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Na Sierra Maestra
O destacamento do tenente Alcibeades Bermúdez era formado por homens muito jovens. Bem uniformizados, bem calçados e bem armados. Isso deu-me a impressão de que todo o exército guerrilheiro de Fidel Castro tinha esse mesmo padrão, que todos estavam bem providos de tudo.
Dos três civis, Nando Chacón era o mais corpulento e também caminhava com muita dificuldade. Aquele grupo de Alcibeades Bermúdez era composto essencialmente por camponeses, e todos iam muito carregados, com fuzis, cartucheiras, balas, cantis e enormes mochilas nas costas.
Desde o primeiro momento Alcibeades pareceu-me um homem muito inteligente, muito educado e muito cortês. Não me fez nenhuma ou quase nenhuma pergunta; não sei se agiu assim com os outros também.
Íamos caminhando montanha acima, já ao anoitecer, atravessando cafezais. Nos primeiros dias que andei com a tropa e Alcibeades, não compreendia bem por que avançávamos tão devagar. Mas depois percebi que ele fazia isso em consideração a Nando Chacón e Lidia, que tinham um passo lento. Alcibeades ajustava o passo do seu destacamento ao nosso.
Caminhamos a noite inteira e, ao amanhecer, fizemos uma parada e deitamo-nos para dormir dentro de um cafezal. E assim continuamos andando pelas montanhas com a tropa de Alcibeades por uns três ou quatro dias. Caminhávamos de noite e dormíamos de dia. Não cozinhávamos. Comíamos queijo, biscoitos, sardinhas e leite condensado. No terceiro dia acampamos dentro de um cafezal. E foi ali que nos deram a primeira comida cozida da nossa caminhada. A refeição foi trazida da casa de um camponês: porco assado, arroz e outros alimentos. Foi a primeira vez que provei chopo, uma variedade da fruta malanga, e bananas marteñas, também chamadas fongos.
Passamos a terceira noite ali, naquele cafezal, e na manhã seguinte começamos a caminhar em pleno dia. Perguntei a Alcibeades por que agora estávamos caminhando de dia, e ele respondeu-me que era porque já estávamos em território dominado pelos rebeldes.
Era o dia 24 de dezembro de 1957, e à tardinha chegamos a uma casa de camponeses onde se estava comemorando o Natal. A casa era de madeira e zinco, com o piso cimentado. E pareceu-me muito interessante a recepção que nos deram, não só os donos da casa como também todas as pessoas que se encontravam naquele lugar. Ninguém nos perguntou nada, nem nossos nomes, nem donde vínhamos, nem aonde íamos.
Estávamos em plena Sierra Maestra, e nenhum de nós disse como se chamava, embora nos tratássemos como se fôssemos velhos amigos. Naquela casa ofereceram-nos uma comida excelente: congrí oriental, uma grande porção de porco, chopo cozido e café.
Ali todos nos trataram com muito carinho, como se nos tivéssemos conhecido a vida toda, embora na realidade ninguém soubesse nada uns dos outros. Era como se algo muito profundo e muito grande nos unisse. Era como se eu tivesse chegado à minha casa. Como se tivesse chegado à melhor paragem da Terra, lugar mais bonito, e uma amizade eterna nos unisse todos.
Ali a única pessoa que conheciam era Alcibeades, que chamavam de tenente. Mesmo com toda aquela hospitalidade cordial não conseguimos entrosar o nosso grupo com eles. Foi algo um tanto instintivo: não conseguimos nos integrar aos membros da casa, embora ninguém no-lo tivesse ordenado.
Depois de comermos, dançamos duas ou três músicas, tocadas por um rádio de pilhas, naquela sala iluminada por dois candeeiros. Despedimo-nos e sem tardança nos embrenhamos nos cafezais próximos.
Na casa havia um violeiro e pessoas com maracás e clavicórdios; uma espécie de pequeno conjunto musical campestre. Assim que saímos do lugar, o conjunto começou a tocar.
Enquanto caminhávamos, ouvíamos aquela música. Isso durou talvez mais de duas horas, até que a música se perdeu na distância. Alcibeades ordenou uma parada.
Enquanto permanecemos naquela casa, todos nos mantivemos bem perto da porta de entrada e das janelas, agrupados; e ao sairmos da casa, ninguém foi até a porta despedir-se de nós, acho que para não procurar saber o rumo que tomava a pequena tropa do tenente Alcibeades Bermúdez. Naquela casa, pela primeira vez vi pratos de louça na Sierra. Não voltaria a ver pratos de louça senão meses depois, quando iniciamos a invasão até as zonas cafeeiras do leste do Pico Turquino, perto da cidade de Santiago de Cuba, junto com o que seria a III Frente Rebelde Mario Muñoz Monroy, chefiada pelo Comandante da Revolução Juan Almeida Bosque.
A música continuava tocando, e nós não cessávamos de andar. Acontece que de noite, na quietude das montanhas, se podem ouvir vozes ou música a grandes distâncias.
No outro dia, quase ao entardecer, chegamos a um acampamento rebelde conhecido como a “34”. Aquele também era um local de trânsito, uma espécie de entreposto onde se recebiam e armazenavam os suprimentos, tudo o que se relacionasse com a logística do Exército Rebelde. Isso já em plena Sierra Maestra, a dois passos de El Hombrito, onde se encontrava naquele momento o acampamento do Che.
O dono do sítio onde se localizava a “34” chamava-se Orestes. Deu-me a impressão de que não era um autêntico camponês, mas sim um atravessador, um desses comerciantes que costumam comprar os produtos dos camponeses para revendê-los. Também tive a sensação de que se tratava de uma pessoa má.
Fiquei alojada na casa do dono da 34 três ou quatro dias, até o Che chegar. Foram dias muito importantes para mim, pois tive a oportunidade de travar conhecimento com uma das mulheres mais excepcionais que jamais encontrei em toda minha vida, esse ser extraordinário e maravilhoso que era Lidia Doce.
Lidia era uma das mensageiras mais importantes da Coluna nº 4 do Che. Entre suas atribuições, cumpria-lhe observar os movimentos do exército da ditadura na zona montanhosa de San Pablo del Yao, nas planícies de El Dorado e nos arredores de Bayamo, onde estava sediado o posto de comando das tropas de Batista que operavam na Sierra Maestra.
Lidia servia-se de uma rede clandestina que ela mesma havia organizado, a qual, ambas achávamos, seguia somente a sua orientação. Eu havia estabelecido um sistema semelhante dentro do movimento clandestino de Holguín.
Disse-lhe que em Holguín eu havia estruturado o movimento em três grupos e que esse sistema dava resultados excelentes. Um grupo era formado por estudantes universitários, outro, por donas-de-casa, e um terceiro era composto por mulheres que trabalhavam em diversos pontos da cidade. Uma dessas colaboradoras valiosas foi a professora Josefina del Toro, que eu havia recrutado na Escola Normal de Holguín, onde fizera o meu curso.
Entre as donas-de-casa havia a minha modista, Marina Tanda; Ramona Docampo, que trabalhava na mercearia do seu marido; Gloria, em cuja casa eu às vezes dormia; e Leonor Ortuño, entre outras valiosas companheiras.
Esses três grupos tinham incumbências comuns: vender bônus para arrecadar fundos e colher informações sobre tudo o que acontecia na cidade e nos distritos. A informação principal era: identificar os agentes secretos da ditadura, ou seja, os delatores; em segundo lugar, quais as famílias ou pessoas que intimamente apoiavam o regime de Batista; em terceiro lugar, quais as famílias que simpatizavam com a oposição a Batista e com a Revolução, e quais as que simpatizavam com o pensamento dos comunistas e sobretudo com o movimento revolucionário de Fidel Castro na Sierra Maestra; e, por último, saber que revolucionários haviam sido capturados.
Fundamentalmente era isso. Além disso, as mulheres que compunham a célula que trabalhava nas ruas eram encarregadas de levar recados, mensagens e encomendas. As tarefas eram variadíssimas, mas dava-se muito destaque à coleta de informação.
Essas senhoras também costumavam guardar mantimentos e propaganda; e prestavam apoio em tudo o que se relacionasse com proteger ou esconder os revolucionários perseguidos ou que estivessem em trânsito pela cidade de Holguín.
Naquela época, a vigilância revolucionária sobre o inimigo educou muito o povo para que mais tarde ele se congregasse nas diferentes organizações de massas, depois do triunfo da Revolução. A participação das mulheres no movimento clandestino de Holguín foi verdadeiramente louvável.
Falei sobre tudo isso com Lidia Doce, sem indicar nomes nem locais. Falamos da estrutura do movimento clandestino. Não lhe falei de William Gálvez, já que naquela ocasião não sabia se ele havia conseguido chegar à Sierra.
Por sua vez, Lidia contou-me sua vida, a vida de seus filhos. Disse-me que sempre havia sido uma pessoa muito infeliz, até o dia venturoso em que se encontrara com o Che. Disse-me também que o Che era a pessoa a quem ela mais amava no mundo, embora todos percebessem que seu amor de mulher pertencesse inteiramente a Alcibeades Bermúdez. De pronto compreendi que o amor de Lidia pelo Che era de outra natureza, algo semelhante ao que eu sentia por Fidel.
Perguntei-lhe por que nutria esse amor tão excepcional pelo Che. Respondeu-me que devia a vida de seu filho a Ele. Indaguei-lhe então, com essa espécie de inocência peculiar de uma mocinha como eu, se gostava mais do Che que de Cuba. Redarguiu-me que os dois amores eram iguais.
Meses depois, em meio ao processo insurrecional, soube-se que os serviços policiais da tirania a detiveram, do outro lado da baía de Havana, na zona de Regia, quando cumpria uma missão importante de que fora encarregada pelo Che. Lidia foi capturada e torturada brutalmente, e depois deram sumiço ao seu cadáver. Nunca se soube onde estão seus restos mortais. Não conseguiram arrancar uma única palavra dela, que sabia tanto acerca do movimento clandestino cubano. Nem dela nem de Clodomira Ferrais. O primeiro biógrafo dessas duas grandes heroínas do movimento revolucionário cubano foi o Comandante Ernesto Che Guevara , que contou seus feitos em seu livro Pasajes de la guerra revolucionaria
Desse primeiro encontro com Lidia, entre outras recordações imorredouras, ficaram duas fotografias que tiramos na Sierra Maestra com o Che. Encontrei essas fotos nos primeiros dias da vitória da Revolução, nos arquivos do Brac (Buró de Represión de Actividades Comunistas), em Havana.
Lembro-me de que na Sierra, a certa altura, perguntei a Lidia por que, se estávamos tão perto do acampamento do Che, não continuávamos a marcha até onde e Ele se encontrava. Lidia contestou-me que isso não era possível, que o Che viria ao seu encontro, porque, fisicamente, ela não aguentaria aquela dura caminhada. Entretanto, acho que a razão era bem outra: o tenente Alcibeades Bermúdez estava muito doente, e continuar até La Mesa, onde o Che se encontrava, era um esforço excessivo para seu coração debilitado, pois o local onde o Che instalara o seu comando era de acesso difícil e muito elevado.
O local da 34 era o cimo de um morro, donde se descortinava a mais bela das paisagens serranas Daquele lugar era possível observar todas as tonalidades de verde possíveis; todos os matizes que a natureza era capaz de produzir nestas belas ilhas do Caribe.
As nuvens passavam bem perto das nossas mãos, e os vales encontravam-se aos nossos pés. Tinha-se ali uma sensação de unidade entre o céu e a terra. Tal foi a impressão primária que aquele lugar me causou. Nunca mais senti nada semelhante, em nenhum outro lugar. Nunca mais experimentei aquela sensação de placidez profunda, ao contemplar os belos rios e regatos, os cafezais virentes, entre os verdes intensos dos arvoredos e o verdor das montanhas, com suas quebradas e suas trilhas, de um lado ao outro da montanha alcantilada, por onde transitavam homens e récuas de burros.
Na 34 havia três casas, um tanto distantes umas das outras; três moradas e três secadouros de café, em forma de terraços. Uma daquelas moradas era habitada por uma família camponesa. As outras duas ficavam à disposição do dono do sítio, e nelas nos hospedamos. Lidia e eu permanecemos três noites numa casas, enquanto, de noite, a pequena tropa de Alcibeades Bermúdez afastava-se um pouco daquele local e acampava dentro do cafezal, armando as redes nas árvores.
No terceiro dia eu estava parada no secadouro situado no local mais alto do sítio, quando observei um burro, um homem e um menino descendo uma encosta da montanha. O homem usava um boné, e o que parecia um menino, uma boina.
O burro vinha a passo lento. Imediatamente dei o aviso. E, de todos os que compunham a pequena tropa de Alcibeades, foi Lídia quem disse:
— Aí vem o Che!
O Che vinha montado no burro. O menino caminhava na frente. A distância, parecia que o menino puxava o burro pelas rédeas. Caminhava tão depressa quanto o burro e dava a impressão de ter a mesma agilidade do animal.
Confesso que quando observei o menino senti inveja: caminhava sem olhar para o chão, como se conhecesse de memória cada obstáculo do caminho, cada pedra, cada penhasco, cada ondulação daquela vereda da montanha. Diferentemente de outros companheiros, avançava com rapidez, com o olhar sempre perdido na distância.
Tanto o homem como o menino traziam um fuzil e uma pistola na cinta; e avançavam por aquela vereda com uma harmonia tal que despertavam um sentimento que oscilava entre a admiração e a inveja.
O caminho por onde o Che vinha passava uns cinquenta metros abaixo do secadouro de café, onde se encontrava o nosso grupo. Porém o Che não foi até lá. Apeou do burro lentamente, como se pusesse um cuidado extremo nisso, enquanto o menino agarrava a alimária pelas rédeas e Alcibeades Bermúdez e outro companheiro iam ao seu encontro.
Cumprimentaram-se. O Che apertou a mão de Alcibeades. O companheiro que foi com Alcibeades encarregou-se do burro.
O Garand(1) do menino (mais tarde soube que ele se chamava Guile Pardo, um dos vários irmãos Pardos que já estavam na guerrilha da Sierra Maestra) dava a impressão de ser maior que ele.
Em seguida Guile afastou-se do Che, como se fosse explorar a zona, e só apareceu no dia seguinte, quando o Che já estava prestes a partir da 34.
Pouco depois, quando pude observar o rosto do Che, não me pareceu de modo algum o mesmo homem que eu havia visto na capa da revista Life meses antes.
O Che não chegou até onde estava o grupo. Trajava um uniforme verde-oliva completo, com botas e tudo o mais, mas sem mochila. E seus bolsos estavam atulhados de papéis e outras coisas.
A primeira pessoa que recebeu foi Lidia Doce. Recebeu-a debaixo das árvores, no meio do cafezal. Trouxeram um tamborete para ela. Lidia sentou-se no tamborete; o Che, num tronco. A entrevista que manteve com Lidia foi a mais demorada de todas as que teve naquela tarde. Conversaram a uns cem metros do lugar onde estávamos, entre as árvores e os cafeeiros. Depois foi a vez do tenente Alcibeades Bermúdez.
Quando Lidia terminou de falar com o Che, levantou-se do tamborete e veio para a casa de morada. Entrou na cozinha como um foguete. Nunca pensei que uma pessoa tão gorda pudesse ser tão ágil.
Lembro-me de que me disse:
— Popa! — antes de o Che chegar à 34 Lidia já havia começado a me chamar de Popa — Vamos cozinhar!
Retorqui-lhe:
— Oh! Eu não sei cozinhar.
Então Lidia começou a preparar um arroz com galinha, mas como eram quinze comensais, ela me deu a impressão de haver se transformado num raio, preparando um caldeirão de arroz com galinha num instante, e mais uns pasteizinhos.
A comida ficou pronta justamente no momento em que chegou a minha vez de conversar com o Comandante Guevara.
Aproximei-me lentamente. Parei a um metro de distância. Esperava que Ele ficasse em pé, que deixasse o tronco onde estivera a conversar com Lidia e depois com o tenente Bermúdez, e que me cumprimentasse, não sei, que apertasse minha mão, me dissesse alguma coisa e me convidasse para sentar-me naquele tamborete em que estiveram sentados outros companheiros. Mas, para minha surpresa, o Che apenas me olhou com aqueles seus olhos grandes e, no tronco onde continuava sentado, entrou a declamar:
...Foi algo formidável que viu a velha raça,
imenso tronco de árvore no ombro de um campeão...
E silenciou. E eu, quase instintivamente, continuei:
O Toqui! O Toqui!
Gritou a nova raça.
E andou, andou, andou
três dias e três noites
o grande Caupolicán...
Depois, suas primeiras palavras foram para perguntar-me que livros havia trazido comigo. Disse-lhe que dois, os meus preferidos: José Martí e Pablo Neruda.
— E de que outro poeta você gosta? — indagou.
Respondi-lhe que também gostava da poesia de Rubén Darío mas que os poemas que mais me haviam impressionado na vida foram o “Jicotencal”, de Plácido, e a “Oda al Niágara”, de José Maria de Heredia, célebres poetas cubanos do século XIX.
Então me perguntou se eu conhecia a poesia de Nicolás Guillén. Quando lhe respondi que não, que nunca havia lido nada de Guillén, retrucou-me:
— Então você perdeu quase a vida toda.
Fiquei assim, um tanto desconcertada. Foi então que percebi que alguma coisa estava acontecendo com Ele. Era como se tivesse muita dificuldade, de respirar, embora Ele procurasse dissimular. Respirava devagar, profundamente; e suas palavras saíam lentas, vagarosas. Isso era parte da síndrome do mal que eu adivinhava, embora não ouvisse o piado característico da asma.
— Bem — disse lentamente, como antes —, conhece algum dos comunistas da sua cidade?
Disse-lhe que sim, que conhecia vários e que eram pessoas excelentes, que eram muito perseguidos e muito sofridos, por causa da repressão que os serviços secretos da tirania exerciam sobre eles. Citei nomes e indiquei lugares onde alguns dos comunistas que conhecia se encontravam.
Então Lidia nos interrompeu. Chegou com aqueles dois pratos do seu suculento arroz com galinha, e começamos a comer. Entre um bocado e outro, o Che interessou-se em saber que eu havia estudado. Informei-lhe que havia cursado a Escola normal de Holguín e que tencionava ser professora quando a guerra terminasse. E que sabia um pouco de inglês e de francês.
Também quis saber se eu tinha tido alguma doença. Disse- lhe que, quando criança, tivera catapora, várias pneumonias e um pouco de papeira. Inopinadamente indagou:
— Você já se casou alguma vez? Tem filhos?
Respondi-lhe que não, que era uma senhorita na minha casa [de meus pais].
Curioso, inquiriu:
— Que quer dizer com isso?
— Que sou uma senhorita, Che, que nunca me casei!
Então determinou que minha atividade principal na Sierra Maestra seria a de professora. Dar aulas. Que era preciso que eu ajudasse a alfabetizar todos os meninos. Que não medisse esforços para ensinar a ler e escrever à tropa rebelde, que na sua maioria era de origem camponesa, jovens serranos analfabetos. Recomendou-me dedicar uma atenção especial a Joel Iglesias, embora nesse momento Joel estivesse muito doente, pois havia sido ferido gravemente no combate de Marverde. Também deveria incumbir-me de alfabetizar um camponês chamado Polo Torres, de quem Che gostava muito; e que eu não me esquecesse de nenhum desses nomes, inclusive de Juanita, a mulher de Polo.
Não avalio quanto tempo durou aquela conversa que tive a sós com o Che. Lembro-me de que Ele se interessou pelos meus familiares; e eu, retribuindo aquela gentileza, perguntei-lhe pelos seus. Qual não foi minha surpresa quando Ele, da maneira mais natural do mundo, começou a falar minuciosamente de toda sua família, que ficara na Argentina! Disse que era casado e tinha uma linda filha; que seu pai e sua mãe eram vivos e Ele os adorava; que tinha vários irmãos e quatro tias, etc., etc.
Verificando o que eu havia provocado com a minha curiosidade, resolvi não mais lhe fazer qualquer pergunta por polidez.
A medida que o Che ia falando de toda sua família, eu notava que infundia nisso muito amor. A certa altura, eu quis saber quando partiríamos para o seu acampamento, que se dizia ficar em El Hombrito. Disse-me que dentro de poucos dias mandaria nos buscar, mas que no momento deveríamos ficar ali, na 34.
Aproveitei para pedir-lhe, entre outras coisas, permissão para dar a Lidia Doce o endereço da minha família, que agora residia em Havana, para que ela, se porventura passasse pela capital, procurasse minha mãe e lhe pedisse que me mandasse um rádio de pilhas, dinheiro, uma lanterna e outras coisas de que eu precisava ou achava que ia precisar durante minha vida de guerrilheira.
Durante todo o tempo em que estive no acampamento da Coluna nº 4, que era dirigida pelo Che, essa foi a única vez que falei com o comandante a sós. Daí em diante, por circunstâncias inerentes à guerra, nos nossos encontros e conversas sempre estavam presentes outras pessoas.
Nessa noite o Che ficou para dormir na 34, e como não trazia sua mochila, emprestei-lhe minha rede e meu cobertor e dormi numa cama da casa de morada.
Daquele primeiro encontro com o Che, guardo uma recordação indelével. Naquela noite, do quarto contíguo, onde o Che armara a rede, naquela casa do cafezal, comecei a ouvir o piado da sua asma, que em certas ocasiões não lhe dava um só minuto de trégua. Então eu comecei a respirar muito forte, muito fundo, para que, através do tabique, Ele não ouvisse o piado da minha asma. E antes de conciliar o sono, pensei que fizera muito bem em não revelar ao Comandante que eu também era asmática.
Na realidade minha asma só atacava em meios muito úmidos ou muito perfumados; era uma asma leve, sem maiores consequências, e só passava quando eu tomava azeite quente.
Pouco antes do amanhecer, notei que o Che já estava acordado. Acho que foi o primeiro de todos a se levantar. Vi-o ainda muito cedo sentado na rede. Estava lendo. Pouco depois Lidia levou-lhe um caneco de café forte e quente. Depois Lidia trouxe-me também aquele café reanimador, com açúcar.
Depois saímos da casa e fomos a um dos secadouros do sítio, onde tiramos várias fotos. Numa dessas fotos, eu e o Che aparecemos sozinhos. Dei-a de presente a tia Olga Dotres, o que depois lamentei profundamente, pois nunca mais soube notícias dela e perdi aquela fotografia.
Logo depois de tirarmos as fotos, o Che despediu-se. Vimo-lo partir, montado no burro. Acompanharam-no Guile Pardo e Jorge Cartaya. Os outros ficaram ali, naquele cafezal da 34, à espera de suas ordens.
Notas de rodapé:
(1) Trata-se do primeiro fuzil de repetição automática do mundo, o M-1, de fabricação norte-americana, inventado pelo canadense John Cantius Garand no final da II Guerra Mundial. Como nos fuzis convencionais, seu carregador comportava apenas cinco cartuchos, mas não tinha ferrolho, e a repetição era acionada pelos gases da explosão. (Nota do revisor) (retornar ao texto)