que o indivíduo na sociedade, como o átomo no organismo, é o elemento constitutivo essencial e que, para que o conjunto seja bom, é necessário primeiro que esse indivíduo seja bom. Mas para que o indivíduo se torne como o quer Corbella e como, pelo menos relativamente, o quero também eu — um indivíduo no sentido próprio, puro e completo da palavra —, é necessário que as condições do ambiente concorram para lhe facilitar este seu tornar-se, é necessário que em torno dele os outros indivíduos queiram o que ele quer e o ajudem a fazer evoluir o próprio eu: é necessário, numa palavra, organizar e fazer a anarquia.

Antes disso poderemos ter alguns indivíduos conscientes, rebeldes ao ambiente; mas a sua consciência será demasiado relativa em comparação com o desejável, e serão demasiado poucos para constituir em um ambiente para si, separado dos outros. É necessário portanto que estes primeiros rebeldes propaguem o seu pensamento até serem tantos que possam determinar uma mudança radical no ambiente; então teremos a anarquia, o meio favorável para aproximar ainda mais o indivíduo a um grau máximo de perfeição, à sua máxima individualização; mas, repito, primeiro é preciso organizar esta anarquia, concretizá-la.

Ora, Corbella poderá muito bem afirmar que eu não sou um revolucionário, mas um reformista religioso; porém afirmar não é provar. Também eu lhe poderia dizer que ele é tudo menos um revolucionário e um anarquista, mas antes um doutrinário e um metafísico.

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Um meio muito cómodo de polemizar é colocar na boca do adversário as respostas que dão jeito, e resumir-lhe as objeções de modo a parecerem diferentes do que são. Corbella faz exatamente assim, e não deixa de o fazer quando disso se apercebe e o confessa.

Assim ele atribui-me preocupações e medos que, creio, simplesmente não tenho. Diz Corbella, por exemplo, que eu fiquei assustado com a palavra Moi, que é o título da segunda parte do l’Unique et as Propriété de Stirner, e que este susto me impediu de perceber o seu pensamento. Que diabo! isso assustou-me tão pouco que depois de o ter lido permaneci Eu, e não me tornei stirneriano.

Aliás, neste sentido apraz-me dizer — e perdoem-me o parêntesis pessoal — que embora compartilhando ao máximo as ideias de muitos teóricos da anarquia, e também várias de Max Stirner, assim como não sou stirneriano tampouco sou bakuninista, ou marxista, ou kropotkiniano, ou malatestiano: creio que no fundo sou eu e além disso também sou anarquista. Corbella pode achar que não, do mesmo modo que eu poderei achar o mesmo dele. Mas isso não prova nada, já que quem tem que achar não somos nós reciprocamente, mas os leitores.

Em suma eu apelo os leitores a não aceitarem como minhas as objeções que Corbella coloca na minha boca: vão reler os meus artigos anterios e convencer-se-ão de que o meu egrégio adversário está um pouco a combater os moinhos de vento. E combate-os julgando combater seriamente um inimigo; disso me apercebo quando o vejo atribuir-me palavras sobre Stirner que, ao invés, eu disse sobre os stirnerianos; o que é diferente. Muito provavelmente se Stirner fosse vivo diria Je ne suis pas stirnerienne, do mesmo modo que Marx dizia Je ne suis pas marxiste. De facto eu não disse que Stirner não admite o princípio da solidariedade, e sobretudo não disse que ele fosse contrário à violência como meio de alcançar a liberdade ou o bem-estar. Eu falei dos stirnerianos e não de Stirner.

E os stirnerianos que, se descontarmos a limitada escola norte-americana, são mais uma tendência filosófica e artística do que propriamente um grupo formado com ideias e métodos próprios, não se importam de facto com o princípio de solidariedade, e muitos pelo contrário opõem-se a ele. Nenhum deles o compreende como um conceito positivo da resultante da necessidade de sociabilidade inerente ao homem, necessidade sentimental e mais ainda material do auxílio recíproco pela vida.

E assim relativamente à violência. A este propósito Max Stirner não se pronuncia, e não basta um qualquer extrato tirado daqui e dali para lhe atribuir uma opinião favorável. A verdade é que, começando por Tucker e Mackay, os individualistas anarquistas repudiam a violência tanto individual como coletiva. Há vários anos Tucker manteve uma polémica muitíssimo animada a propósito dos antentados, com o anarquista comunista Johann Most, que os defendia.

Stirner, repito, não se pronuncia, e em algumas partes as suas palavras parecem favoráveis e em outras parecem contra. Poderia dizer o mesmo também quanto à solidariedade, apesar das longas citações feitas por Corbella, se não me apercebesse que também Stirner encontra maneira de fazer jogos de palavras por amor aos paradoxos. Ele faz uma distinção entre associação e sociedade; como se a sociedade não fosse uma associação grande, como se a associação não fosse uma sociedade pequena! «A criança prefere as relações que contraiu com os seus semelhantes — cita Corbella de Stirner — à sociedade na qual não entrou por si ou na qual não nasceu». Muito obrigado! isso quer dizer que a sociedade da criança consiste nas relações contraídas com os seus amigos.

E o que é a sociedade senão constituída por relações que os homens que a compõem contraem entre si? Sejam estas relações organizadas por livres pactos, fora de toda a coação violenta, segundo um princípio de igualdade, e eis a anarquia dos anarquistas socialistas.

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Lodovico Corbella quer saber as minhas ideias sobre o direito, a justiça, a moral, o bem e o mal. Quer saber demais para eu poder dizer num artigo que já se tornou bastante longo. Estes são assuntos de índole geral sobre os quais eu e outros amigos meus voltaremos certamente a falar mais vezes, mesmo sem intenções polémicas.

No que respeita às citações de Stirner por Corbella, eu direi que não é difícil fazer um autor dizer o que quisermos suprimindo uma série de páginas; e direi também que me parece que a negação do conceito de solidariedade resulta não duma frase determinada e precisa, não duma página, mas de todo o conjunto do livro, e mais ainda do conjunto das várias teorias que os individualistas posteriores a Stirner lhe fizeram derivar. Não obstante, escutai:

«Eu asseguro a minha liberdade contra todos em razão de quanto posso apropriar-me de tudo, qualquer que seja o meio por mim empregue: persuasão, pedido, ordem categórica, ou até hipocrisia, artimanha, etc.». (Notai aquela ordem categórica que tresanda a bastão, e aquele etc. no fim…) «Eu sinto que a minha liberdade diminuiu, quando não posso impor a minha vontade a um outro (seja ele quem for, um ser sem vontade como uma rocha, ou um ser valente, como um governo, um indivíduo, etc.); mas seria um renegar da minha individualidade o abandonar-me a outros, ceder, vergar, renunciar, por submissão e resignação». Esta é a solidariedade daquele selvagem de que fala Ferrero: está bem quando eu pego a mulher do meu vizinho, está mal quando ele pega a minha! É esta a definição do bem e do mal segundo os stirnerianos?

A propósito da propriedade individual Stirner diz: «Eu penso que a terra pertence a quem a sabe tomar e a quem não deixa que lha tirem. Se dela se apodera e a faz sua, ele deve ter a terra e conjuntamente o direito de a possuir». Precisamente! é o que dizem os proprietários de hoje, quando dizemos que queremos socializar a propriedade.

Lodovico Corbella fala-me duma sociedade dos egoístas que poderia impedir a existência de um Nero em vestes stirnerianas. É verdade; desde que nessa sociedade não exista um forte grupo de egoístas que possa ter em mente colocar-se do lado de Nero e fazer negócio com ele para oprimir os outros. «Quando todos forem egoistas…» diz-se. Mas o egoísta mais forte e violento subjugará o mais fraco, e terá sempre interesse em que os outros não sejam egoístas à sua maneira, para poder dominá-los, se o princípio da solidariedade não mitigar todos os egoísmos e não os assentar na fraternidade recíproca.

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Parece que estou a ouvir perguntarem-me: então Max Stirner não é anarquista? Max Stirner não é anarquista, nem é inimigo da anarquia. É um genial pensador do qual muitas ideias são comuns às dos anarquistas e outras são contrárias. O seu livro é um violento reagente contra o leite com mel nauseante dos filósofos humanitários do seu tempo, uma antítese amarga do idealismo muitíssimo bem conseguida, em que as verdades se somam em conjunto com os paradoxos, um livro de batalha, doutrinário dos seus tempos que pode inspirar um método de crítica, com um sistema de reorganização social. Repito: ótimos argumentos a favor das suas teses podem dele aproveitar os anarquistas; mas também podem igualmente os reacionários; e parece-me que mais estes do que aqueles.

Isto é o que me parece. E se Lodovico Corbella argumenta que eu não sou anarquista, isso quer dizer que a sua anarquia não é a minha. E, naturalmente, assim como ele acha que eu não sou anarquista, também eu estou convencido de que nem ele nem os stirnerianos em geral têm direito a esse nome; com esta diferença de que eu tenho a meu favor a história da palavra, da teoria e do movimento anarquista.


Notas de rodapé:

(I) Por razões de brevidade não me ponho a citar datas, factos, pessoas e sobretudo ideias então expostas nos jornais. Mas seria interessantíssimo estudar as formas assumidas pela propaganda anarquista naquele tempo, em que entretanto (falando na Itália) a revolução parecia quase às portas; os jornais anarquistas discutiam sobre a organização, o amorfismo, o amor livre e a pluralidade dos afetos, o furto como meio revolucionário, e sobretudo o individualismo que cada um interpretava a seu modo; que permitia aos diletantes de anarquia ir a tribunal dizer aos juízes o seu desprezo pelas massas em nome duma cómoda teoria spenceriana, após terem escrito nos jornais anarquistas rasgos literários e poesias mais ou menos bárbaras, exaltando a violência mais insensata, o que alienava as simpatias do povo pelas ideias e permitia que, quase sem protesto da opinião pública, os outros que faziam trabalho sério fossem arrastados para o domicílio forçado, a cadeia ou o cadafalso, e também os cada vez mais legítimos atos de reivindicação ou defesa social fossem interpretados como uma explosão maléfica de brutais paixões. (retornar ao texto)

Inclusão: 25/02/2021