Che em Sierra Maestra
Depoimento inédito de uma guerrilheira

Merceditas Sánchez Dotres


Minhas recordações do Che


capa

A tropa atribuía ao Che uma série de qualidades que a História se encarregou de confirmar. Para a coletividade guerrilheira, era ponto pacífico que o Che era um homem extremamente justo, incapaz de se deixar levar por um determinado estado de ânimo quando tinha de julgar um companheiro. Além disso, todos sabiam que Ele podia gostar mais de certos combatentes que de outros, ou mesmo admirar ou apreciar alguns mais que outros. Porém isso jamais influiria em nenhuma das decisões que Ele tivesse de tomar em relação aos seus prediletos. Jamais Ele lhes concederia nem mais nem menos do que merecessem. Dois exemplos ilustrativos disso eram o sentimento profundo que o Che nutria por Joel Iglesias e sua grande afeição por Guile Pardo. E, no entanto, eles não gozavam do menor privilégio em relação aos demais.

Talvez o Che confiasse mais em certos homens que em outros. Porém essa confiança nada tinha a ver com seus afetos pessoais para com eles. Ela baseava-se no valor prático que cada um houvesse demonstrado atuando na guerrilha.

Na Sierra ninguém falava mal do Che. Todos O amavam. Todos O adoravam. Ninguém se sentia tratado injustamente. Nenhum homem o responsabilizava pelo que lhe acontecia ou pudesse acontecer. Ninguém se atrevia a contar-lhe uma mentira. Confiavam nEle, no seu valor e na sua sabedoria. Era um guerrilheiro muito sensato. Estimavam-no, respeitavam-no e tratavam-no de você.

Na guerrilha, pelo que pude observar, o Che sempre foi contra o desperdício. Cuidava de cada objeto pelo valor que tinha, pelo esforço que havia custado trazê-lo até às montanhas da Sierra Maestra, quer se tratasse de balas, armas, medicamentos ou instrumentos de qualquer espécie

Lembro-me de que muitas vezes vi o Che estudando, recostado ou sentado num tronco, ou deitado na sua rede já muito velha. Gostava de fumar charuto. As vezes tomava seu mate e amiúde movimentava-se de um lado para outro no seu burro. Comumente o víamos usando o inalador contra asma.

O burro do Che foi para Ele um animal muito fiel e muito útil, que não se amedrontava por ficar sempre perto dos combates. Os canhoneios da Grande Ofensiva já haviam começado. Um dia um obus disparado pela artilharia inimiga caiu num certo local sem explodir, e alguém teve o mau alvitre de mexer nele. Alfim, o obus explodiu, atingindo o burro do Che, que estava perto. O burro ficou manco, quase cego e cheio de cicatrizes. O Che ficou contristado.

Talvez seja por tudo isso que nós, que tivemos o privilégio de conhecer o Che nas montanhas da Sierra Maestra — com sua asma constante, com seu inseparável charuto, com seu cheiro de mato e aquele uniforme de guerrilheiro sujo e rasgado, que cobria o corpo de um ser tão cheio de virtudes e possuidor do mais belo e extraordinário dos corações —, sentimo-nos endividados eternamente para com Ele, por seu exemplo e seus ensinamentos.

Naquela época, todos na Sierra já sabíamos que Ele estava fadado a ir batalhar em outras terras, pelo bem da humanidade; que seu destino final não era Cuba, mas sim a América inteira, que Cuba era apenas a primeira etapa do caminho que Ele escolhera.

Por vezes alguns se põem a pensar, com uma dose de egoísmo maior ou menor, que o Che nasceu para nós, cubanos, como se o Guerrilheiro Heróico já não houvesse transcendido todas as fronteiras. Essas ideias que acabei de expressar, eu já as havia ouvido lá nas terras do meu Oriente natal, quando menina, dos meus avós todos, que pensavam o mesmo a respeito da presença em Cuba do Generalíssimo Máximo Gómez nas guerras de independência do século XIX.

O certo é que, quando alguém começa a refletir sobre esse ir-e-vir do Che, de um extremo ao outro da nossa América Latina, tende a imaginar que é como se Ele tivesse estado a nos procurar sempre, durante anos. Na realidade o Doutor Ernesto Guevara de la Serna teve de percorrer todos os caminhos, precisou atravessar montanhas, grandes planícies e rios imensos, passando por bosques, aldeias e cidades, até chegar ao México e encontrar-se com Fidel.

Medito em toda a sua grande peregrinação até chegar a Cuba, para aprender tudo o que precisava saber. Mas o Che não vinha só; trazia consigo seus achaques. Aquele piado sempre cravado em seu peito o acompanhava pelas nossas montanhas. E nós, cubanos, como que o esperávamos há muito tempo; e lhe demos um nome; batizamo-lo de Che.

Lembro-me de que uma noite, quando já estávamos no acampamento de La Mesa, ouvi o Che falar sobre como era possível construir um mundo melhor para toda a humanidade. Do céu puríssimo da montanha, um plenilúnio magnífico banhava com sua luz prateada os montes e vales da Sierra Maestra, e ali, na casinha onde se editava El cubano libre, junto comigo, Miriam, Gionel e Ricardo, o Che revelou que o momento mais feliz da sua vida foi quando teve a sorte de conversar uma noite inteira com Fidel.

Na Sierra Maestra, o Che não falava só por palavras. Tinha também a linguagem dos seus olhos. De uns olhos intensos. De uns olhos que possuíam todos os fulgores e matizes. Além do tom suave e compassado da sua voz, o Che tinha os olhos mais brilhantes que se pudesse imaginar. Uns olhos tão reveladores, com cintilações especiais para a alegria e a ternura. As cintilações extraordinárias dos olhos de um grande guerreiro, cheio de benevolência.

Em certas ocasiões, à noite, de algum canto do acampamento onde armava sua rede, silenciosamente, o Che costumava contemplar seus combatentes. Aquele vaivém de sentinelas, as conversas a meia voz, o esforço que se fazia na cozinha para que o fogo não produzisse fumaça nem clarão. De vez em quando se podia ouvir também algum cumprimento, e o riso de algum conhecido, e o cantarolar de alguma canção em voz baixa. O Che observava os homens que Ele estava forjando; e, por sua vez, aqueles homens O estavam forjando também. Naqueles momentos podia-se captar em seus olhos um grande sentimento de admiração e orgulho pela sua querida tropa.

Sobre o comandante Ernesto Guevara, pode-se dizer que Ele era um desses seres excepcionais que abrigam em seu coração todo o respeito do mundo pela dignidade humana. Che sentia um respeito absoluto pela dignidade do homem. Porém, por sua vez, suas palavras sempre pareciam a todos muito claras, cristalinas. O Che não costumava deixar questões pendentes com ninguém. Na amizade, sobretudo quando se tratava de novas amizades, Ele avançava muito devagar, passo a passo. Talvez tenha sido essa sua peculiaridade que definiu essa relação tão especial que Ele sempre manteve com todos os combatentes da sua tropa: relação de chefe a subordinado; relação que nunca foi rompida, nem por Ele, nem por nenhum de seus homens. Em consequência disso, na tropa rebelde todos O estimavam, O adoravam e O respeitavam. Como todo grande homem que está envolvido numa guerra, a qualidade que o Comandante Che mais apreciava nos combatentes era a lealdade.

Essa mesma fidelidade revolucionária, o Che devotava ao Comandante Fidel Castro. E esse seu sentimento crescia cada vez mais, ao verificar que, graças às suas qualidades excepcionais, Fidel havia sido capaz de sublevar em luta armada todo o seu povo contra a tirania de Batista e de guiá-lo à vitória, não obstante os poderosos inimigos que então acorrentavam os destinos da nação cubana.

Em virtude da própria guerra, o Che às vezes dava a impressão de ser um homem de temperamento rude. Entretanto, quando era obrigado a agir com dureza em circunstâncias espinhosas, ninguém sofria mais que Ele próprio.

O Che, paladino da ética e da moral, paladino da austeridade e do tratamento justo, e de uma equidade a toda prova, sempre viveu tal como pensava; tais quais eram seus desejos e suas ideias. E como nada do que acontecia à sua volta lhe era alheio, interessava-se por tudo. Não só pela guerra revolucionária, como meio para o povo atingir o poder, mas também pela economia e pela política. Era capaz de dedicar sua atenção e seu talento à literatura, ao cinema, à poesia, ao xadrez, ao jornalismo, à matemática, aos idiomas, à pintura e até à música.

Em mais de uma ocasião, nas suas conversas, o Che declarou-se admirador do inexcedível cômico do cinema mexicano Mario Moreno, o popular “Cantinflas”. O Che orgulhava-se de parecer-se tanto fisicamente com aquele ator famoso, querido e apreciado por todos os povos da nossa América.

Suas preferências poéticas eram muito variadas, porém apreciava sobremaneira a obra de Nicolás Guillén. Costumava repetir de cor muitos dos poemas de Guillén. Ele, que nunca pedia nada a ninguém, não resistia à tentação de ter nas suas mãos, folhear e ler um livro de poesias. Ele, que tinha a bela qualidade de cumprir tudo o que prometia. Ele, que gostava tanto de repartir tudo por igual entre todos, um costume que estava tão arraigado em nós, cubanos, no sentido histórico mais profundo. No âmago da cultura cubana.

A arte de guerrear, de organizar e dirigir uma tropa guerrilheira, o Che aprendeu-a no acampamento, com os ensinamentos de Fidel. Só depois lhe surgiram as circunstâncias históricas mediante as quais Ele atingiria o mais alto escalão na luta revolucionária.

Em outra ocasião memorável, em La Pata de la Mesa, onde se achava o seu Comando, ouvi-o dizer que nós, cubanos, havíamos sido a sua escola, seus chefes e seus subordinados. E como era lógico, como sempre ocorreu no seio do nosso povo, Cuba acolheu-o como um de seus filhos mais amados e mais queridos, embora Ele, quando falasse com os cubanos, usasse vos em vez de tú, e nos tratasse de usted e não de tú.


Inclusão: 30/10/2023