Che em Sierra Maestra
Depoimento inédito de uma guerrilheira

Merceditas Sánchez Dotres


Duas historietas engraçadas


capa

No caminho para a Sierra Maestra, perdi os óculos escuros, presente da minha mãe, e, ao chegar ao acampamento de La Mesa, percebi que havia perdido também a escova de dentes.

Assim foi que, certa vez, encontrando-me na casa onde colocavam os feridos do combate de Marverde, observei que um deles estava escovando os dentes. Era um guerrilheiro muito jovem, de nome Roberto Fajardo. Era muito alto e corpulento e, embora houvesse nascido e se criado numa zona rural, notava-se que sempre fora bem alimentado.

Um dia eu passei perguntando quem já sabia ler e escrever. Roberto Fajardo respondeu que já havia frequentado a escola. Olhei-o bem dentro dos olhos e, diante do seu olhar tão inteligente, não tive dúvidas da sua sinceridade. Por outro lado, achei-o tão forte, tão saudável, que não me pude conter e perguntei-lhe por que razão se encontrava naquele pequeno hospital.

Não me respondeu de imediato, e eu me sentei na sua frente, paciente, implacável, esperando que me dissesse como e onde tinha sido ferido, já que seu corpo não apresentava nenhum sinal visível de ferimento. (É preciso ter em mente que este diálogo se deu entre dois jovens que não haviam chegado aos 20 anos.) Permanecemos assim um certo tempo, até que Roberto fez um movimento com a cabeça e confessou-me:

— Professora, fui ferido numa nádega. Não posso caminhar e não tenho outra alternativa a não ser sentar-me assim de lado.

Depois dessa revelação, levantei-me e saí do barracão onde os feridos estavam, à procura de Cristino Naranjo, para que me servisse o almoço. Eu almoçava sempre depois do tenente Joel Iglesias, que também estava ferido.

Poucos dias depois daquela conversa, vi de novo Roberto Fajardo escovando os dentes com aquela maravilhosa escova, à margem do riacho; e, o cúmulo, ele tinha até pasta de dentes!

Senti um aperto no coração e, com o melhor dos sorrisos que podia exibir, o sorriso mais amistoso que alguém pudesse apresentar, aproximei-me e pedi-lhe humildemente:

— Por favor, Roberto, empreste-me a sua escova...

Ele olhou-me longamente e, um tanto indeciso, disse:

— Está bem, mas, depois que eu terminar de usá-la, a senhora lave a boca.

Olhei-o de novo, e ele pôs um ar de indiferença. Então lhe sugeri:

— Que tal pormos a escova para secar em cima de uma pedra, antes de eu escovar os dentes?

Ele concordou, e a partir desse dia, toda vez que ele escovava os dentes, eu esperava com a devida paciência que a escova secasse ao sol para poder usá-la.

Esse hábito cotidiano, esse compromisso, essa necessidade que eu tinha de escovar os dentes passou a manter Roberto como que preso a mim, até o dia em que ele começou a preparar-se para ir ao combate de Pino del Agua. As tropas começaram a mobilizar-se, e quando Roberto me procurou para despedir-se e me perguntou o que eu desejava que ele me trouxesse do combate, eu lhe disse simplesmente que queria uma escova de dentes. E ele partiu preocupado em como cumprir aquela promessa.

Nesse segundo combate de Pino del Agua seria testada pela primeira vez uma arma que o Che inventara. Tratava-se de um fuzil adaptado para lançar uma bomba, uma lata cheia de TNT. E Roberto fora escolhido para experimentar aquele artefato que o Che havia montado com tanto zelo e paixão e que todos já chamavam o M-26-7.

Porém, antes desse combate, aconteceu um incidente relacionado à história da escova de dentes. Roberto tinha um irmão que se encontrava combatendo na tropa de Fidel. Era um rapaz belo como o sol, forte como um touro e com uma cabeleira mais bonita que a juba de um leão. Seu aspecto era realmente impressionante. Quando o conheci, apresentei-me:

— Eu sou Carmencita!

E ele me retrucou:

— Sim, já a conheço. Você não é aquela que escova os dentes todo dia com a escova do meu irmão?

Fiquei vermelha como um tomate, sem saber o que fazer ou dizer. Eu acreditava piamente que aquele negócio da escova de dentes era um segredo entre Roberto e mim, e agora eu descobria que toda a Sierra e a planície sabiam do assunto.

★ ★ ★

Foi também por esses dias que conheci o tenente Vilo Acuña, aquele que muitos anos depois seria o “Joaquín” na guerrilha internacionalista do Che na Bolívia. Conheci-o na margem do rio La Mesa. Eu vinha do acampamento, da casa onde se confeccionava o jornal El cubano libre, quando, de repente, no caminho, deparei com um camponês de cara quarada, olhos escuros e cabelo muito crespo.

Paramos e cumprimentamo-nos. Demo-nos as mãos. Ele observou-me, e eu, em sinal de respeito, baixei os olhos em direção aos seus pés. Então constatei que ele estava usando sapatos de couro cru, que são muito duros e machucam os pés, e sem meias.

Levantei os olhos e encarei-o, e como sabia que aquele caminho onde estávamos desembocava em minha casa, tive a curiosidade de saber para onde estava indo.

Ele respondeu-me que ia banhar-se e lavar sua roupa. Não muito longe dali o rio formava uma piscina natural profunda e fria.

— Bem — disse-lhe, despedindo-me —, já me vou.

E ele:

— Aonde vai?

— A minha escolinha.

Então ele me disse que, quando terminasse de se banhar e lavar sua roupa, daria uma passada na escolinha. Assenti e disse-lhe que o estaria esperando.

Entretanto permanecemos ali, imóveis; e então começamos uma longa conversa. Ele pediu-me que não o tratasse de senhor; e eu, em contrapartida, me interessei em saber que idade tinha. Disse-me que já tinha completado 28 anos. Estranhei muito, pois me parecia beirar já os 40. Ao término da conversa, em vez de continuar até a escola, retomei ao acampamento.

No caminho, fiquei a pensar em Vilo, nos seus sapatos desconfortáveis e naquele seu aspecto tão avelhentado, certamente resultante da vida dura que devia ter levado naquelas montanhas. Foi então que resolvi dar-lhe um presente.

Fui buscar um par de meias que guardava na minha mochila. Eram umas meias masculinas que eu trouxera para a Sierra, mas que nunca usara. Estavam novas em folha. Arrepiei caminho e esperei-o na casa da escolinha.

Vilo apareceu cerca de uma hora depois. Vinha do banho, com a roupa úmida e meio colada ao corpo. Trazia nas mãos aquelas botas de material duro, e eu disse-lhe sem preâmbulo:

— Quero lhe dar um presente, tenente.

Pus em suas mãos cálidas o par de meias; ele calçou-as imediatamente, levantou a cabeça e disse-me:

— Carmen, é a primeira vez na vida que uso um par de meias!


Inclusão: 30/10/2023