Contribuição para o Estudo da Questão Agrária

Álvaro Cunhal

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4 - O Proprietário e o Lavrador


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A conhecida afirmação segundo a qual a propriedade privada é instituição baseada na violência ou no roubo não é mais que "uma frase declamatória". Afirmá-la produto do direito natural, outra declamatória frase.

Note-se que, para roubar, é necessário existir a propriedade privada e, por isso, a "violência poderá mudar o possuidor, mas não poderá criar a propriedade privada como tal"(1); e note-se que o "direito natural" serve tanto os teorizadores radicais pe-queno-burgueses como os ultra-reaccionários. Com a censura ao roubo e à violência e com a apologia do direito natural, tanto se pode condenar como defender a propriedade privada. Tão vazia é a condenação baseada na primeira como a defesa baseada na segunda. Como Marx e Engels enunciaram, a propriedade privada resultou da necessidade do desenvolvimento da produção e do comércio, isto é, de causas económicas(2).

Também a propriedade da terra não foi gerada pela violência, embora a transferência do estado possessório o tenha sido inúmeras vezes. Também ela está ligada (como sublinharam Marx e Engels) a determinadas condições de produção e de troca. Harmonizou-se com as condições das sociedades escravistas e a sociedade feudal, e tornou-se, então, instituição necessária. Não se harmoniza com as próprias do capitalismo e, como este, torna-se dispensável.

Que assim o é, mostra-se claramente não só pelos obstáculos que levanta ao desenvolvimento do capitalismo (conforme se acaba de ver) como ainda pela diferenciação, provocada pelo desenvolvimento do capitalismo, entre a propriedade do solo e a exploração agrícola. Por um lado, como "o direito de propriedade da terra é o direito à renda", aquele que empresta dinheiro ao proprietário, recebendo a renda sob a forma de juro, torna-se o efectivo proprietário e a instituição revela-se inútil no processo de produção. Por outro lado, o proprietário rural, que arrenda as suas terras, não as explorando directamente, revela como "está a mais" no processo de produção capitalista - como salientou Marx e, depois, Lénine(3). O progresso do crédito hipotecário e do arrendamento, evidenciando a dissociação da propriedade territorial e da exploração agrícola, a dissociação das entidades proprietário e lavrador, evidencia também o carácter supérfluo da propriedade privada da terra na economia capitalista.

As Hipotecas

Não existem publicados elementos para se poder calcular, no conjunto nacional, a parte das terras hipotecadas. Muito provavelmente, aproxima-se da verdade a afirmação vulgar de que a agricultura portuguesa se encontra na sua maior parte hipotecada. Mas faltam elementos numéricos para comprová-la, não só pelas deficiências das estatísticas, como ainda porque (na frase de um agrário) "a banca particular é quase muda e quando fala é nos tribunais em execuções"(4). Apenas em estudos magros e dispersos, referidos a esta ou àquela freguesia, são dadas indicações concretas, embora apenas aproximadas, da parte das terras hipotecadas. Algumas, no total das 3.705 freguesias do País, que indicações sérias podem fornecer? Nenhuma conclusão geral daí se pode tirar.

Se não se pode, porém, determinar a parte das terras que se encontram hipotecadas, pode-se, em compensação, determinar se existe uma tendência para aumentar ou para diminuir essa parte, se há cada vez mais ou cada vez menos terras hipotecadas.

Marx escreveu que "os capitalistas tomados isoladamente exploram os camponeses tomados isoladamente pelas hipotecas e a usura, e a classe capitalista explora a classe camponesa pelo imposto"(5). Estas formas de exploração da aldeia pela cidade acentuam-se com a evolução do capitalismo. Não atingem apenas os camponeses pobres e médios; atingem também os grandes proprietários.

No que diz respeito às hipotecas, é geralmente reconhecido o endividamento progressivo dos proprietários rurais. Os grandes são os primeiros a reconhecê-lo, ao falarem na situação difícil da lavoura "recorrendo ao crédito por forma crescente"(6). Não se trata aqui apenas de opiniões genéricas ou de palpites. Apesar das suas enormes deficiências, as estatísticas autorizam afirmar que a percentagem das terras hipotecadas é cada vez mais elevada, que a transferência efectiva da propriedade do solo através das hipotecas é uma tendência irreprimível dentro da economia contemporânea.

Se o número médio de prédios rústicos hipotecados anualmente tem sido depois da última guerra mundial inferior ao que era antes - 14.636, no quinquénio 1934-1938 e 10.930 no triénio 1948-1950 - o valor anual médio das dívidas garantidas subiu de forma apreciável: 97.335 contos em 1934-1938 e 337.792 em 1948-1950(7). Esta diferença nominal só em parte é anulada pela desvalorização da moeda e pelo aumento do preço da terra. O mesmo se nota em relação aos prédios mistos: média anual de 2.658 prédios e 58.591 contos em 1936-1938, e de 2.202 prédios e 296.708 contos em 1948-1950. O recurso ao crédito hipotecário é ainda indicado pelo aumento dos contratos de hipoteca geral (hipotecas sem designação dos prédios), principalmente depois da guerra. No triénio 1936-1938 a média anual foi de 1.021 contratos respeitantes a dívidas no valor de 10.564 contos; no triénio 1947-1949 a média foi de 3.363 contratos e 96.398 contos; e, em 1950, realizaram-se 4.615 contratos respeitantes a dívidas no valor de 116.000 contos.

Para se formar uma idéia mais aproximada da evolução do montante das dívidas hipotecárias contraídas anualmente pelos proprietários rurais antes e depois da guerra, podem considerar-se era conjunto estas formas diversas de hipotecas (valor das dívidas em contos):

  1938 1948 1949
Sobre prédios rústicos 88.308 298.861 278.714
Sobre prédios mistos 73.633 353.345 390.701
Hipotecas gerais 12.579 83,991 117.821
  174.520 736.197 787.236

O aumento nominal de cerca de 350% e o nível de cerca de 800.000 contos de dívidas hipotecárias contraídas tanto em 1948 como em 1949 mostram o crescente recurso ao crédito por parte dos proprietários rurais.

Estes números não dão uma ideia suficientemente exacta da situação, pois, embora indicando um maior recurso ao crédito hipotecário, não indicam se diminui ou se cresce o endividamento dos proprietários rurais no seu conjunto, se diminui ou se cresce a parte das terras portuguesas que se encontram hipotecadas. Podia, na verdade, aumentar o recurso ao crédito hipotecário, mas aumentar em mais elevado grau o cancelamento de hipotecas. Haveria uma maior mobilidade do crédito, mas não um maior endividamento. Para se formar tal ideia exacta, é, pois, necessário confrontar as dívidas contraídas com as dívidas pagas, as hipotecas realizadas com as hipotecas canceladas, e ver em que medida se verifica um apressamento ou um agravamento da situação.

E aqui nos voltamos a queixar das estatísticas como, muitas vezes, o faremos ainda ao longo deste ensaio. Não é só da sua insuficiência. É também da instabilidade de critério que levanta embaraços sem fim aos estudiosos. A partir de 1941, tanto o Anuário Estatístico como a Estatística Agrícola designam à parte as hipotecas sobre prédios "cie natureza diversa, garantindo a mesma dívida" (número e valor das dívidas), ao mesmo tempo que, para os desonerados "de natureza diversa", mantêm a parte o valor, mas incluem o número dos prédios nas colunas de "rústicos", "urbanos" e "mistos". Quem ler apressadamente as estatísticas nota na coluna dos prédios rústicos hipotecados forte diminuição a partir de 1941 e nota que os prédios rústicos "que deixaram de estar hipotecados" são em número muito superior. Isto, entretanto, não corresponde à realidade, conforme uma leitura atenta das estatís-ticas o mostra, sem, entretanto, mostrar essa rea-lidade. Nenhuma ideia exacta se pode formar em relação a alguns anos. Se, a partir de 1948, embora mantendo a mesma classificação em quadros retrospectivos, as estatísticas indicam, em relação ao seu ano, o número de prédios rústicos hipotecados e desonerados e valores das dívidas respectivas, de 1942 a 1947 fica-se sem saber o que se passou. O movimento nos primeiros anos de guerra (1939-1941) e a evolução do número de contratos realizados e cancelados parecem indicar uma anormal desoneração durante a guerra. Mas só conjecturas podem ser feitas. Ao estudar-se a evolução das hipotecas sobre prédios rústicos, tem de interromper-se o estudo em 1941 para continuar só em 1948. Daí a ausência na tabela 11 destes anos, entre os quais se devem salientar os de 1945-1947, cuja consideração teria grande interesse.

TABELA 11
Prédios rústicos hipotecadas e desonerados(8)
(Número e dívidas que garantiam)
Triénios Número Contos
Hipotecados Desonerados Diferença Hipotecados Desonerados Diferença
1930-32 71.614 32.431 39.183 477.782 338.794 138.988
1933-35 50.557 33.170 17.387 298.930 270.826 28.104
1936-38 41.768 32.838 8.930 287.792 219.303 68.489
1939-41 37.405 33.571 3.834 243.683 216.894 26.789
1948-50 32.789 28.881 3.908 1.013.375 313.036 700.339
1951-53 30.601 27.508 3.093 723.033 358.027 365.006

Tomando os últimos nove anos anteriores à guerra, 1930 a 1938, vê-se pela tabela 11 que foram hipotecados 163.939 prédios rústicos e desonerados 98.439. Isto indica que em fins de 1938 estavam hipotecados (sem contar os prédios mistos e as hipotecas gerais) mais 65.500 prédios rústicos do que em princípios de 1930.

Quanto ao valor das dívidas garantidas pelos prédios hipotecados e desonerados, elas somaram respectivamente 1.064.504 e 828.923 contos. E isto indica que em fins de 1938, os proprietários rurais estavam devendo (só através das hipotecas de prédios rústicos) mais 235.581 contos do que deviam em princípios de 1930.

Saltando para depois da guerra, no triénio 1948-1950 foram hipotecados 32.789 prédios rústicos e desonerados 28.881, garantindo respectivamente 1.013.375 e 313.036 contos. Isto significa que, nestes três anos, mais 3.908 prédios rústicos ficaram hipotecados e os proprietários rurais ficaram devendo (só através das hipotecas de prédios rústicos) mais 700.000 contos. O endividamento continuou, posteriormente.

Em qualquer dos triénios considerados, aumentou o número dos prédios rústicos hipotecados e o volume das dívidas por eles garantidas, o que mostra aumentarem cada vez mais as terras hipotecadas. Este aumento não é um facto ocasional, mas uma consequência do desenvolvimento do capitalismo.

Desta forma, o direito de propriedade do solo - o direito à renda - vai-se transferindo dos proprietários rurais para os capitalistas. Os primeiros continuam nominalmente tendo o direito de propriedade; mas os verdadeiros proprietários são os segundos, porque recebem a renda, embora dissimulada em juros. O carácter supérfluo da propriedade do solo na economia capitalista fica completamente em evidência.

Os Arrendamentos

O arrendamento desempenha, na agricultura portuguesa, um importante papel. No total de 853.568 explorações agrícolas, recenseadas em 1952--1954, 165.249, ou seja, 19,4%, eram por arrendamento. Em nove distritos, as explorações por arrendamento representavam mais de um quinto do total e apenas no distrito de Bragança a sua percentagem descia abaixo de 10%. A mais alta percentagem registava-se no distrito do Porto com 41%, seguindo-se os de Braga e Setúbal, com 32%; o de Portalegre, com 30%; o de Lisboa, com 28%; o de Beja, com 26%; o de Évora, com 24%; os da Guarda e Viseu, com 20%(9).

Estes números e percentagens não dão, porém, uma ideia exacta da situação, pois não estão incluídas as explorações em que o agricultor é, ao mesmo tempo, proprietário e rendeiro. O número de tais explorações mistas subia, na mesma data, a 162.984, e, em quase metade delas, o arrendamento era a forma mais importante. No conjunto do território continental, isso sucedia em 41% de tais explorações mistas, destacando-se, pelas elevadas percentagens, o distrito do Porto, com 50%; Braga, Setúbal e Portalegre, com 48%; Viseu, com 47%, e Paro e Guarda com 44%. E, pelas mais baixas percentagens, os distritos de Bragança e Leiria, com 33%, e Santarém, com 32%. Tanto por estas elevadas percentagens de explorações mistas onde o arrendamento predomina, como pela insuficiência da propriedade própria por elas revelada, é legítimo somar às explorações por arrendamento as mistas onde o rendeiro é também proprietário, a fim de se obter uma mais exacta ideia da situação.

No total continental, o número de explorações por arrendamento e mistas subia a 328.233 no total de 850.568 explorações(10), representando assim 39% do total. Embora a situação nos vários distritos se apresente desigual, em nenhum elas representam menos de 24% do número total de explorações (Santarém) e, em compensação, em nada menos de dez distritos, representam 40% ou mais: 54%, no de Lisboa; 51%, no do Porto; 46%, nos da Guarda, Viseu e Beja; 45%, no de Évora; 43%, nos de Braga, Portalegre e Setúbal; 40%, no de Viana do Castelo. Tanto estas percentagens distritais, como a do total nacional de 39%, devem ser consideradas elevadíssimas.

Embora não se possa calcular, na base destes elementos, a parte das terras arrendadas, visto não se conhecerem as áreas correspondentes ao número de explorações, eles indicam, entretanto, por si só, que uma elevada quota da terra portuguesa está arrendada. Se tivermos em conta que o arrendamento se realiza tanto ou mais nas grandes explorações do que nas pequenas, não será ousado presumir que a percentagem das terras arrendadas não se afastará muito da percentagem das explorações por arrendamento e mistas, ou seja, pouco menos de metade no conjunto do continente.

Uma parte considerável dos pequenos agricultores não são proprietários da terra em que trabalham. Não pode, é certo, determinar-se, com precisão, o seu número, nem a extensão das pequenas propriedades arrendadas. Mas variados elementos - contribuição predial, censos, monografias - assim o indicam.

A grande desproporção entre a área média dos prédios rústicos e a área média por proprietário - aquela muito inferior a esta - acusa, além da existência de grandes proprietários de pequenos prédios, a existência de grande número de rendeiros de pequenos lotes. Tal o que acontece no distrito de Braga, onde a área média dos prédios rústicos é de 0,4 ha, e a área média por proprietário 3,4 ha; no distrito do Porto, com, respectivamente, 0,5 e 3,4 ha; no distrito de Viana do Castelo, com, respectivamente, 0,3 e 2,3 ha; no distrito de Viseu, com 0,3 e 2,9 ha(11).

Isto é confirmado pelo censo da população. Apesar de que muitos dos pequenos e médios rendeiros, talvez a maioria, são ao mesmo tempo proprietários, aparecendo como tal no censo - as percentagens de rendeiros acusadas no censo (ou seja, afinal: de rendeiros sem um pedaço de terra) são muito elevadas em alguns distritos. Em relação aos pequenos e médios agricultores (os "isolados" e os "patrões" do censo) mais de um quinto (23,5%) está nessas condições, sendo as percentagens particularmente elevadas no Minho, Douro Litoral e Alentejo: 30% no distrito de Viana do Castelo; 41% no de Braga; 53% no do Porto; 35% no de Portalegre; 34% no de Évora e 31% no de Beja. Em alguns outros distritos, os rendeiros representam também mais de um quinto dos "patrões" e "isolados": Guarda, Viseu e Setúbal, com cerca de 25%, e Castelo Branco, com 21%. Tirando os grandes lavradores e atendendo-se apenas aos "activos na agricultura" é entre os menores cultivadores que mais abundam os não proprietários. Na categoria "isolados" as percentagens dos rendeiros são mais elevadas que entre os "patrões", alcançando 25% no total nacional, passando de 20% em 11 dos 18 distritos do continente e subindo a 61% no distrito do Porto, que se destaca neste particular(12). É evidente que, se se juntassem a estes rendeiros não proprietários aqueles que também o são, as percentagens seriam incomparavelmente mais elevadas.

Monografias relativas a algumas regiões onde predominam as pequenas explorações agrícolas verificam a grande importância do arrendamento. Na "Beira Transmontana" "é o arrendamento a forma de exploração dominante"(13). Em Santo Tirso, calcula-se que "mais de 75% das propriedades da freguesia estão arrendadas a caseiros"(14).

Não oferece, pois, qualquer dúvida de que uma grande parte das pequenas explorações - em vastas regiões a maioria das pequenas explorações - assentam em terra arrendada, ficando patente, nesta dissociação entre o proprietário e o lavrador, a nula função do primeiro em importante parcela da produção agrícola portuguesa.

Tal dissociação não se dá, porém, apenas na pequena produção, mas muito especialmente na grande. Nesta o arrendamento indica ainda com maior clareza a participação do capitalismo na produção agrícola, substituindo-se à classe dos proprietários territoriais proveniente do feudalismo.

É de muito interesse notar, a este respeito, a existência de numerosos rendeiros que não trabalham, sequer, na agricultura. Se notarmos que, em 1952-1954, havia em Portugal 165.249 explorações por arrendamento(15) e um número muitíssimo inferior de rendeiros activos na agricultura (95.171 em 1950)(16), número esse que, em oito distritos, nem sequer alcança metade do das explorações por arrendamento, tem-se uma comprovação da intervenção nos campos de uma classe não proprietária e não activa na agricultura, que aí intervém apenas com o seu capital.

Em todo o território continental, uma grande parte das grandes explorações agrícolas exerce-se em regime de arrendamento. Nas grandes propriedades do Alentejo é elevadíssima a quota das terras arrendadas. No distrito de Évora, as grandes propriedades arrendadas ocupavam uns anos atrás 109.069 ha, correspondendo a 45% do total da área ocupada por grandes propriedades; e as médias propriedades arrendadas ocupavam 34.626 ha, correspondendo a 52% da área ocupada por médias propriedades. No distrito de Portalegre, as grandes propriedades arrendadas ocupavam 87.815 ha, correspondendo a 48% da área ocupada por grandes propriedades; e as médias propriedades arrendadas ocupavam 27.365 ha, correspondendo a 56% da área ocupada pelas médias propriedades(17).

Nas muito grandes propriedades, o arrendamento não ocupa tão importante lugar, porque geralmente ao arrendatário capitalista interessa, mais do que o gigantesco latifúndio - insaciável sorvedouro de capital -, a grande propriedade mais proporcionada as suas possibilidades de investimentos. Apesar, porem, destas restrições, mesmo nas maiores propriedades é considerável a parte arrendada. No distrito de Évora, as terras arrendadas, em muito grandes propriedades, ocupavam 95.525 ha, correspondendo a 29% da área de tais propriedades, e, no distrito de Portalegre, ocupavam 66.136 ha, correspondendo a 33%(18). No conjunto das muito grandes, grandes e médias propriedades (de mais de 60 hectares) a área arrendada subia no distrito de Évora a 237.220 ha no total de 631.208 ha, ou seja, 38%, e no distrito de Portalegre a 181.316 ha no total de 429.844 ha, ou seja, 42%.

Ainda sobre o distrito de Portalegre, elementos do INE, infelizmente não publicados oficialmente, mas fornecidos particularmente a um economista, confirmam a elevada quota do arrendamento nas grandes explorações. "A diminuição das explorações agrícolas por conta própria - escreve - nota-se sobretudo nas largas áreas. No distrito de Portalegre: em 382 explorações de cultura arvense, tendo de 50 a 100 ha, apenas 152 se faziam por conta própria; em 115, tendo de 500 a 1.000 ha, apenas 40 eram por conta própria; em 11, tendo de 2.500 a 5.000 ha, apenas 2 eram por conta própria; e, finalmente, em 3, tendo mais de 5.000 ha, nenhuma era explorada por conta própria."(19) E, servindo-se dos mesmos elementos não publicados, calcula que no distrito de Portalegre, de 417.070 ha de cultura arvense apenas 153.935 ha são de exploração por conta própria, mostra que "é em geral a grande exploração que contém áreas arrendadas"(20), afirma que "pode dizer-se afoitamente que, tanto em área como em número, prevalece no distrito de Portalegre a forma de exploração agrícola não exercida directamente pelo proprietário" e conclui que "apenas um terço da área é inteiramente de conta própria"(21).

Não dispomos de dados tão completos em relação a outros distritos. Mas, no que respeita ao de Beja, não só se afirma, em minucioso estudo de uma freguesia que "na grande propriedade são mais importantes as formas indirectas de exploração, principalmente o arrendamento"(22), como, no estudo de todo um concelho, o de Moura, se vê ser também na grande propriedade muito elevada a percentagem de terras arrendadas. Uns anos atrás neste concelho, no total de 70.311 ha ocupados pela grande propriedade, 27.979, ou seja, 40%, eram explorados em regime de arrendamento (ignorando nós se estão incluídas as parcerias), freguesias havendo em que as percentagens subiam a mais de 50%: 54%, na Póvoa; 61%, em Santo Aleixo; 79%, na Amareleja(23).

Da situação no distrito de Setúbal pode fazer-se uma ideia através dos estudos da zona pliocénica ao sul do Tejo. Apesar de ser a região do País onde existem os mais extensos latifúndios e estes não serem propícios ao arrendamento, as explorações agrícolas em regime de arrendamento (excluídas as parcerias) ocupam 106.700 ha, no total de 451.000 ha, ocupados pelas médias e grandes explorações, o que corresponde a 24%(24).

Esta percentagem está, porém, muitíssimo abaixo da realidade uma vez que "não foi considerada" a forma predominante da dissociação da propriedade e da lavoura na região - os seareiros. Admitindo--se, como se admite, que nesses 451.000 ha "mais de metade da superfície ocupada pela cultura arvense é dada a seareiros"(25), é de admitir, tendo em conta os apontados 24% das terras arrendadas, que mais de metade das grandes e médias propriedades se encontram arrendadas.

O arrendamento da grande propriedade não é exclusivo do Alentejo. No Minho, pode dizer-se da freguesia de Santo Tirso que "o caso mais normal é o da grande e média propriedade estar arrendada no todo ou em parte"(26). E na Cova da Beira, nas ricag várzeas do Zêzere, onde 23.000 no total de 75.000 ha são ocupados por grandes propriedades, "encontramos uma forma de exploração nitidamente dominante - a exploração por arrendamento"(27).

Embora seja vulgar o arrendamento de pequenas parcelas em grandes propriedades, sucedendo isso tanto no Alentejo, como no Minho ou nas Beiras, e embora haja grandes rendeiros que subarrendam pequenos lotes, sucedendo isto também tanto com os seareiros do Alentejo como com os caseiros do Minho ou os rendeiros das Beiras - o arrendamento de grandes propriedades está, muitas vezes, ligado a novas e importantes inversões de capital na exploração agrícola. É o que sucede com a cultura do arroz, particularmente na bacia do Tejo, em que o arrendamento "resulta da iniciativa de poderosos lavradores que se arriscam em empreendimentos de vulto"(28).

Em todas as regiões onde se cultiva o arroz é muito importante a parte de terras agricultadas por rendeiros e parceiros. Calculada a quota das várias formas de exploração segundo a quantidade de arroz manifestada, essa parte subiria a 53% no total nacional. Quer dizer: em mais da metade das explorações arrozeiras do País o agricultor não é o proprietário. A situação não é, porém, idêntica nas três grandes zonas do arroz. Na zona norte (vales do Vouga e Mondego) a percentagem seria de 44%; na zona sul (Sado e Alto e Baixo Alentejo) 39%; na zona central (bacia do Tejo) 65%(29). É precisamente nesta última zona, onde cabem a rendeiros (e parceiros), cerca de dois terços da produção, que o arrendamento corresponde a "empreendimentos de vulto" de "poderosos lavradores", ou seja, afinal, à intervenção dominante na produção agrícola de grandes capitalistas, dos tais "autênticos empresários capitalistas" de que falava Engels(30). Não é estranho a essa intervenção o acentuado progresso desta cultura.

Mostra-se, por todos os números citados, que uma parte considerável da agricultura portuguesa é explorada em regime de arrendamento. E, se essa parte considerável se não pode determinar com precisão à escala nacional (embora muitos elementos indiquem orçar por metade ou ser pouco inferior à metade), fica-se, entretanto, com a ideia clara e suficientemente demonstrada de que em vastíssimas áreas e em importantes culturas o arrendamento é a forma de exploração dominante. Se na produção agrícola feudal produtor e proprietário se identificam, a dissociação entre a propriedade e a exploração através do arrendamento representa a decomposição dos vestígios feudais na economia capitalista, é um produto do desenvolvimento do capitalismo e tende por isso a aumentar.

A comparação dos censos de 1940 e 1950 fornece um dos raros elementos estatísticos existentes comprovativos desta tese. Há, é certo, entre os dois censos, diferenças de nomenclatura e de arrumação, destacando-se no censo de 1950 a fusão de "parceiros" e "rendeiros" numa só rubrica ("rendeiros") e a transferência de quase 100.000 pessoas activas na agricultura da rubrica "patrões" para a rubrica "isolados". Mas o número e percentagem de rendeiros e parceiros no conjunto de "patrões" e "isolados" (isto é: de pequenos e médios agricultores) é perfeitamente comparável. O censo de 1940 indicava, no total de 418.671 "patrões" e "isolados", 80.387 rendeiros e parceiros, ou seja, 19%; o censo de 1950, no total de 405.283, indica 95.171 rendeiros, ou seja, 24 %. Estes números indicam apreciável progresso do arrendamento.

Também em estudos regionais, embora deficientemente fundamentados, "nota-se de um modo geral tendência para o arrendamento progredir"(31). E nas sínteses mais autorizadas da situação económica nacional, a mesma opinião aparece como respeitando ao conjunto da agricultura portuguesa: "O lavrador proprietário de terras - diz-se num relatório do Banco de Portugal - está a renunciar cada vez mais a explorá-las directamente, entregando-as a rendeiros."(32) Esta tendência da economia capitalista é universalmente reconhecida.

É de notar, entretanto, que, cabendo já a rendeiros talvez metade ou não muito menos das terras agrícolas portuguesas, o ritmo do progresso do arrendamento pode afrouxar na actualidade sem que isso traduza qualquer afrouxamento no ritmo do desenvolvimento do capitalismo na agricultura. O aumento do arrendamento deu-se em ritmo acelerado quando a classe dos proprietários territoriais era ainda uma classe hostil ao próprio capitalismo e por este hostilizada. Então o arrendamento era forma essencial através da qual o capitalismo apressava o ritmo da dissociação da propriedade da terra e da exploração agrícola. Pelo arrendamento, os capitalistas tornavam-se os exploradores do solo, apesar de que a propriedade deste continuava a pertencer a uma classe hostil e pré-capitalista: os proprietários rurais. Então o capitalismo tinha, às vezes, consciência de que a propriedade particular da terra era entrave ao seu próprio desenvolvimento e mais de um dos seus teóricos pôs em causa a legitimidade dessa propriedade.

Posteriormente, o próprio desenvolvimento do capitalismo aproximou os interesses de proprietários rurais e capitalistas. Entra-se, assim, como numa nova fase do desenvolvimento do capitalismo no referente à dissociação da propriedade da terra e da exploração agrícola. Ainda que os arrendamentos conservem toda a sua importância e todo o seu significado, pode afrouxar o ritmo do seu progresso, pode mesmo haver retrocessos, resultantes da pro-letarização de pequenos rendeiros, podem notar-se importantes movimentos no sentido da exploração "por conta própria" de grandes empresas agrícolas capitalistas (sociedades ou capitalistas individuais), sem que afrouxe o ritmo do desenvolvimento capitalista.

De qualquer fornia, a posição do arrendamento na agricultura portuguesa, e particularmente nas grandes explorações, mostra o adiantamento do processo de desenvolvimento do capitalismo em Portugal, evidencia a dissociação entre a entidade proprietário e a entidade lavrador e junta, ao que já se disse sobre hipotecas de prédios rústicos, nova prova da superfluidade da instituição da propriedade privada da terra na economia capitalista.


Notas:

(1) Engels, Anti-Duhring, Segunda Parte, II. (retornar ao texto)

(2) Idem, ibidem, Segunda Parte, II. (retornar ao texto)

(3) Lénine, A Questão Agrária e os "Críticos" de Marx, II. (retornar ao texto)

(4) Matos Taquenho na Assembleia Nacional, Diário das Sessões, 19 de Abril de 1952, p. 751. (retornar ao texto)

(5) Marx, As Lutas de Classe em França de 1848 a 1850, XII. (retornar ao texto)

(6) F. Melo Machado, entrevista ao Jornal do Comércio de 13 de Fevereiro de 1948. (retornar ao texto)

(7) Estes números, bem como aqueles que se seguem nesta matéria, são do Anuário Estatístico e Estatística Agrícola, ou calculados sobre elementos destas publicações. (retornar ao texto)

(8) Na base de elementos do Anuário Estatístico e Estatística Agrícola. (retornar ao texto)

(9) Calculado na base do Inquérito às Explorações Agrícolas d0 Continente, 1952-1954 do INE. (retornar ao texto)

(10) INE, Inquérito às Explorações Agrícolas do Continente. (retornar ao texto)

(11) Calculado na base de elementos do Anuário Estatístico das Contribuições e Impostos de 1949 (número de prédios Rústicos e de proprietários) e Anuário Estatístico (superfície territorial). (retornar ao texto)

(12) Calculado na base do censo de 1950. (retornar ao texto)

(13) Teles de Vasconcelos, cit. por E. Castro Caldas, nas de Exploração da Propriedade Rústica, p. 147, e Lima Alguns Aspectos, p. 97. (retornar ao texto)

(14) Inquérito à Freguesia de Sto. Tirso, p. 131. (retornar ao texto)

(15) Inquérito às Explorações Agrícolas do Continente. (retornar ao texto)

(16) Censo. (retornar ao texto)

(17) E. Castro Caldas, Formas de Exploração, pp. 143-144. (retornar ao texto)

(18) Idem, ibidem, pp. 143-144. (retornar ao texto)

(19) Araújo Correia, "Parecer sobre as Contas Gerais do Estado de 1952", Diário das Sessões de 10 de Março de 1954. p. 133. (retornar ao texto)

(20) Idem, ibidem, p. 134. p. 134. (retornar ao texto)

(21) Idem, ibidem, p. 135. (retornar ao texto)

(22) Inquérito à Freguesia de Cuba, p. 186. (retornar ao texto)

(23) Calculado na base de elementos de Vaz Pinto, cit. em E. C. Caldas, Formas de Exploração, p. 151. (retornar ao texto)

(24) Na base de elementos de J. Sousa e Melo, A Propriedade e a Exploração na Mancha Pliocénica ao sul do Tejo, pp. 31-32. (retornar ao texto)

(25) Idem, ibidem, p. 26. (retornar ao texto)

(26) Inquérito à Freguesia de St. Tirso, p. 131. (retornar ao texto)

(27) E. C. Caldas, Formas de Exploração, p. 145. (retornar ao texto)

(28) Idem, ibidem, pp. 149-150. (retornar ao texto)

(29) Idem, ibidem, pp. 148-150. (retornar ao texto)

(30) Engels, Anti-Dühring, Segunda Parte, IX. (retornar ao texto)

(31) Inquérito à Freguesia de Sto. Tirso, p. 132. (retornar ao texto)

(32) Relatório do Conselho de Administração do Banco de Portugal, gerência de 1940, p. 39. (retornar ao texto)

Inclusão 24/07/2006