Che em Sierra Maestra
Depoimento inédito de uma guerrilheira

Merceditas Sánchez Dotres


A escola e o hospital


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Desde o princípio, o Comando-Geral do Exército Rebelde, dirigido pelo Comandante-Chefe Fidel Castro, adotou como política a melhoria da vida material e espiritual da população camponesa nas áreas ocupadas por nossas tropas. Para tanto, dirigiu-se uma convocação ao Movimento 26 de Julho para que subissem a Sierra Maestra médicos e professores. Na nossa tropa encontrava-se o Doutor Sergio del Valle, eminente médico cubano, que desenvolveu um intenso programa de educação sanitária, visando a atender não só os guerrilheiros feridos e doentes, mas também a população camponesa e, não raro, até os inimigos feridos.

O Che havia ordenado a construção daquele hospital ali, no meio das montanhas, e ele entrou em funcionamento com a chegada dos feridos do segundo combate de Pino del Agua.

Eu era uma professora itinerante, que ia aonde estavam acampados os alunos guerrilheiros. Todo dia percorria mais de uma légua, subindo e descendo morros, para alfabetizar os combatentes. Dois dias por semana eram reservados para alfabetizar os meninos da zona na escolinha do acampamento, uma das tarefas que o Che me confiara.

O Che falou-me do médico Sergio del Valle, que naquele momento se encontrava no acampamento. Disse-me que, tão logo ele voltasse, eu deveria auxiliá-lo em algumas tarefas próprias do hospital.

Um dos companheiros a quem o Che me recomendou dar aulas foi Cristino Naranjo. Cristino tinha uma personalidade excepcional e sempre mostrou muito interesse em aprender a ler e escrever. De relance, com uma lida rápida, era capaz de aprender o que às vezes custava muito esforço a outros. Era extremamente valente em combate e, concomitantemente, um homem de grandes e nobres sentimentos. Infelizmente a morte também o levou.

Quando o Doutor Sergio del Valle voltou, depois de cumprir uma missão, e conversamos pela primeira vez, fiquei profundamente impressionada com sua pessoa, com sua simplicidade e bondade. O doutor foi a primeira pessoa que me falou de Lénin. Naquela época ele costumava ler para os doentes e feridos fragmentos de Volódia(1), livro sobre a infância de Lénin.

Nos primeiros dias, na própria atividade de alfabetizar os combatentes e nas visitas que fazia ao hospital e à casa de Polo e Juanita, tive a honra de conhecer muitos outros companheiros. Conheci Joel Iglesias, que era quase um menino e estava muito ferido no hospital. Guardo recordações muito gratas de tantos e tantos queridos companheiros: de Joel Pardo, de Rodolfo Vázquez, de Alfonso Zayas e muitos outros.

Por força das minhas funções como professora, eu percorria todos os destacamentos guerrilheiros, nos diferentes pontos de acampamento da tropa do Che, que estavam disseminados por quase todo o vale de La Mesa. Por isso sempre comia muito bem, pois todos sempre se preocupavam em guardar alguma coisa para mim. Porém a comida mais saborosa era a do destacamento de Cristino Naranjo. Ele mesmo a preparava.

Quanto ao tratamento, devo dizer que todo mundo me recebia muito bem, porém alguns companheiros eram mais gentis que outros. Isso se devia a que minha tarefa não era do agrado de alguns: ensinar a ler e escrever jovens camponeses que nos combates se portavam como leões.

De todo modo, a guerrilha inteira sentia um profundo respeito pelas três ou quatro mulheres que estavam no acampamento do Che. Embora se exercesse uma vigilância sobre cada uma de nós, mulheres, diríamos que um controle guerrilheiro, no cumprimento de nossas tarefas deslocávamo-nos sozinhas, a todos os lugares, por aquelas paragens agrestes, e nunca tivemos de lamentar nenhuma dificuldade, porque conseguimos dominar a montanha.

Como já disse, uma de minhas obrigações era visitar o hospital, não tanto para ensinar os combatentes a ler e escrever, mas sim para conversar um pouco com os feridos. Algumas noites ficava ali para dormir, pois normalmente, sobretudo quando não se tinha travado nenhum combate recente, era possível encontrar uma cama desocupada.

O hospital que o Che mandara erigir era um barracão de madeira e zinco, construído pelo carpinteiro Agustín Méndez Sierra com o auxílio de Polo Torres e outros soldados rebeldes. O piso era de barro, muito bem batido. O instrumental médico permanecia sempre na mochila do doutor, de prontidão, para o caso de ele ter de deslocar-se com urgência a outra zona a fim de atender algum ferido.

No hospital havia um fogão e outros apetrechos de cozinha. Havia sete ou oito camas para os gravemente feridos. Os feridos menos graves dormiam em suas próprias redes. E quando as camas não eram suficientes para todos, colocavam-se pranchões no chão para os feridos poderem descansar, restabelecer-se e dormir.

Como os remédios eram muito escassos, o Doutor del Valle passou a ser conhecido como “Doutor Kamukín” Kamukín era um antidiarreico que ele costumava receitar para todas as doenças, salvo quando se tratava de um ferido.

Depois dos combates, a situação no hospital se tomava muito difícil. Não por falta de médicos competentes, mas sim por causa da falta de anestéticos. Os feridos eram operados à força, sem nenhum tipo de anestesia, e na hora da cirurgia esses homens sofriam muito.


Notas de rodapé:

(1) Volódia é o diminutivo russo de Vladimir. O nome verdadeiro de Lénin era Vladímir llitch Ulyánov. Lénin nasceu em Simbirsk, Rússia, em 1870, e faleceu em Górki, em 1924. Foi a alma da Revolução de Outubro de 1917. Complementou a obra de Karl Marx e Friedrich Engels com análises prolimdas. Deixou 55 títulos para a posteridade. Entre suas obras principais contam-se: “O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”. “O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”. “O Programa Militar da Revolução Proletária”, “O Estado e a Revolução”, “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky” e “Que Fazer?”. (Nota do revisor) (retornar ao texto)

Inclusão: 30/10/2023