Che em Sierra Maestra
Depoimento inédito de uma guerrilheira

Merceditas Sánchez Dotres


No vale de La Mesa


capa

Poucos dias depois parti para o acampamento de La Mesa O Che mandou buscar-me por um homem baixinho chamado Mendoza, que logo cobiçou a minha capa impermeável. Como nas montanhas da Sierra Maestra chove quase o tempo todo, sobretudo de tarde e de noite, assim que Mendoza descobriu a capa tentou convencer-me a dar-lha. Argumentou que aquela capa era muito útil para ficar de sentinela.

Não gostei de Mendoza ter me pedido a capa, e, como não lha dei, quando o Che perguntou quanto tempo eu havia demorado para ir do acampamento da 34 a El Hombrito, Mendoza respondeu-lhe: doze horas.

Fiquei chocada por Mendoza ter multiplicado por dois o número de horas da caminhada. Mas não foi só isso. Notei que, de todos os meus pertences, essa capa impermeável com que eu subira a Sierra começou a ser ambicionada secretamente por todos os guerrilheiros de estatura entre pequena e média. Observavam-na com cupidez, e compreendi que aquilo era um caso perdido.

O Che, como se não tivesse percebido, resolveu o assunto com uma palavra apenas:

— Acontece que você não fica de sentinela.

A partir daí a capa passou a ser utilizada pelos homens que montavam guarda, quase sempre debaixo de chuva.

Naquele primeiro dia com Mendoza, só consegui chegar ao acampamento de El Hombrito. Demorei realmente umas seis horas para chegar, por aquelas veredas, e atalhos, e ribanceiras da montanha. Mas ainda faltava um bom trecho até chegar a La Pata de La Mesa, onde ficava o comando do Che.

Naquela ocasião o acampamento do pelotão do capitão Camilo Cienfuegos encontrava-se em El Hombrito, no topo da colina. El Hombrito sediara o primeiro acampamento do Che nessa zona, mas agora era como um posto avançado da Coluna nº 4, guarnecido pelos homens de Camilo.

Nessa noite dormi no acampamento de Camilo. Em El Hombrito havia apenas uma casa, onde todo o pelotão armava suas redes, com exceção dos guerrilheiros que ficavam de sentinela.

A cozinha do acampamento era ao ar livre, não longe da casa, embora naqueles dias o pelotão de Camilo comesse enlatados que chegavam à Sierra, vindos da planície através das redes clandestinas de abastecimento.

Che era muito previdente e havia organizado no acampamento de La Mesa um conjunto de instalações que eram de extrema utilidade para a guerrilha. De modo geral, em dezembro de 1957, a sua coluna estava distribuída da seguinte maneira:

Naquele vale estava instalado também o Comando do Che, guarnecido por uma dezena de guerrilheiros. Ali ficava igualmente o hospital, protegido por um destacamento de guerrilheiros, chefiados por Ildefonso Figueredo (“El Chino”), e a sapataria, onde se fabricavam os sapatos e botas para os combatentes e outros artigos de couro utilizados na guerra. Em caso de necessidade, a equipe de sapateiros também costumava guerrear.

Além disso, ali ficava a casa de Polo Torres, o dono do sítio La Mesa. A função de Polo Torres era cuidar das plantações e dos animais que abasteciam a tropa. A casa de Polo e Juanita também acolhia Fidel, quando o Chefe da Revolução, por alguma contingência da guerra, tinha de ir àquele lugar ou passar por ele. Ali também eram atendidos muitos outros companheiros que visitavam o acampamento do Che.

O certo é que, quando o Che descobriu o vale de La Mesa, o camponês Polo Torres já se encontrava ali há muito tempo.

O sítio de Polo era inteiramente cultivado, tanto que era capaz de sustentar toda uma guerrilha. Conta-se, e é verdade, que quando o Che se encontrou pela primeira vez com o “capitão descalço”, como Polo era conhecido na guerrilha, o camponês já havia ocupado aquele lugar há vários anos. Conta-se também que, naquela primeira conversa, Polo disse-lhe que o esperava há dez anos e que por isso mantinha todos aqueles campos semeados para alimentar seus combatentes.

O sítio de Polo estava plantado com bananeiras, malangas, macaxeira, batata-doce e café. Tinha colmeias, um pouco de cana e muitos animais de corte e leiteiros, carneiros e galináceos. Em dez anos, Polo nunca retirou sequer uma arroba de gêneros para vender nos povoados ou cidades próximas.

No vale havia outra instalação, o depósito de armas, cuja localização ninguém conhecia ao certo, com exceção do Che. A manutenção da armaria era feita por dois guerrilheiros-armeiros, e ali morava também a esposa de um deles.

Havia também a casa de Tranquilino, onde passou a viver Luis Orlando Rodríguez, que fora diretor de um dos jornais mais importantes de Cuba e há algum tempo estava na guerrilha.

Por fim, havia o pelotão da retaguarda, que nunca se sabia onde realmente se encontrava, pelo menos eu nunca soube. Acho que se tratava de uma volante e tenho a impressão de que era comandado por Ramiro Valdés, que era também o segundo chefe da Coluna.

Ramiro Valdés havia retomado a Cuba no iate “Granma” com Fidel e participara do assalto ao Quartel Moncada. Foi um dos homens que sobreviveram à derrota de Alegria de Pio e um dos doze que se juntaram ao Chefe da Revolução Cubana.

Ramiro era magro, muito ágil e considerado por todos um combatente de grande coragem. Tinha um grande valor pessoal e, não obstante, aparentava ser muito pacífico. Era inteligente e muito estudioso. Naquela época, ali na serra, estava aprendendo francês sozinho, com o auxílio de um dicionário. Tinha sempre uma aparência muito boa. Anos depois, quando vi a fotografia de Félix Edmundowich Derchinski, imediatamente me veio à lembrança a sua imagem.

Na tropa corria o boato de que aquele pelotão da retaguarda, comandado por Ramiro, algumas vezes deslocava-se até onde se encontrava o Comando-Geral do Exército Rebelde, a Coluna nº 1, que obedecia diretamente a Fidel.

O vale de La Mesa, onde se encontrava o acampamento do Che, era uma das paragens mais belas do mundo. Situava-se entre montanhas de difícil acesso e era atravessado pelo rio La Mesa, de águas limpas, claras e puras, que podiam ser bebidas sem receio de contrair alguma doença. Em virtude da sua altitude e das características da sua posição geográfica, no ponto mais recôndito da cadeia de montanhas da Sierra Maestra, o vale era dominado por um microclima muito especial. Geralmente, de dia, a temperatura oscilava entre 14°C e 17°C, e de noite, entre 8°C e 12°C.

La Mesa apresentava uma vegetação luxuriante, e quando o sol aparecia, era alto e esplendoroso, como uma luz que iluminava, mas não aquecia. Para se ter uma ideia de quão intricado é esse lugar, até hoje ele é uma das poucas regiões de Cuba onde não existem vias de acesso para veículos motorizados, apesar de toda a tecnologia modema. Nem mesmo helicópteros podem aterrissar em La Mesa. A floresta pluvial fechada do vale impede-o. Isso é impossível até mesmo nas margens do rio, pois elas estão cheias de grandes pedras de até três ou quatro metros de altura, e quando se precisa atravessar o rio, é preciso subir e descer por esses matacões.

O vale escolhido pelo Che era (e ainda é) um lugar verdadeiramente inacessível, ao qual só se pode chegar a pé, ou em burros, ou em cavalos bem treinados, pois para entrar naquelas paragens é preciso deslizar pelas vertentes da montanha ou seguir pelo meio do rio. Nesse vale de La Mesa, o acampamento do Che nunca pôde ser tomado nem atacado por forças inimigas. Esse pequeno e belo vale intramontano nunca pôde ser assediado pelas tropas da tirania. Além disso, quando o Che decidiu instalar-se ali, a guerrilha já podia defender-se e tornar aquele acampamento um local inexpugnável.

Esse foi o vale escolhido pelo Che para estabelecer o seu Comando. Antes, quando o acampamento se localizava em El Hombrito, Che chegou a construir ali até uma padaria. Mandou até fincar um enorme mastro, no qual foi içada uma bandeira do Movimento 26 de Julho, para que, de todos os lugares próximos da Sierra, inclusive das zonas da planície, o exército soubesse onde Ele se encontrava e se sentisse provocado, desafiado a atacá-lo, a combatê-lo.

Isso significa que, quando o Che escolheu o vale de La Mesa para fixar seu acampamento, não foi com o intuito de ocultar do inimigo o lugar onde suas tropas se encontravam, mas, ao contrário, foi para incitá-lo a sair à sua procura e, antes de ele receber o embate das forças rebeldes, obrigá-lo a sofrer todos os rigores que aquelas montanhas agrestes e perigosas impunham.

Numa análise histórica, não se pode desprezar as operações de guerra realizadas então pelo exército da ditadura, com o apoio logístico dos Estados Unidos. Muitas vezes as forças de Batista fizeram incursões à procura do Che. Porém sua arma principal, a mais perigosa, a mais persistente, a mais destruidora e temível foram os bombardeios e a metralha constantes da aviação. As ondas de choque das bombas que nós, combatentes rebeldes, tivemos de suportar nas nossas zonas de operação, além dos perigos de morte, afetaram a saúde de muitos de nós.

Os aprovisionamentos que chegavam ao vale de La Mesa eram trazidos das redondezas de Bayamo, por tropas especiais dirigidas por guerrilheiros hábeis e experientes, camponeses da própria zona, peritos em evadir quartéis, cercos e pontos de vistoria do inimigo, homens de um imenso valor pessoal.

A logística da tropa do Che tinha como atribuição garantir comida, sal, açúcar, fumo e cigarros, pilhas para rádios, papel para o jomal da guerrilha, instrumentos de carpintaria, sapataria e lavoura, roupas e botas para a tropa, cobertores de lã e casacos. Essas redes de abastecimento eram dirigidas por um homem conhecido por todos como “O Rei da Bóia”, cujo nome real era Aristides Guerra. Todavia, o mais precioso de todos os abastecimentos era o fornecido pelas redes de informação. Era preciso saber, a todo momento, onde se encontravam as tropas da tirania, os nomes e as características dos seus principais chefes e o estado moral dessas tropas; saber se o inimigo era dado a beber e apostar nas rinhas de galos; e que famílias dos pequenos povoados adjacentes aos nossos territórios faziam amizade com a tropa de Batista.

As famílias que estabeleciam relacionamento com o exército dividiam-se em duas classes: as que desejavam apenas a amizade das tropas e as que colhiam informações sobre as tropas de Batista.

Desde o início o Che sempre foi um chefe valente, inteligente e organizado. Em todos os momentos procurou enfrentar o exército da ditadura no plano militar. Para tanto, elaborou toda uma estratégia, exposta no seu livro A Guerra de Guerrilhas. A experiência e os conhecimentos contidos nessa obra foram obtidos por Ele nos longos meses que permaneceu ao lado de Fidel.

Rapidamente o Che organizou a tropa que Fidel lhe destinou, seguindo o padrão da Coluna nº 1, e, como era lógico, introduziu algumas modificações, adaptando-a ao território onde deveria operar e ao inimigo que deveria combater. As armas, segundo as instruções de Fidel, deviam ser arrebatadas ao inimigo em combate, embora de vez em quando chegasse ajuda do Movimento Clandestino 26 de Julho.

A força combativa da tropa do Che residia na própria capacidade de enfrentar o inimigo. Cumpre salientar que todos os homens que acompanhavam o Che, absolutamente todos, eram combatentes extremamente aguerridos.

Durante os longos meses de guerrilha, o Che compreendeu também que não se tratava de uma luta apenas no campo militar, mas no campo ideológico também. Foi por isso que Ele, orientado por Fidel, desenvolveu um grande esforço para obter um gerador de eletricidade, a fim de instalar uma emissora de rádio. O Che também mandou trazer um mimeógrafo e uma máquina de escrever para editar o jornal da guerrilha. Seus esforços ingentes para dispor de meios de comunicação com o povo cubano visavam a tomar conhecida de todos não só a presença de Fidel na serra, mas também seu programa revolucionário. Para compreender essa época, é imprescindível recorrer ao livro A História me Absolverá, escrito por Fidel e que contém um programa social importante e rico que a Revolução triunfante cumpriu plenamente.

Algum tempo depois que entrei na guerrilha, o Che me incumbiu de trabalhar na casa onde se imprimia o jornal El cubano libre. Ele costumava visitar essa casa, de dia ou de noite. Na casa do jornal moravam dois jovens universitários e duas mulheres, uma das quais era eu, a professora.

Era uma casa toda de madeira com teto de zinco — a melhor vivenda de todo o vale de La Mesa — que tinha um vestíbulo, um quarto grande e uma espécie de sala grande, toda de piso de madeira, e era montada sobre grandes toros à margem do rio, quase na saída do acampamento.

A cozinha ficava atrás da casa. Era uma choça de piso de terra e sem paredes, nada mais que um teto de palha sustentado por quatro estacas, mas que constituía uma boa cobertura. Detrás dessa choça que fazia as vezes de cozinha passava um riacho que nos abastecia de água.

A casa havia sido abandonada antes de ser ocupada por nós. Ficava próximo do sítio de Polo Torres, e com certeza o dono resolveu afastar-se daquele lugar quando toda aquela zona se transformou em acampamento de guerrilheiros. Nessa casa, além de mim, viviam Gionel Rodríguez e Ricardo Medina, os dois universitários que havia alguns meses estavam na guerrilha. Gionel tinha ideias muito avançadas. Havia lido muito e pertencia a Juventude Socialista. Ali morava também Miriam, uma moça que chegou à Sierra para ficar e fazer parte do grupo que naquela época preparava e imprimia o jornal El cubano libre.

O Che, que era um perfeccionista em tudo, tinha um zelo todo especial por esse jornal. Custava um esforço ingente e era muito arriscado transportar para cima da serra tudo o que a guerrilha precisava, e isso se aplicava também ao material com que se imprimia o jornal. O mimeógrafo e a máquina de escrever vieram em lombo de burro, e pela mesma via chegavam constantemente provisões de papel. O Che valorizava ao extremo o papel de impressão de El cubano libre e reconhecia todo o sacrifício que custava levá-lo até a zona montanhosa de La Mesa Um dia, indo ao local que utilizávamos como latrina, do outro lado do riacho, dentro dum matagal, verificou que alguém havia usado folhas de papel do jornal para suas necessidades pessoais. Ficou furioso.

Passou o dia muito aborrecido; julgou que tínhamos sido nós, as duas mulheres, que tínhamos estragado aquele papel. Queria saber a todo custo quem fora o culpado. A verdade é que nunca se soube quem foi o responsável. Contudo, o Che tratou aquele assunto com muita delicadeza e fez-nos ver quão complicado e dificultoso era para a clandestinidade garantir as remessas de papel da planície aos alcantis da serra, e o esforço que a rede de abastecimentos da Coluna tinha de fazer para levá-lo até La Mesa. A partir daí, que eu saiba, ninguém nunca mais utilizou-se daquele papel para suas necessidades fisiológicas.

Normalmente o Che ia à casa de El cubano libre duas vezes por semana. Chegava ao meio-dia e só partia no dia seguinte depois do almoço. Durante a semana o Che remetia os artigos para publicação, creio que revisados e muitas vezes redigidos pelo próprio Fidel. Isso era lógico, porque o Che era o segundo comandante da Sierra e combinava tudo com Fidel.

Che vinha àquela casa e sentia prazer em ver como Gionel datilografava e preparava os estênceis para a impressão. O Che era uma pessoa muito meticulosa em qualquer atividade. Era uma coisa que demonstrava a todo momento. Revisava cada estêncil. Apreciava-o, avaliava-o. Depois ficava na casa do jornal até o outro dia pela manhã, porque, como naquela casa não havia luz de noite, começava-se a imprimir o jornal de manhã, e enquanto o primeiro exemplar não estivesse pronto e impresso, e Ele não o tivesse lido, não ia embora.

Portanto, o Che era o responsável pelo conteúdo do jornal, pelo menos assim me parecia. Gionel e Ricardo o imprimiam, e Miriam e eu o dobrávamos, paginávamos, grampeávamos, contávamos e empilhávamos, se bem que esta última atividade era feita principalmente por ela.

Miriam era uma moça da província de Oriente, da zona de Victoria de Las Tunas. Chegou à Sierra com a falecida Oniria Gutiérrez, cofundadora da Coluna nº 1 e da III Frente Oriental Mario Muñoz Monroy. Elas vieram para a Sierra Maestra, segundo me contaram, acompanhando o Doutor Armando Hart e Felipe Pazos; porém, quando eles já estavam para retomar à planície, Oniria deu um jeito para integrar-se à tropa rebelde. Cumpre salientar que naquele momento, excluindo Juanita, havia quatro mulheres incorporadas à guerrilha do Che. Creio que fui a sexta mulher a ingressar na tropa rebelde, na Sierra Maestra.

Certa vez, quando a tropa de Fidel chegou em visita ao acampamento de La Mesa, eu conheci “Teté” Puebla, uma moça que já estava combatendo há vários meses. Teté era muito linda, com um jeito de falar bem peculiar que me lembrava minhas tias, lá na fazenda Dos Rios. Tinha um cabelo muito preto e muito brilhante e estava sempre muito arrumada. Andava sempre com um revólver na cintura. Perguntei-lhe qual era a sua idade, e ela disse-me que tinha 17 anos e que era de Media Luna, na região de Manzanillo. Calculei que ela devia ser a segunda ou terceira mulher que havia ingressado permanentemente na tropa rebelde, e, assim sendo, eu devia ser a sexta. Dentre todas nós, mulheres, Teté foi a única que alcançou o posto de general. Por sua grande coragem, em meio à Grande Ofensiva, foi ela quem, em nome do Exército Rebelde, negociou uma trégua ou a rendição de uma tropa do exército de Batista que estava cercada.

Indubitavelmente, isso foi uma grande desmoralização para o inimigo.

O Che costumava falar muito com Gionel e Ricardo, enquanto eu e Miriam apenas escutávamos. Falavam da guerra, de história, de política, de economia, de temas culturais,...; e como Ele era muito exigente, costumava pedir contas aos rapazes do estado do mimeógrafo, da máquina de escrever e dos livros que havia deixado na casa, sobretudo daqueles dois seus dois preciosos tomos de O Capital, de Karl Marx

Certa vez, como nem Gionel nem Ricardo nunca me haviam explicado nada sobre Karl Marx, perguntei ao Che:

Che, quem é esse tal de Karl Marx?

Seus olhos brilharam, sorriu e, muito maliciosamente, respondeu:

— É um amigo meu...

Senti em suas palavras um tom de brincadeira, com, talvez, uma ponta de zombaria, e por isso me ofendi. Decidi então nunca abrir aqueles grandes volumes encadernados com páginas de rosto escuras e, assim, nunca ficaria sabendo o que escrevera aquele amigo do Che.

Mas a coisa não ia ficar assim. Numa das vezes que o Che veio à casa do jornal, eu, para irritá-lo, apanhei aqueles dois livraços do seu amigo Marx, pu-los um sobre o outro e sentei- me em cima deles. Ele ficou muito zangado; nunca o vira tão furioso, nem quando ocorreu a história dos papéis do jornal.

Na casa do jornal, o Che costumava conversar com cada um de nós. Com referência a mim, Ele interessava-se em saber quais alunos, dentre os que me havia recomendado, relutavam em aprender a ler e escrever; e se os rapazes me incomodavam muito pedindo-me que lhes escrevesse cartas para algum parente ou amigo.

Eu, por minha vez, queixava-me da atitude de Rodolfo Vázquez, que não fazia nenhum esforço para aprender a ler e escrever; e também de Juanita, mulher de Polo Torres, que não o deixava estudar. Quanto aos outros alunos, dizia-lhe que Joel Iglesias sabia muita história de Cuba; que Emiliano Reyes (morto mais tarde em combate) ensinava matemática a Joel, que eu ensinava leitura a Joel, e ele lia devagar, mas muito bem; que Cristino Naranjo era um bom aluno; e que os meninos camponeses ficavam muito alegres quando vinham ao acampamento assistir às aulas. E que, com relação às cartas que os combatentes me pediam que escrevesse, todas eram cartas de amor, destinadas às suas noivas, que viviam em povoados próximos; e que esses rapazes costumavam enviar recados verbais à tropa de Fidel por intermédio do “Rápido”.

O Rápido era um serviço de estafetas que eram capazes de correr, sem parar um só instante, em poucas horas, de La Plata até o vale de La Mesa. Tal era o sistema de comunicação utilizado entre as tropas de Fidel e o Che. Quase ninguém sabia os nomes desses guerrilheiros; por isso, todos lhes davam o nome genérico de “Rápido”.

Geralmente os Rápidos eram homens analfabetos que levavam os recados verbais da tropa. As comunicações entre Fidel e o Che eram dadas somente por escrito. Parece que a ordem que recebiam era, em caso de perigo de caírem nas mãos do inimigo, comerem a mensagem, cujo conteúdo desconheciam por não saberem ler.

O Che nunca trazia sua rede quando vinha à casa do jornal, e eu ou Miriam lhe emprestávamos nossa cama e dormíamos nas nossas redes. Chegava com sua pistola, seu fuzil e seu uniforme surrado; vinha sempre sozinho, com seu inalador contra asma, sua cuia e bombilha de chimarrão, e os versos de Neruda, com os quais costumava encerrar a tertúlia noturna.

Recordo que Miriam sempre queria recitar “Los zapatitos de Rosa”, de José Martí. Miriam era uma moça muito sensível e muito devotada e cantava muito bem.

Hoje, quando penso naquelas reuniões, naquela casa iluminada por um candeeiro, sinto que éramos simplesmente cinco jovens, três rapazes e duas moças. E participar daquelas palestras culturais com o Che a tomar mate (nós tomávamos café serrano) era um deleite, pela oportunidade que tínhamos de passar momentos agradáveis falando de literatura no meio daquelas montanhas ermas.

Defronte da casa do jornal realizavam-se os exercícios de tiro de todo o acampamento, dirigidos por “Chino” Figueredo. Nas tertúlias também se falava desses exercícios de tiro e de outros assuntos relacionados com as armas que o exército de Batista possuía.

Toda vez que o Che estava para chegar à casa do jornal, Gionel sabia-o de antemão. Sabia o dia e a hora em que chegaria, pois nessas ocasiões sempre mandava Miriam cozinhar. Normalmente quem cozinhava para nós era ela, mas, quando o Che estava para chegar, a moça punha um grande esmero na sua culinária, para que a comida ficasse o mais gostosa possível.

Hoje lamento muito não ter estado na casinha do jornal todas as vezes que o Che aparecia. Muitas vezes não me era possível ficar, porque eu tinha obrigações a cumprir no hospital. Eu dava aulas de leitura aos combatentes feridos e ajudava o Doutor Sergio del Valle. No hospital também se realizavam tertúlias com os feridos, com a leitura de textos e tudo o mais. E era o Doutor del Valle quem conferia a essas leituras um significado especial. Tinha uma bela entonação e, sempre que começava a ler alguma coisa para os feridos, sua boa dicção lembrava-me os famosos leitores de tabacaria. O Doutor Sergio também declamava poemas muito bem. Fazia isso quase tão bem quanto “El Tigre”, meu pai, que militou com Guiteras na Revolução de 30 e com quem aprendi tantas histórias e lendas.


Inclusão: 30/10/2023