Che em Sierra Maestra
Depoimento inédito de uma guerrilheira

Merceditas Sánchez Dotres


A planície: a clandestinidade


capa

Minhas atividades dentro do movimento estudantil da minha Holguín natal começaram quando eu era ainda muito jovem. Mais tarde, quando ingressei no Movimento 26 de Julho, já haviam ocorrido em Cuba fatos importantes: em 30 de novembro de 1956, a cidade de Santiago de Cuba amotinou-se armada, para apoiar o desembarque do Comandante en Jefe Fidel Castro e seus companheiros do iate “Granma”. Alguns dias depois, o exército da tirania de Batista surpreendia os expedicionários num lugar conhecido como Alegria de Pio. Os combatentes revolucionários foram dispersos e muitos deles foram assassinados. Inclusive Batista mentiu, anunciando a morte de Fidel.

Por esse tempo, a tirania batistiana havia nomeado comandante do regimento do exército sediado em Holguín um dos oficiais mais sanguinários do seu regime: o coronel Fermín Cowley Gallego.

O coronel Cowley caracterizava-se pela extrema crueldade. Bastavam suspeitas de que determinada pessoa não simpatizava com a ditadura para ele ordenar sua morte. Em muitas ocasiões ele executava pessoalmente suas vítimas.

Quando o coronel Cowley, através dos seus serviços de inteligência, tomava conhecimento de nomes de militantes revolucionários e comunistas, isso significava para eles nada menos que a morte. Assim sucedeu na noite de 25 de dezembro de 1956, quando o carrasco ordenou uma matança. Esse dia passou para a história da nossa pátria como o Natal Sangrento.

Nesse episódio, o coronel Cowley mandou chacinar vinte e dois militantes revolucionários do Movimento 26 de Julho e do Partido Socialista Popular. Em poucas horas esses patriotas cubanos foram detidos, torturados e assassinados, em vilarejos e cidades de todo o norte da província de Oriente.

Algum tempo depois, na segunda quinzena de maio de 1957, o coronel Cowley também procedeu ao assassínio coletivo dos expedicionários do iate “Corinthia”. Esses expedicionários desembarcaram pelo norte de Oriente, não muito longe da baía de Nipe, e se renderam. Prometeram-lhes que suas vidas seriam poupadas e que eles seriam julgados em tribunais. Desse massacre salvou-se apenas o companheiro Virelles.

A repressão na cidade de Holguín era terrível. Naquele tempo eu já militava nas fileiras clandestinas do Movimento 26 de Julho, e meu nome de guerra era “Carmencita”.

Diante de tais fatos, a direção do Movimento Revolucionário 26 de Julho de Holguín, sob o comando do jovem William Gálvez Rodríguez, com autorização de Frank País (chefe de todo o movimento clandestino e residente em Santiago de Cuba), planejou o julgamento e o justiçamento de Cowley.

Naquela época, uma das minhas funções dentro do movimento clandestino era acompanhar, nas suas viagens pelo norte de Oriente, dois dos cinco companheiros que integravam a direção do Movimento 26 de Julho em Holguín, Oscar Lucero e Manuel Angulo.

Nessas circunstâncias, o movimento revolucionário de Holguín iniciou imediatamente os preparativos para a execução do coronel Cowley. Para levar a efeito a arriscada missão, constituiu-se um comando de cinco companheiros sob as ordens de William Gálvez. Além disso, foram designadas duas mulheres para viver na casa onde se realizaria a operação. Essas mulheres foram Fredesvinda Pérez e Maria Mercedes Sánchez Dotres.

Na realidade, o coronel Cowley, que tinha uma dívida de sangue muito grande com o povo, mostrava-se extremamente desconfiado, e o comando precisou fazer 19 investidas até conseguir executar a missão. Para essa execução, foi preciso mobilizar todo o poderoso movimento clandestino de Holguín. Dezenas de revolucionários se dedicaram a vigiar o assassino e colher informações sobre seus hábitos e seus itinerários. Depois de estabelecida uma estrita vigilância e controle dos passos do coronel, criou-se um sistema de avisos e informações que, de todos os lugares da cidade, afluíam para a casa onde estava aquartelado o grupo revolucionário. Esse episódio é narrado circunstanciadamente no livro Salida 19, do escritor William Gálvez Rodríguez, que comandou a operação.

Depois da execução do coronel Cowley, um dos pilares da ditadura de Batista, desencadeou-se uma feroz repressão no norte de Oriente. Contudo, o comando revolucionário conseguiu sair de Holguín aos poucos.

Manuel Angulo me havia instruído para, em caso de emergência, eu me dirigir às montanhas e me incorporar às guerrilhas de Fidel Castro. Depois que Cowley foi executado, permaneci quase um mês escondida em várias casas consideradas seguras, dentro da cidade de Holguín, à espera de novas instruções do Movimento 26 de Julho (M-26). Entretanto, o serviço secreto da tirania conseguiu prender Manuel Angulo e outros quatro companheiros.

Soube que ele foi torturado selvagemente, e, embora ele conhecesse todo o funcionamento do movimento clandestino do norte de Oriente, bem como as casas nas quais eu poderia estar escondida, não lhe conseguiram arrancar uma só palavra. E fiquei ali, em Holguín, até que seu cadáver apareceu junto com os dos outros quatro revolucionários.

Quando Angulo e seus companheiros foram assassinados, o comando que justiçara o coronel Cowley já havia conseguido abandonar gradativamente a cidade de Holguín e chegar à Sierra Maestra, para ingressar nas fileiras do Exército Rebelde.

Antes de ser detido, Angulo tinha me explicado o que eu deveria fazer para chegar à Sierra. Quando me vi na conjuntura de ter de seguir o caminho da montanha, pois compreendi que minha presença em qualquer casa implicava no risco de morte para todos os que me rodeavam, fiz tal qual ele me havia orientado. Mandei comprar uma passagem num ônibus especial até Havana, porém desci do ônibus com toda a bagagem em Victoria de Las Tunas, cidade um tanto próxima a Holguín, em frente à estação da rádio. Desci do ônibus com toda naturalidade e saí caminhando tranquilamente à procura do contato que conhecia na estação de rádio. Creio que seu nome era Abel Sánchez, e ele era membro do movimento clandestino da cidade.

O certo é que eu conhecia o movimento clandestino de Las Tunas, porque era acompanhante assídua de Angulo e havia visitado aquela cidade junto com ele muitas vezes. E como Angulo, com toda a tortura sofrida, calou tudo, o movimento clandestino de Las Tunas continuava funcionando normalmente.

Com aquele seu gesto tão heróico, Angulo trocara sua vida pela segurança de todo o movimento clandestino do norte de Oriente.

Finalmente dei com o contato, um jovem baixinho, moreno e de cabelos negros, que trabalhava na emissora de rádio, e comecei a andar com ele, em direção ao escritório do Dr. Pedro Verdecia, com aquela maleta que havia enchido de roupas elegantes. Eram roupas muito finas, de gala, noturnas. Havia também uma caixinha de luxo que enchi com perfumes franceses de 12 tipos diferentes e uma boa quantidade de bijuterias de luxo prateadas e douradas, com muitas pedrarias.

Tudo aquilo era prevendo a possibilidade de ser revistada por guardas. De propósito, enchi a maleta com todo objeto que pudesse ser roubado. Assim, se por algum motivo resolvessem me revistar, não dariam muita atenção à minha pessoa, mas concentrar-se-iam no conteúdo da maleta. Para começar, eu trajava uma luxuosa roupa de inverno. Vestia uma blusa bordada a mão pelas freiras espanholas. Estava de saia preta de fustão de veludo inglês e usava um suéter americano de ótima qualidade. Complementei o vestuário com um relógio de ouro, brincos de ouro e pulseiras de ouro — enfim, tudo de dourado que pude encontrar na hora de partir. E, como era meu costume em circunstâncias como aquela, fui sentar-me ao lado de um homem jovem.

Sempre que o ônibus parava nas entradas das cidadezinhas, deixava a maleta assim, despreocupadamente, à vista dos guardas. O mais comum, quando acontecia uma revista ou uma fiscalização por parte do exército, e os soldados revistavam mesmo, era sempre roubarem alguma coisa dos passageiros.

Vesti-me com apuro a fim de disfarçar, com a elegância do vestuário, a dor que me oprimia, com o assassínio de Angulo e seus companheiros, sabendo como os torturadores haviam destroçado o heróico e querido companheiro. O outro sofrimento que trazia na alma era não saber ao certo o que acontecera a William. Não sabia se ele havia conseguido sair de Holguín, se havia conseguido despistar as batidas do exército; nem onde estava, nem em que circunstâncias, nem que perigos o ameaçavam. Todos esses pensamentos martelavam-me a cabeça o tempo todo.

O escritório do Dr. Pedro Verdecia ficava quase no meio da cidade; e como Las Tunas era um lugar muito movimentado, não era estranho uma moça caminhar vários quarteirões com sua bolsa e uma maleta. E para aquele meu cabelo castanho-avermelhado de leoa não chamar tanta atenção, prendi-o e cobri-o com um discreto lenço de cabeça.

Para sair de Holguín, eu havia tomado muitas precauções Como precisava ficar perto da estação rodoviária, atenta à hora da partida do meu ônibus, entrei na Igreja de Santo Isidoro.

Na bolsa, eu sempre trazia uma mantilha bordada, com que cobria minha cabeça sempre que entrava numa igreja, e trazia também um leque.

O escritório do advogado de Las Tunas ficava numa casa muito antiga. Primeiro havia uma sala e depois um primeiro quarto, onde funcionava o escritório; atrás dele, o resto da edificação servia de morada para a família.

O advogado já me conhecia e recebeu-me sem medo; em seguida mandou chamar duas moças da religião batista. Elas levaram-me imediatamente para a casa dos donos de uma tipografia. A casa de “Chichi”, Josefa Machado González, a esposa do dono da tipografia, que era tia de Eduardo Ramos, meu colega na Escola Normal de Holguín.

Eu nada disse ao advogado. Na clandestinidade nunca se dizia nada; e agora, que Angulo estava morto, e eu tendo sido sua acompanhante habitual, não devia dizer nada. Ninguém perguntava nada. Todo o movimento clandestino me conhecia. Refiro-me à direção do movimento de Las Tunas, porque costumavam ver-me ali na companhia de Angulo. Tenho de admitir que o movimento clandestino de Las Tunas demonstrou muita solidariedade para comigo. Era composto de homens e mulheres muito corajosos. Ninguém me deixou sozinha. Cheguei a Las Tunas e senti que havia entrado numa zona de segurança, e desde então tomei uma afeição especial por aquela cidade.

Logo me transferiram para outra casa, para a residência dos Concepción. A casa de Raúl Concepción (que posteriormente foi assassinado pelo exército de Batista) e sua mulher Nelly. E, por intermédio de todos eles, consegui entrar em contato com Jorge Garcia Cartaya.

Jorge encontrava-se em Las Tunas; eu sabia que ele estava ali e estava a par de que ele deveria retomar à Sierra, porque o Che o havia enviado em missão a Las Tunas e outras localidades do norte de Oriente, e depois de cumpridas as missões de que o haviam encarregado, ele regressaria à Sierra.

Cartaya conhecia muito bem o caminho que devia seguir para eludir o cerco do exército e chegar às montanhas. Contei-lhe tudo o que havia acontecido, o que eu sabia, e pedi-lhe que, por favor, me levasse com ele.

Jorge era muito jovem. Era alto e tinha uns olhos muito negros; e era uma pessoa muito sensível, que gostava de poesia. Jorge era muito sagaz, inteligente e astuto. Em seguida planejou como iríamos até a Sierra, tudo o que era preciso fazer e como deveríamos fazê-lo.

Saímos de Las Tunas de trem, diretamente a Bayamo. Saímos vestidos discretamente, eu com um pouquinho de roupa na bagagem, como se fossemos realizar uma viagem à casa de um familiar próximo; e comportávamo-nos como se fossemos esposos.

Não levávamos armas; portanto decidimos portar-nos de maneira muito coerente. Havíamos combinado como nos conduziríamos: as particularidades do cotidiano do nosso procedimento, os gostos culinários, etc., para não entrarmos em nenhuma contradição que pudesse despertar suspeitas de alguém que pudesse nos observar pelo caminho. Como de costume na província de Oriente, sempre seria Jorge, o homem, que falaria e decidiria: o que se deveria fazer, o que comer, quanto e quando se devia comer. Isso era o usual num casal de jovens orientais que viajasse por rodovia ou por trem de uma cidade a outra.

Devo dizer, além disso, que Jorge era um rapaz muito valente. Incumbido pelo Che, havia realizado missões importantes: o incêndio de canaviais, sabotagens e contatos clandestinos. Estivera em Holguín, e havíamos nos conhecido na casa do comando; e eu sabia que ele estava regressando à Sierra para integrar-se à Coluna guerrilheira do Comandante Guevara. Realmente, Jorge era muito decidido e corajoso, não importando que tivesse atrás de si todo o aparelho de repressão do exército de Oriente.

Em Las Tunas, levaram-me da casa de campo dos Concepción para uma casa nos arredores da cidade. Ali, tornei a encontrar-me com Jorge Cartaya. Estive naquela casa o dia inteiro e ainda hoje não sei como aquela família, tão pobre como era, obteve recursos para me atender: prepararam-me um arroz com feijão delicioso (congri oriental, também chamado moros y cristianos, ou seja, o baião-de-dois da culinária nordestina) e fritaram-me bananas e um bife.

A mãe de Jorge Cartaya veio até essa casa, uma senhora muito agradável, de um sorriso terno, para despedir-se do seu filho, que mais uma vez regressava à Sierra. Seu amor por Jorge era visível. Lembro-me de que ela, na agradável conversa que tivemos, pediu-me que desse seus cumprimentos a Fidel.

Naquela noite dormi ali, naquela casa. No dia seguinte fomos à estação ferroviária para tomar o trem que nos conduziria até a cidade de Bayamo. Chegamos a Bayamo à tardinha. Aquele trem demorou umas quatro ou cinco horas. Parecia que nunca ia chegar. Era um desses trens que nós, cubanos, chamamos de “trem leiteiro” (pinga-pinga), que parava em qualquer lugarejo, em cada um dos pequenos povoados, nos simples aglomerados de casas, nas fazendas pelas quais a via-férrea passava; e toda vez que esse trem fazia uma parada subia um bando de guardas, militares e mais militares, e a cada instante Jorge me dizia que não me inquietasse. Na realidade eu nunca havia me amedrontado, nem mesmo quando vários batalhões do exército sitiaram a cidade de Holguín, que naquela época tinha cem mil habitantes, e começaram aquela vistoria: rua a rua, casa a casa, instituição a instituição; só as igrejas católicas não foram vistoriadas. Tudo o mais foi revistado: ônibus, caminhões, automóveis e, naturalmente, as pessoas também; mas agora, ela primeira vez, nesse trem enfadonho, comecei a sentir muito medo, medo de pensar que, com todos aqueles militares naquele trem, eu não pudesse chegar à Sierra Maestra.

Ao chegarmos a Bayamo, dirigimo-nos a um hotelzinho de terceira categoria. Jorge alugou dois quartos. Havíamos resolvido dormir em quartos diferentes, para evitar que fossemos presos os dois. Desse modo, enquanto procurassem prender um, o outro talvez pudesse fugir. Registramo-nos no hotel com nomes falsos. Ali, naquele hotelzinho de Bayamo, usei o nome de “Carmencita”.

Esse nome, Carmen González, eu já vinha utilizando desde que começara a vender produtos da Avon; fazia já muitos meses que eu tinha uma espécie de representação de perfumes e cosméticos, e tudo o que se relacionava com a venda desses produtos eu despachava sob o nome de Carmen González, que tomei de uma das minhas tias, Carmen Ricardo.

O nome Carmen González aparecia em toda a papelada relacionada com os perfumes; e foi assim que consegui toda uma documentação com a matriz da Avon, em Havana; já era meu nome clandestino; foi por isso que, quando entrei em Las Tunas e comecei a circular pela cadeia clandestina daquela cidade, eu já era Carmencita.

Naquela noite dormimos em Bayamo; e tenho a impressão de que o atendente do hotel estranhou muito nós ficarmos em quartos separados. Eram dois quartos no andar térreo. Quartos internos.

Dormi como uma pedra. Foi Jorge quem me despertou ao amanhecer. Não tomamos o café da manhã no hotel; tomei apenas um copo de café com leite que Jorge me trouxe. Lembro-me de que àquela hora os jipes do exército já estavam patrulhando as ruas de Bayamo. Passavam cheios de guardas com metralhadoras e granadas, com quatro ou cinco guardas em cada jipe. Aqueles guardas tinham uma expressão muito agressiva.

Jorge foi até o refeitório do hotel e voltou com o copo de café com leite já mencionado. E como tínhamos perfeita consciência de que eu era a mais procurada, tratamos de sair do hotel o mais rápido possível.

Desde a saída de Las Tunas, durante aquela viagem de trem e até a chegada ao hotel de Bayamo, procuramos aparentar ser gente simples, do povo, como camponeses. Agora eu saía do hotel com todo luxo. Pus um vestido de lã cinza e vermelho, uma bolsa marrom, um par de sapatos marrons e uns óculos escuros. O resto das roupas e adereços, eu havia deixado na casa de campo dos Concepción, nos arredores de Las Tunas.

Saímos do hotel e quase imediatamente conseguimos um táxi que ia em direção a El Dorado.

Desse lugarejo eu tinha apenas algumas poucas informações. Sabia que era uma zona de pequenos camponeses que começava na própria margem da estrada de Bayamo a Manzanillo, que ali aconteciam brigas de galo muito boas e que existia também um famoso centro espírita. Porém sabia que, antes de tudo, esse El Dorado era um lugar de conspiração, que havia muita clandestinidade entre os camponeses e que era um dos pontos importantes para entrar e sair da Sierra, se a pessoa quisesse alcançar com rapidez as primeiras patrulhas avançadas colocadas pelo Che.

Quando o táxi chegou a El Dorado, descemos em frente ao portão de uma pequena propriedade rural plantada com fumo. Na casa do sitiozinho, fomos recebidos por uma senhora doce, com seu marido e três crianças. Viviam numa casa de taipa e palha. Eram uma gente muito humilde, e eu sentia-me constrangida de estar assim tão elegante, com Jorge, trazendo um pacote em que havia um agasalho, dois suéteres, uma calça comprida, duas calcinhas e uma escova de dentes. Eu levava apenas a bolsa. Jorge carregava o pacote.

Chegamos à casa dessa doce senhora na hora do almoço. O carro nos deixara na estrada, e tivemos de percorrer um caminho, coisa de meia hora, por entre todos aqueles sitiozinhos, marcos, com suas sebes, ou cerquinhas de arbustos de giesta, e suas vielas e caminhos de terra, até chegar à casa da senhora de rosto doce.

Afigurávamo-nos, sem nenhuma dúvida, um casal muito estranho, Jorge e eu, fingindo-nos de ricos. A razão disso é que, como os ricos não se envolviam com política nem com os assuntos da Revolução, era muito improvável alguém desconfiar em que andávamos metidos. Com certeza, o que todos pensariam era que tínhamos vindo àquele lugar para uma consulta espiritual.

Não tardou muito, e chegamos à casa da espiritista, a senhora Paula Mora, dona daquele afamado e propalado centro espírita, conhecido em toda a região.

Um rapaz que parecia ser filho da espírita, conhecido de Jorge, veio receber-nos. Mostrou-se muito gentil e levou-nos ao próprio recinto onde a senhora (sua mãe) realizava suas sessões espíritas, uma grande choça.

A espírita era uma senhora mulata e logo me disse três coisas: primeira, que eu ficaria na casa de sua filha; segunda, que Jorge ficaria na sua casa; e terceira, que naquela mesma noite ela realizaria uma sessão espírita especial para mim, e que eu não esquecesse que era para isso que havia ido até ali, para receber ajuda espiritual. A senhora terminou advertindo-me de que eu também não esquecesse que pela estrada nacional passavam constantemente carros do exército cheios de guardas que, por favor, eu nem sequer assomasse à porta da casa.

Entrementes, Jorge solicitou a um dos filhos da espírita ir com urgência a Bayamo comprar um par de botas texanas, duas redes e dois cobertores de lã.

Antes do anoitecer o emissário voltou com a encomenda. E essa foi a primeira noite da minha vida em que dormi numa rede, a qual seria minha “cama” por muito tempo. E cobri-me com aquele cobertor, que seria meu cobertor de guerra.

A passagem de carro de El Dorado à cidade de Bayamo custava apenas 20 centavos, e foi o que Jorge deu ao emissário. E como estava previsto, nessa mesma noite aconteceu aquele ritual espírita africanista, com a presença de vizinhos das redondezas. Assisti-a apenas por alguns instantes, com medo de que os guardas passassem por ali e me vissem.

Lembro-me de que estava presente àquele ritual uma família inteira, que vivia no sítio situado atrás do centro espírita. Eram camponeses que possuíam uma bonita várzea, onde todos se dedicavam a torcer fumos.

Toda essa gente me encheu de muita ternura. Suscitaram em mim um sentimento de amor. Deram-me uma comida muito boa; prepararam-me uma substanciosa sopa de galinha, e fufu [bananas fritas com inhame], um prato que minha avó costumava fazer para mim.

A sessão era realmente interessante. Puxou-se o que se conhecia como “linha oriental”, entoaram-se cânticos e invocaram-se espíritos. Naquela noite, na casa da doce senhora, tive uma forte crise de asma e não consegui dormir; passei a noite inteira urinando numa lata. E como eu dormia de anágua, a doce senhora, que era uma camponesa de verdade, maravilhou-se com aquela minha anágua de seda. Ela nunca havia visto uma anágua como aquela. E no dia seguinte, antes de partir com Jorge pelos campos em direção aos contrafortes da Sierra, dei toda aquela roupa de presente à doce senhora. Ela deve tê-la guardado apenas como lembrança, pois éramos de estaturas muito diferentes.

Tomamos café e partimos. Saímos do sítio a cavalo, pelas veredas que ligavam todos aqueles sítios, com sebes de giestas e cercas de varas separando os sítios.

Passamos quase três longas horas cavalgando, eu na garupa do cavalo. Era um cavalo castanho. E só no meio da manhã é que atingimos as primeiras elevações. Então deixamos o cavalo na casa de uma senhora negra. A casa era de piso de cimento e teto de zinco. E ali um homem nos veio buscar e nos levou a pé até às faldas da serra, até que, já de noite, encontramos o primeiro grupo de insurretos.

Tratava-se de um destacamento de rebeldes, sete, talvez oito homens, dirigidos pelo tenente Alcibeades Bermúdez. E qual não foi a minha surpresa quando Alcibeades veio nos cumprimentar! Aquele homem, que respirava com dificuldade, tinha uma extraordinária semelhança física com Fidel Castro. Logo fiquei sabendo que há meses ele estava na guerrilha; que integrava as patrulhas avançadas das tropas de Che; e que estava muito doente do coração, e a altitude lhe fazia muito mal, mas que, apesar disso, era um combatente muito valente e precioso.

Ali, com os seis ou sete homens do tenente Alcibeades Bermúdez, achavam-se três civis; eram recém-chegados: Agustín, havanês, carpinteiro de profissão, e dois lavradores, um de sobrenome Oliva e o outro chamado Nando Chacón.

Os três civis, Jorge e eu, e o destacamento de Alcibeades ficamos ali, no sopé da montanha, numa caverna, à espera de outra pessoa.

Decorrido certo tempo, apareceu a pessoa esperada, uma mulher adulta, bonita, muito gorda, de olhos grandes que exprimiam grande ternura. Tive a impressão de que se tratava de uma senhora muito importante, pois todos a cumprimentaram com muito respeito e carinho. Mas, como não saí do lugar onde estava, na entrada da caverna, foi ela que veio me cumprimentar.

Perguntou-me meu nome, e eu disse-lhe que me chamava Carmen. Apresentou-se como Lidia. A senhora trouxera um pouco de queijo, biscoitos e doce de goiaba suficientes para todos. E depois de comermos aqueles alimentos, já de noite, deixamos a caverna e embrenhamo-nos pelas veredas da Sierra.

A senhora Lidia, devido a ser um tanto gorda, locomovia-se muito devagar no meio da noite. Fiquei o tempo quase todo ao seu lado. Era-lhe muito cansativo caminhar. Na primeira oportunidade perguntei-lhe que havia com ela, por que andava tão devagar. Disse-me que não era nada, que era o peso dos seus 46 anos. Achei que não, que o problema era a sua obesidade, e fiz-lhe uma segunda pergunta:

— Então por que vai entrar na guerrilha?

Ela moveu a cabeça, olhou-me e disse-me:

— Não vou entrar na guerrilha; já estou em ação e vou ver o Che.

Na clandestinidade e na guerrilha não se perguntava nada. Assim, indiretamente, fiquei sabendo qual seria o meu destino.


Inclusão: 30/10/2023