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A Colina da Cruz
Sou neta de Mercedes Crespo Ponte e bisneta de Dom José Garcia Portelles. Minha avó, por sua vez, era neta de Dom Marcos Ponte, que se rebelou contra o colonialismo espanhol. Minha família contava que Dom Marcos (meu tataravô) estivera preso em Ceuta;(1) porém, subornando os carcereiros, regressou a Cuba para pegar em armas com nove dos seus escravos, sendo por isso perseguido e preso. Foi garroteado perversamente em 1860.
Vovó era professora primária. Uma professora que sabia como orientar seus alunos. Ensinava-lhes o amor à pátria e por que se devia amar José Martí. Era uma mulher de ideias muito avançadas e, ao mesmo tempo, muito religiosa; e muitos de seus alunos posteriormente defenderam ideias socialistas.
Vovó era uma mulher respeitada. Às vezes dizia que éramos descendentes de uma família que havia sido despojada de seus bens. Primeiro pelos espanhóis e depois pelos norte-americanos. Dizia também que nossa família era cubana há mais de duzentos anos; e que nem os capitães-gerais nem os presidentes de Cuba haviam massacrado tanto o povo cubano quanto o general Batista.(2)
Dizia também que Batista era um trapaceiro e o governante que mais prejuízos havia causado a Cuba, alimentando todos os vícios, sobretudo o jogo. Em todo o país abriram-se casas de jogo, rinhas de brigas de galos e muitos bordéis. Comentava que Batista fazia isso e aquilo e, o mais absurdo, que estava estimulando o banditismo, que já não se podia andar sozinho pelos campos de Cuba; que nem mesmo em 1898 — quando os cubanos, apesar de vitoriosos na guerra pela independência, não conseguiram o poder sobre a ilha —, apesar da miséria reinante em todo o país, não existiam tantos bandoleiros quanto naquele tempo.
Naquela época, a região de Holguín estava dominada pelo analfabetismo. Vovó constituía um caso raro de mulher culta, pois as mulheres naquele tempo não tinham muito acesso à instrução. Ela sabia muita História de Cuba, conhecia História das Américas, entendia de Geografia e Gramática Espanhola, e rezava em latim! Sempre que se aborrecia por algum motivo, entrava a falar em latim.
Dom José Garcia Portelles, ou Dom Pepe, como meu bisavô era mais conhecido, também era um homem de cultura, embora seus conhecimentos não fossem tão profundos quanto os de minha avó. Dom Pepe entendia de política, Economia e Filosofia. Foi ele quem trouxe a Holguín os primeiros livros de Marx, Engels e Lénin; e sempre se dedicou a proteger e ajudar os jovens que mostravam interesse pelo estudo. Durante muito tempo hospedou em seu lar e protegeu o jovem revolucionário Floro Pérez, que mais tarde, na década de 30, foi assassinado.
Meu bisavô, Dom Pepe, lutara do lado do mambisado na guerra de independência organizada por José Martí, porém seu nome não aparece nas crônicas do historiador Miró Argenter, porque, quando sobreveio a intervenção norte-americana em Cuba, Dom José negou-se a entregar suas armas. Recusou os 75 dólares que o governo dos Estados Unidos oferecia aos mambises(3) que entregassem suas armas. Por isso não foi incluído na lista nem recebeu a pensão de veterano.
O pai do meu bisavô Dom José (Pepe) chamava-se Dom Ramón e era primo do general Calixto Garcia, um dos próceres da independência cubana. A família dos Calixtos-García, que abrangia os membros da minha família, passou trinta anos lutando pela independência de Cuba, e muitos dos seus descendentes continuaram participando das lutas revolucionárias cubanas até hoje.
A tradição revolucionária em nossa família era transmitida verbalmente de uma geração a outra; o pensamento preponderante era que, quando cada um chegasse à idade própria, teria de fazer algo para defender Cuba.
Lembro-me de que, quando completei sete anos, certa manhã meu bisavô apareceu montado num cavalo enorme. Parou em frente à porta da casa da minha avó e, sem apear-se, disse-lhe que ia levar-me a passear.
A cidade de Holguín foi fundada no meio de um vale fértil rodeado de elevações e colinas. E Dom Pepe pediu a minha avó Mercedes que me vestisse com minha melhor roupa, porque queria levar-me a passeio e também me dar um presente.
Vovó vestiu-me às pressas. Pôs-me um vestido de fustão azul muito rendado e sapatos de verniz com meias brancas, e amarrou-me na cabeça um grande laço azulado para prender os trinta e oito cachos dos meus cabelos.
E assim foi. Alguém me levantou, senti-me no ar, e em seguida me depuseram em cima do cavalo de Dom Pepe, que me sentou sobre sua coxa direita, com minhas pernas voltadas para a esquerda. Segurou-as com seu braço esquerdo, quase em cima da crina do cavalo. E senti os braços fortes de Dom Pepe; e minhas perninhas, de tão pequeninas, não chegavam a pender da cavalgadura. Então minha avó disse a Dom Pepe: Segure-a bem, Dom José!
Dom Pepe esporeou seu cavalo com aquela elegância toda sua, e aquele enorme animal entrou Rua Libertad acima, enquanto eu observava como ele cumprimentava todas as pessoas que encontrava pelo caminho. Saudava-as com a cabeça, porque suas mãos estavam ocupadas em me segurar e não podia tirar o chapéu.
A certa altura perguntei ao meu bisavô Dom Pepe:
— Vozinho, e o presente, onde está?
Não respondeu de imediato. Continuamos sobre aquele cavalo colossal, até chegarmos ao pé de uma colina, dentre as muitas que rodeiam o vale de Holguín. Aquela colina podia ser vista de qualquer lugar. Era um símbolo da nossa cidade, e todos a conheciam como a Colina da Cruz.
Então ele disse:
— Chegamos.
Encarei-o, imagino, com um olhar cheio de interrogação; porém meu bisavô, Dom Pepe, não me deixou dizer uma só palavra. Começou dizendo que aquele era o presente e que já me pertencia.
— Esta colina sempre pertenceu à nossa família; agora é tua e pertence a todos os cubanos. Nunca deixes que a tomem de ti, Merceditas, pois é tua!
Eu era a primeira bisneta de Dom Pepe, e raras vezes ele passava pela casa da minha avó. Dom Pepe era de estatura mediana, de cabelos encanecidos e uma longa barba de um branco intenso; tinha uns olhos grandes, fulgurantes e inteligentes, que em algumas ocasiões pareciam duas áscuas. Em toda a minha vida, os únicos olhos que achei parecidos com os do meu bisavô Dom Pepe foram os olhos do Che.
— Esta colina — continuou Dom Pepe —, te dou de presente, porém cuida muito bem dela e não deixes que ninguém se aposse dela, pois é tua!
Aquela foi a última vez que o vi. Até hoje nunca consegui esquecer seus olhos nem seu rosto. Era um homem extremamente bonito e varonil e transpirava calma e bondade.
A esposa de Dom Pepe, minha bisavó, Dona Águeda, era uma mulher baixinha, pequenina e enrugadinha que também se sublevou durante a guerra iniciada em 1895.
Notas de rodapé:
(1) Cidade situada numa península da costa mediterrânea do Marrocos, ainda hoje possessão espanhola; sempre foi utilizada como presídio. (Nota do revisor) (retornar ao texto)
(2) Trata-se do ditador Fulgêncio Batista y Zaldivar, derrubado pelo Movimento Revolucionário 26 de Julho, liderado por Fidel Castro Ruz, em 1959. Quando tomou o poder pela primeira vez em 1934, por meio de um golpe de Estado, Batista era apenas sargento do exército. Dominou o país por dez anos, ate 1944, quando foi afastado com a vitória do candidato oposicionista Grau San Martin. Em 1952, depois de um golpe incruento, reassumiu o poder e autopromoveu-se general. (Nota do revisor) (retornar ao texto)
(3) Mambis era a denominação dada aos revolucionários dos exércitos de libertação do domínio espanhol entre 1860 e 1895. Os grandes heróis dessa primeira guerra de libertação foram Carlos Manuel Céspedes, Antonio Maceo, Máximo Gomes e José Martí. Com suas obras, o escritor e poeta José Martí desempenhou um papel fundamental na formação da consciência hispano-americana e na libertação da América Latina. Nasceu em Havana, em 1853, e tombou em combate em 1895, chefiando o exército libertador na batalha de Dos Rios. (retornar ao texto)