A Revolução de Abril 20 Anos Depois

Álvaro Cunhal

Fevereiro de 1994


Primeira Edição: Revista Vértice n° 59, de Março-Abril de 1994.
Fonte:
Partido Comunista Português - Organização Regional de Lisboa
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo


Com a aproximação de 20 anos decorridos desde 25 de Abril de 1974, multiplicam-se as iniciativas ligadas à comemoração da data. Discute-se o quadro das comemorações oficiais. Partidos políticos e comentadores de todos os quadrantes alargam o espaço às mais variadas opiniões sobre a matéria. Uma tónica tende a aparecer dominante na comunicação social: reescrever a história, branquear o mais possível o passado fascista, denegrir o essencial da revolução democrática, falsear papéis e responsabilidades e pretender não só explicar mas justificar a política antidemocrática actual e a gravíssima situação que está a criar ao país.

A resistência ao governo de direita e a luta por uma alternativa exigem no momento presente uma rearrumação de forças não coincidente com a sua arrumação ao longo dos últimos 20 anos e particularmente em momentos cruciais da revolução e do processo contra-revolucionário. Relativamente à revolução de Abril, a instauração e institucionalização do novo regime, as ofensivas antidemocráticas, continuam a existir sérias divergências entre as diversas forças políticas e entre participantes (civis e militares) que tiveram destacado papel nestes anos da vida nacional Um esforço é necessário para que tais divergências não sejam obstáculo à convergência democrática actualmente necessária. Sucede porém que ao comemorar-se o 20.° aniversário da revolução, cada qual expressa as suas opiniões. Muitos o estão fazendo. Também da nossa parte é obrigação fazê-lo. Para que se respeite a verdade histórica. E porque no nosso entender o futuro de Portugal democrático só com os valores de Abril pode ser assegurado.

1 — A ditadura fascista — governo terrorista dos monopólios e latifundiários

A revolução de Abril pôs fim à ditadura fascista. Compreende-se pois que um dos aspectos da contestação e denegrimento do 25 de Abril consista numa campanha de desresponsabilização, branqueamento e mesmo valorização da ditadura. Trata-se de uma tentativa de revisão da história tendo, nas opiniões mais significativas, dois elementos centrais.

No plano socioeconómico, pretende-se que o «salazarismo» foi a submissão ao capitalismo retardatário e o bloqueamento do desenvolvimento económico e o «marcelismo» a política do «capital progressista» voltado para o desenvolvimento. Esconde-se assim a formação e domínio do capitalismo monopolista.

A verdade é que em Portugal a acumulação e a centralização de capital, a formação dos grupos monopolistas dominantes, em resumo o capitalismo monopolista não resultou directamente do decorrer das leis do desenvolvimento económico capitalista. Resultou sim da intervenção e imposição coerciva do Estado, nomeadamente a partir de 1945. Foram marcos importantes desse desenvolvimento as leis da «reorganização industrial» (1945) e do «fomento industrial» (1972) assim como o «Plano Intercalar de Fomento». Como significativo passo dessa evolução, desenvolveu-se nos fins da década de 60 a concepção do que então se chamou «governo de colaboração». São nomeados membros dos conselhos de administração de grandes empresas não só para o Conselho Económico Interministerial, como inclusivamente para o próprio governo. Nem isso porém seria preciso. É característico da evolução do sistema socioeconómico e da ditadura fascista que os grupos monopolistas criados pelo poder político se tornaram os seus senhores.

No plano político, o agora pudicamente chamado «antigo regime» mesmo no tempo de Salazar não teria sido uma ditadura fascista nem mesmo no dizer de alguns um «regime ditatorial». Teria sido apenas um «autoritarismo conservador». Com Marcelo Caetano teria sido uma política de «liberalização» e «democratização» do regime. A verdade é que foi e é correcto caracterizar o regime anterior ao 25 de Abril como uma ditadura fascista. Salazar tinha como inspiradoras as ditaduras fascistas da época. Ele próprio sublinhou a semelhança da ditadura portuguesa com a ditadura fascista italiana. Fez copiar a «Carta del Lavoro» para o Estatuto do Trabalho Nacional. Inseria nos volumes dos seus discursos a sua própria imagem tendo na secretária um retrato de Mussolini, cujo «génio político» gabava. Colaborou estreitamente com Hitler apoiando-o durante a guerra. Apoiou Franco no golpe contra a República, na guerra civil e na ditadura terrorista imposta ao povo espanhol. Liquidou liberdades e direitos. Perseguiu, fez prender, torturar com frequência até à morte, condenar até 20 e mais anos de prisão e mesmo assassinar friamente muitos dos que se opunham à ditadura. Criou uma polícia política toda poderosa (a PIDE), uma milícia fascista (a Legião Portuguesa), uma organização fascista paramilitar da juventude (a Mocidade Portuguesa). E até no ritual político copiou as marcas do fascismo: o braço estendido, o uniforme militarizado, o boné e as botas. Existe uma fotografia típica de Marcelo Caetano então Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, com uma farda e boné de tipo militar e braço estendido à boa maneira fascista. Mais que o retrato de um homem é o retrato de uma época.

Durante dezenas de anos gerações e gerações de portugueses e portuguesas deram tudo de si próprios — muitos deram a vida — na luta contra a ditadura fascista e pela liberdade. Foi uma luta heróica dos trabalhadores, do povo, dos comunistas e outros democratas. Não contra fantasmas, mas contra o fascismo na sua expressão portuguesa. Antifascistas se chamaram e antifascistas foram. Quando actualmente alguns, pretendendo reescrever a história, negam que em Portugal tenha havido uma ditadura fascista e procuram branqueá-la diminuindo as responsabilidades de Salazar e gabando particularmente a suposta democratização de Marcelo Caetano, o que querem no fim de contas é pôr em causa a revolução de Abril.

Para a compreensão da situação e uma caracterização objectiva e correcta da ditadura, a definição simultânea do sistema socioeconómico e do regime político é essencial para qualquer análise da história de Portugal no século XX. Não se trata de uma questão menor. Essencial não é palavra excessiva.

O PCP deu nesse tempo uma definição, que se tornou clássica, da ditadura fascista: o governo terrorista dos monopólios associados ao imperialismo estrangeiro e dos latifundiários.

Esta definição baseou-se numa análise profunda da sociedade portuguesa, das estruturas socioeconómicas, das relações e arrumação das classes sociais, do regime político. É fundamental para o conhecimento e a compreensão da situação de Portugal antes do 25 de Abril, da revolução de Abril e suas conquistas, da agudeza das contradições, conflitos e lutas da democracia instaurada, do processo contra-revolucionário ulterior, e ainda da perspectiva actual da evolução da situação nacional e da posição de que Portugal precisa.

A apontada definição constitui como que «uma chave» que permite a compreensão do período histórico que vivemos nas últimas décadas.

2 — A crise geral da ditadura e a situação revolucionária

Na medida em que passavam os anos, a ditadura fascista debatia-se com numerosas contradições, que corroíam as suas próprias bases de apoio social, político e militar. Na década de 60 a ditadura entrou numa crise geral que se foi agravando até à situação revolucionária que propiciou a insurreição.

Quatro aspectos essenciais caracterizaram a crise geral da ditadura: o rápido agravamento das contradições e dificuldades económicas e sociais provocadas pelo capitalismo monopolista formado e institucionalizado pela ditadura; o desencadeamento e consequências das guerras coloniais; as divisões e conflitos no próprio campo social, político, institucional e militar da ditadura; e a amplitude social e o ascenso impetuoso da luta popular.

A rápida centralização de capitais e a formação e domínio dos grandes grupos monopolistas,
com o agravamento da exploração dos trabalhadores e a ruína das classes médias, voltou contra a ditadura a esmagadora maioria da população. Reduziu-se a base social de apoio da ditadura. Alargou-se a base social de apoio das forças democráticas.

A guerra colonial, injusta por natureza, sacrificando a vida de muitos milhares de jovens, enlutando famílias, consumindo encargos incomportáveis para o país e evoluindo desfavoravelmente para os exércitos colonialistas, defrontou a oposição do povo e em particular da juventude. Tanto como realidade objectiva como na consciência geral, a guerra colonial traduziu-se na convergência da luta do povo português pelo derrubamento da ditadura e pela democracia com a luta dos povos coloniais contra a dominação colonial e pela independência.

As divisões e conflitos aos mais altos níveis no próprio campo da ditadura (de que são exemplos Craveiro Lopes, Botelho Moniz, Humberto Delgado, Henrique Galvão, Sá Carneiro e outros) enfraqueceram o poder político e a sua capacidade de entravar tanto o aprofundamento da crise como o desenvolvimento e radicalização da luta contra a ditadura.

Finalmente, factor determinante, o vigoroso e impetuoso fluxo da luta popular em todas as grandes frentes (movimento operário, movimento democrático, movimento da juventude, acção diversificada dos intelectuais, luta contra a guerra colonial com resistência crescente nas próprias forças armadas), prenunciava a aproximação de uma crise revolucionária.

Com o desaparecimento de Salazar a política do governo de Marcelo Caetano caracterizou a agudização de todas as contradições e a aproximação de uma situação revolucionária.

Quando da derrota do fascismo (1945) na II Guerra Mundial já Salazar e as classes governantes tinham tido um primeiro assomo de inquietação quanto à possibilidade de sobrevivência da ditadura. Tal a razão da manobra pseudo-democrática e pseudo-eleitoral lançada então por Salazar. Depois, intensificando a repressão e recebendo apoio directo da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França, a ditadura pôde manter-se.

Com o fluxo e a radicalização da luta popular e com as guerras coloniais, a crise geral do regime pôs de novo aos governantes a questão da sobrevivência. Ou seja, como impedir uma explosão revolucionária que previsivelmente poria em causa o poder da camarilha fascista governante e do capital monopolista.

É assim que, desaparecido Salazar em 1968, a política do governo de Marcelo Caetano, formado em Setembro de 1968 por compromisso entre os «liberalizantes» e os «ultras», oscila entre a busca e ensaios de uma «liberalização do regime» e o recurso às formas e métodos tradicionais da repressão fascista.

A evolução da situação e o contínuo aprofundamento da crise revelaram porém que se tinha chegado a uma tal situação que qualquer dos caminhos era inadequado e impotente para impedir o curso revolucionário em impetuoso desenvolvimento. Criou-se uma situação em que, como Lénine caracterizou em termos gerais, «os governantes não podem mais governar e os governados não querem mais ser assim governados».

Amadureciam as condições não para uma liberalização a partir do poder político mas para a insurreição militar e popular.

3 — Os objectivos da revolução antifascista e o levantamento nacional

A caracterização da ditadura, o programa para a futura democracia e a via para o derrubamento do fascismo constituíram elementos inseparáveis que diferenciaram os diversos sectores antifascistas: «três análises, três programas e três vias», caracterizaram então as concepções e actividades do PCP, da burguesia liberal e do radicalismo esquerdista.

Análises das estruturas socioeconómicas, da natureza do poder e do Estado e do correspondente regime político - ditadura fascista como governo terrorista dos monopólios (associados ao imperialismo estrangeiro) e dos latifundiários como definiu o PCP? Ou o «salazarismo» como uma ditadura pessoal bloqueando o desenvolvimento do capitalismo e o «marcelismo» como política voltada para o desenvolvimento e para a democratização?

Programas para Portugal após a ditadura - instauração de uma democracia nas suas quatro vertentes (política, económica, social e cultural) como apontava o PCP? ou regime político resultante da liberalização e democratização da própria ditadura mantendo o domínio dos monopólios? Ou uma intitulada revolução proletária com este nome mas sem objectivos claramente definidos?

Vias para pôr termo à ditadura - levantamento nacional armado como apontava o PCP? ou desagregação e queda automática do regime e compromisso da Oposição? ou acção guerrilheira e terrorista?

O Programa do PCP aprovado em 1965 no VI Congresso (último realizado na clandestinidade) definiu a revolução antifascista como uma revolução democrática e nacional com oito objectivos fundamentais:

  1. Destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático;
  2. Liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico geral;
  3. Realizar a Reforma Agrária, entregando a terra a quem a trabalha;
  4. Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral;
  5. Democratizar a instrução e a cultura;
  6. Libertar Portugal do imperialismo;
  7. Reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência;
  8. Seguir uma política de paz e amizade com todos os povos.

Estes oito objectivos sintetizam uma política democrática e nacional em todas as suas vertentes.

A burguesia liberal e outros sectores antifascistas defendiam a instauração de um regime político democrático, mantendo entretanto as estruturas socioeconómicas do capitalismo monopolista.

A perspectiva de uma revolução que, além da conquista da liberdade e da democracia política, realizasse uma transformação das estruturas socioeconómicas liquidando o poder económico e político dos monopólios e dos latifundiários não só não era partilhada como assustava esses sectores. Temendo uma revolução, temiam uma via insurreccional.

A via apontada pelas diversas forças políticas para o derrubamento da ditadura era coerente com as respectivas análises relativas á natureza do fascismo e com os objectivos que apontavam para o futuro regime democrático.

Da crise da ditadura a burguesia liberal e outros sectores antifascistas concluíam a inevitabilidade da sua «desagregação interna» e da sua «queda automática». Tais concepções que vinham do tempo de Salazar, traduziram-se com Marcelo Caetano na crença e no objectivo da «liberalização» e «democratização» do regime, seja por iniciativa do próprio Marcelo Caetano, seja pela pressão dos «dissidentes» do regime.

No PCP, durante certo período (1957-1959) também se admitiu «a resolução pacífica do problema político português». Corrigindo e ultrapassando (1961) essa concepção, desvendando e apontando como realidades inseparáveis a ditadura política e o domínio económico dos monopólios e latifundiários, não alimentando ilusões acerca da democratização a partir da própria ditadura fascista, o PCP considerou que o governo fascista, que respondia pela força e « violência às reclamações populares e democráticas, só pela força poderia ser derrubado. O PCP apontou assim o caminho da insurreição armada, do levantamento nacional popular e militar, admitindo quer a simultaneidade destes dois elementos, quer que um precedesse o outro.

É de lembrar que, no movimento comunista internacional, e particularmente, a partir do XX Congresso do PCUS, e em grande parte sob a pressão da política externa da URSS, generalizou-se uma corrente relativa à «solução pacífica» dos problemas políticos, incluindo na luta contra as ditaduras fascistas. A linha do levantamento nacional armado era frequentemente apontada como irrealista e «esquerdista». Dirigentes de outros partidos diziam a dirigentes do PCP: «Esperem pela queda de Franco, depois será para vós mais fácil.» O PCP tinha porém confiança em si próprio e no povo português em cuja luta desempenhava um papel determinante. Detectou correctamente a crise revolucionária que se aproximava e apontou justamente o caminho. A revolução antifascista em Portugal teve lugar em Abril de 1974 com transformações profundas na realidade económica e social. A queda da ditadura de Franco veio a ter lugar por sua morte em 1975 mantendo-se intacto o poder do grande capital.

Os acontecimentos mostraram que as análises feitas, os oito objectivos fundamentais definidos e a via apontada pelo PCP para o derrubamento da ditadura correspondiam à situação e às características e elementos da revolução antifascista que a situação exigia.

Mostraram também o valor e importância em termos políticos, históricos e ideológicos de duas observações e advertências explicitadas e sublinhadas no Programa do PCP. A primeira, que a «instauração das liberdades democráticas, a destruição do Estado fascista e a sua substituição por um Estado democrático, constituem um objectivo central da revolução democrática e nacional e uma condição primeira e indispensável para a realização dos seus outros objectivos; A segunda, que «sem a realização de todos eles [os oito objectivos] a revolução democrática e nacional não está acabada e não estará assegurado o desenvolvimento democrático e independente da sociedade, portuguesa».

A vida veio comprovar o acerto destas duas observações e advertências.

4 — As forças motoras da revolução democrática e as contradições ao nível do poder

25 de Abril é uma data. Data marcada pelo levantamento militar vitorioso que derrubou o governo fascista e abriu caminho à instauração de um regime democrático.

A revolução de Abril não se limitou porém a esse heróico acto libertador e à acção ulterior do MFA e dos seus capitães para a instauração da democracia. Ao levantamento militar vitorioso sucedeu-se no imediato um levantamento popular a nível nacional que passou a ser, a par do elemento militar, um elemento determinante da revolução democrática. A revolução de Abril não foi apenas um acto, mas um processo.

O movimento popular de massas apoiou, mas não se limitou a apoiar os militares. Numa dinâmica de intervenção de massas, ultrapassando largamente as estreitas marcas do «Programa do MFA», uma vaga revolucionária popular irresistível procedeu a transformações profundas da sociedade portuguesa.

Nos anos da revolução (1974-1975) a dinâmica da acção popular de massas, com papel determinante da classe operária, foi imparável.

Essas transformações foram justamente apelidadas de «conquistas de Abril» e foram elas que legitimamente caracterizaram o essencial da revolução antifascista ou seja a revolução democrática portuguesa do século XX. Inacabada é certo, mas de extraordinária projecção e significado histórico.

A aliança «Povo-MFA» não foi uma expressão propagandística. Foi uma realidade de capital importância no decurso da instauração da democracia. Aliança contraditória, tanto na influência recíproca dos seus dois elementos, como nas divergências profundas existentes simultaneamente nas forças armadas, nos partidos políticos que assumiam responsabilidades no poder e na ligação de militares e partidos com o movimento popular. A aliança foi entretanto o eixo das forças motoras das transformações democráticas alcançadas com a revolução, da defesa das liberdades e da resistência a sucessivas tentativas contra-revolucionárias.

Uma originalidade da revolução democrática portuguesa é que as grandes conquistas democráticas não partiram da iniciativa do poder político, mas da acção revolucionária das massas. A revolução democrática portuguesa confirmou porém uma outra valiosa experiência da história dos povos. As massas populares em movimento, sem o poder político, podem realizar profundas e progressistas transformações na sociedade. Podem mesmo (e é o caso da revolução de Abril) provocar uma mudança de facto do sistema socioeconómico e do regime político. Mas, se não alcançam o poder e este acaba por cair nas mãos dos inimigos das transformações democráticas? as massas populares, apesar da sua resistência, acabarão por perder as suas conquistas e o antigo sistema socioeconómico e o antigo regime (com mais ou menos variantes) podem vir a ser restaurados.

Os principais órgãos do poder - MFA e governo - tinham uma composição política extremamente heterogénea. Nos Governos Provisórios participaram forças e elementos com projectos não só diferentes mas incompatíveis em relação a alguns objectivos fundamentais. O MFA tinha uma composição ainda mais heterogénea participando nele elementos que iam desde a direita reaccionária e saudosista do passado fascista ao esquerdismo radical e aventureirista.

O diferendo abrangia todas as vertentes do sistema e do regime (económica, social, política e cultural). A evolução objectiva do processo revolucionário conduziu, a par de um regime político avançado, a reformas e transformações profundas nas estruturas socioeconómicas, na política social, na política do ensino e da cultura e, com o fim da guerra colonial, ao reconhecimento do ascenso à autodeterminação e independência dos povos das colónias portuguesas. Opondo-se, resistindo e contrariando essa evolução, as forças reaccionárias e conservadoras procuraram por todos os meios, incluindo conspirações, golpes, provocações e terrorismo, travar o processo revolucionário e impôr, ou uma ditadura com verniz pseudo-democrático, ou um regime parlamentar duma democracia musculada que assegurasse o capitalismo monopolista tanto no domínio interno como em formas de exploração neocolonialista no «Ultramar».

No que respeita à arrumação das forças sociais, a classe operária, os trabalhadores na indústria, na agricultura, no comércio e nos serviços, acompanhados pela activa participação de intelectuais, da juventude, de vastíssimos sectores da pequena burguesia, constituíram a frente social de apoio à revolução democrática e uma força social motora das transformações e conquistas democráticas e da configuração e final instauração do regime democrático. Da população rural do Centro e Norte manifestava-se reserva, desconfiança, passividade e aceitação fácil das intrigas e campanhas reaccionárias dos partidos, dos caciques locais .e de sectores do clero ligados à ditadura. Não oposição actuante e de massas.

A resistência activa fundamental às reformas e transformações democráticas e à instauração da democracia, resistência desesperada e violenta, que se desenvolveu com extraordinária agudeza em todas as estruturas económicas, sociais e políticas e em todas as zonas da vida nacional, partia dos grupos monopolistas e dos grandes latifundiários, senhores do poder no tempo da ditadura e dos sectores políticos e militares que ao nível das várias novas instâncias do poder conduziam essa resistência.

O curso natural da instauração do novo regime democrático foi dificultado e em alguns momentos fortemente perturbado e posto em risco por sete principais factores.

Pelas contradições, divisões e conflitos no próprio MFA, em cuja composição participavam tendências que iam da extrema direita ao esquerdismo anarquizante.

Pela atribuição inicial das mais altas responsabilidades a generais (Spínola, Galvão de Melo, Silvério Marques e outros) que estavam manifestamente contra a revolução democrática - o que se pode considerar à partida um primeiro erro dos capitães de Abril.

Pelas contradições, divisões e conflitos entre as forças políticas participantes nos Governos Provisórios (PCP, PS, PPD) impedindo a aprovação e aplicação de um real programa de governo e gerando ou agudizando em toda a sociedade confrontos, radicalização e instabilidade de todos os processos de transformação democrática.

Pela consequente criação e multiplicação de centros de decisão e de poder civil e militar.

Pelas actividades provocatórias e divisionistas de um esquerdismo pseudo-revolucionário, tanto nas forças armadas como no movimento popular.

Por provocações de grande dimensão e efeito cuja génese, promoção e organização não foram até hoje esclarecidas, mas que indiciavam a mão e experiência de serviços especializados do imperialismo.

Finalmente pela resistência e conspiração dos sectores reaccionários e conservadores participantes ou não nos órgãos do poder civil e militar (incluindo os de mais alta responsabilidade) e as sucessivas tentativas de golpes contra-revolucionários.

Constitui uma grosseira falsificação da história apresentar como eixo dos conflitos no decurso da revolução democrática supostas, tentativas de tomada do poder pelo PCP. O PCP participava é certo no poder, mas no governo tinha apenas dois Ministros e nas forças armadas não tinha influência predominante. A intervenção do PCP no processo de democratização da vida nacional deu-se sobretudo pela sua profunda influência na classe operária, nos trabalhadores, nas massas populares, pelo apoio que dava e pelo apoio que recebia, e pelo facto de os objectivos que colocava à revolução corresponderem a necessidades objectivas e a profundas aspirações, embora nem sempre consciente e geralmente assumidas, das mais vastas massas populares.

Verificaram-se várias tentativas de golpes político-militares para a tomada do poder. Não pelos comunistas. Mas por aqueles que, usando todos os meios e processos, queriam o afastamento dos comunistas e travar e impedir a transformação democrática da sociedade portuguesa.

5 — Golpes contra-revolucionários e terrorismo bombista

As forças conservadoras e reaccionárias procuraram por todos os meios impedir as transformações democráticas que a classe operária e as massas populares apoiadas por sectores progressistas (civis e militares) estavam realizando.

Logo após o dia 25 de Abril, quando o poderoso levantamento popular, intervindo activamente com claros objectivos de transformação, deu um novo curso à evolução do processo resultante do levantamento militar, as forças conservadoras e reaccionárias apoiadas em elementos participantes nas mais altas instâncias militares, no governo e no aparelho do Estado, reagiram ao rumo dos acontecimentos.

Resultante das contradições internas, o Programa do MFA colocava objectivos muito limitados, incluindo o relativo à instauração das liberdades democráticas. Assim, não admitia a legalidade ou legalização imediata dos partidos mas apenas a formação de «associações políticas» que pudessem constituir «embriões de futuros partidos políticos». No encontro realizado no dia 29 de Abril pelo secretário-geral do PCP (Álvaro Cunhal) com o Presidente da Junta de Salvação Nacional (General Spínola), este pretendeu que, para ser autorizada a acção dos comunistas, fosse aceite a conformação do PCP com esse ponto do Programa do MFA. Foi naturalmente observado que parecia que o novo poder após o derrubamento da ditadura pretendia alcançar, depois de conquistada a liberdade, aquilo que a ditadura fascista não tinha conseguido com a repressão em quase meio século: liquidar ou fazer desaparecer a acção do PCP. O facto é que, ultrapassando tais limitações, inserido no grandioso impulso das massas em movimento e apoiado por importantes sectores do MFA, o PCP apareceu à luz da liberdade com os seus dirigentes, com as bandeiras vermelhas, o símbolo da foice e martelo e dentro de pouco tempo o seu órgão central, o Avante!, que, defrontando o terror fascista, havia sido publicado e distribuído clandestinamente desde 1931. A liberdade não foi concedida, foi conquistada.

É também de lembrar que tanto a extinção da PIDE (então crismada de DGS), como a libertação dos presos políticos, não resultaram de decisão da Junta de Salvação Nacional, mas da vigorosa intervenção das massas populares secundadas por militares do MFA. O General Spínola pretendia manter a PIDE em funções. Derrubado o governo fascista no dia 25, logo no dia 26 Spínola veio declarar que tinha «chamado a atenção da DGS» e que acreditava que a DGS «passará a agir de forma a que não mereça mais quaisquer reparos pelo povo português»! Pretendia também adiar e possivelmente não concretizar em relação a muitos a libertação dos presos políticos. Foi o povo que cercou as sedes da PIDE e as prisões, pôs fim à PIDE e deu a liberdade aos presos.

Pode parecer inacreditável, anedótico, mesmo caricato, mas é um facto. Nos Conselhos de Ministros do I Governo Provisório, tendo Adelino da Palma Carlos como Primeiro-Ministro, havia um telefone que ligava directamente Belém ao Primeiro-Ministro e eram frequentes os telefonemas directos do Presidente da Junta, exigindo medidas imediatas contra tal ou tal «agitador» comunista. Palma Carlos mais do que uma vez se voltou para os Ministros quase gritando - «É necessário tomar medidas. Não quero ser fuzilado por não tomá-las!».

Estes incidentes são sintomáticos de uma situação e de uma atitude. O General Spínola, Presidente da Junta de Salvação Nacional e depois Presidente da República, tornara-se desde os primeiros dias da revolução o centro e o instigador e impulsionador da conspiração contra-revolucionária, traduzida em tentativas de golpes de Estado incluindo putches militares, em redes e atentados bombistas e em monstruosas provocações.

A propaganda anticomunista, nessa época como agora, procurou criar na opinião pública a ideia de que foi o PCP e não qualquer outra força que depois do 25 de Abril recorreu a golpes contra as instituições democráticas provisórias. Insistem mesmo até hoje em falar de tentativas do PCP para conquistar o poder e instaurar uma ditadura. Essas histórias inteiramente inventadas apresentam a verdade de pés para o ar.

Para travar o ímpeto do movimento operário e popular e a concretização de transformações democráticas, logo a partir de Abril fervilharam as conspirações, os jogos de bastidores, as disputas pelo mando nas forças armadas.

Os conspiradores apoiavam-se nos sectores reaccionários das forças armadas incluindo no MFA, nos grupos monopolistas do tempo do fascismo (em pânico perante a dimensão e a profundidade da revolução), na sabotagem económica (fuga de capitais, lançamento de fogos às searas, etc.), na agudização extremista dos conflitos sociais fazendo convergir a acção do grande capital e dos grupos esquerdistas pseudo-revolucionários (MRPP, AOC, entre outros). Criavam ambientes de desordem, insegurança, caos e instabilidade, procurando voltar sectores muito amplos da população contra a revolução democrática. Lançavam espectaculares provocações que atribuíam aos comunistas, como o saque da Embaixada de Espanha, a manifestação no Patriarcado, os casos da Rádio Renascença e do jornal República. Anunciavam em parangonas de jornais que 50 000 cubanos tinham vindo para o Alentejo para combater ao lado do PCP e com o fim declarado de «descobrir os cubanos», desencadeavam operações intimidatórias de cerco e busca em cooperativas agrícolas por unidades de Comandos e blindados. A 2a Divisão das Forças Armadas (com o coronel Pedro Cardoso) enviava ao governo e a variadas entidades falsas informações como uma que se tornou célebre de supostos desembarques de armamento para o PCP!

E não só se multiplicaram essas actividades de desestabilização anárquica e bloqueio, como
tiveram lugar sucessivos golpes e tentativas de golpes com o objectivo de instaurar um poder centralizado e repressivo. Não contra a resistência fascista à instauração da democracia. Mas contra os sectores progressistas do MFA, contra as transformações democráticas que o povo português estava realizando, contra o movimento operário e nomeadamente contra o PCP que se revelava o partido de maior implantação, de mais forte organização e militância, de influência mais profunda, de maior capacidade de mobilização de massas, de intervenção política determinante na transformação democrática da sociedade portuguesa.

Tais tentativas de golpe assumiram particular gravidade em 1974-1975. Sobre qualquer delas se podiam escrever, relativamente aos promotores, aos responsáveis, aos objectivos, às forças militares, sociais e políticas de apoio, não apenas extensos artigos mas volumes inteiros. Sobre qualquer delas — pelas falsidades difundidas e pelo encobrimento até hoje das teias das conspirações, compromissos e cumplicidades — certamente ainda um dia será feita história. Uma breve anotação é aqui indispensável.

Logo em Julho de 1974 deu-se uma primeira tentativa de golpe que passou a ser conhecida como o golpe Palma Carlos, então Primeiro-Ministro. Com o seu pedido de demissão logo directamente apoiado por Sá Carneiro, Ministro do PPD, exigia-se a efectiva tomada de plenos poderes pelo General Spínola, Presidente da Junta de Salvação Nacional, a exclusão dos comunistas do governo, a formação de um governo de direita, uma farsa eleitoral para ratificar o golpe, uma Constituição Provisória e o adiamento sine die das eleições para a Assembleia Constituinte. O golpe falhou e os sectores progressistas do MFA e o movimento popular tiveram força bastante para lhe cortar o passo. O governo Palma Carlos foi substituído por um governo tendo Vasco Gonçalves como Primeiro-Ministro.

A tentativa de golpe do 28 de Setembro de 1974 envolveu uma preparação mais complexa e a participação de forças mais diversificadas. A preparação política e psicológica foi lançada com a chamada campanha da «maioria silenciosa» que, em 28 de Setembro, deveria culminar numa gigantesca manifestação em Lisboa pedindo a Spínola que demitisse o governo e assumisse plenos poderes para «salvar Portugal». Mais de um milhão e quinhentos mil cartazes foram afixados e distribuídos. Multiplicaram-se as provocações e as desordens. Uma frente (MDE/s) dos grupos monopolistas, que vinham do tempo do fascismo e que conduziam operações de activa sabotagem económica, proclamou a oferta de 120 milhões de contos para o desenvolvimento económico e a criação de 120 mil postos de trabalho. O PPD de Sá Carneiro e uma série de partidos e grupos fascistas e reaccionários que se tinham constituído após o 25 de Abril declararam o seu apoio a Spínola. Não faltaram outros ingredientes. Pretensos «representantes das populações de Angola» vêm a Lisboa apoiar Spínola e apelar à sua intervenção. Bandos fascistas tentam um golpe de mão em Moçambique. Os Pides presos na Penitenciária organizam um grave motim. O general Galvão de Melo (esse mesmo que agora é uma agente do governo terrorista de Suharto e defende a anexação de Timor pela Indonésia) fez um apelo à manifestação do dia 28. O Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves é atraído a uma tourada da «maioria silenciosa» no Campo Pequeno, para aí, na presença de Spínola, ser insultado e vaiado. As forças comprometidas na tentativa de golpe procederam a uma intensa mobilização nacional para a manifestação.

Como último acto desta planificada e cuidadosa preparação, Spínola convoca no dia 27 para Belém uma reunião do Conselho de Ministros. Em termos violentos faz um ultimato: acusa o Governo e o Primeiro-Ministro, avança a necessidade da sua substituição, faz um violento ataque ao PCP prenunciando a sua ilegalização, anuncia que de todo o lado lhe pedem para «salvar Portugal», e exige que nenhum obstáculo seja posto à «manifestação da maioria silenciosa» marcada para o dia seguinte.

O Primeiro-Ministro e alguns Ministros (entre os quais Maria de Lurdes Pintasilgo e Vitorino Magalhães Godinho) contestaram as pretensões do Presidente. O membro do PCP no Governo (Álvaro Cunhal), respondendo ao ultimato, declarou que o PCP e com ele os trabalhadores e as massas se opunham à manifestação pelos perigos que representava para a democracia e que tomariam medidas para impedir a sua realização.

Na noite de 27 para 28, dando curso à tentativa de golpe, Spínola fez ocupar militarmente as emissoras de rádio e suspendeu a publicação dos jornais diários. O PCP, o movimento sindical e outras formações e organizações civis fizeram nessa mesma noite uma grandiosa mobilização de massas em todo o país, cortaram o trânsito nas estradas, nomeadamente nos acessos a Lisboa, e procederam a buscas a meios de transporte que se dirigiam à capital, cortando o trânsito e confiscando as armas encontradas. A manifestação foi impedida, o golpe fracassou e a contra-revolução sofreu nova pesada derrota: demissão de Spínola e de três membros da Junta e remodelação do governo com reforço da representação da esquerda.

A tentativa de golpe de 11 de Março (típica aventura putchista) foi também precedida de um processo complexo de actuação política, propagandística, provocatória e militar em que foram e são muitos e de grande evidência os compromissos e cumplicidades até hoje em larga medida resguardados pela lei do silêncio.

Spínola aparece de novo como mentor e chefe. Falhara o «golpe de palácio» com Palma Carlos. Falhara a mobilização nacional da «maioria silenciosa» que deveria ser seguida por um pronunciamento militar. O golpe militar de 11 de Março falhou também. Os para-quedistas levados ao engano, cercados e envolvidos pelos trabalhadores renderam-se às portas do RAL-1 que recusou entregar-se.

Os objectivos eram os mesmos dos golpes anteriores. A tomada do poder, a supressão das liberdades democráticas e a realização de uma farsa eleitoral para votar simultaneamente o futuro Presidente da República, o programa de governo e os deputados para uma «Assembleia Nacional».

Derrotado, Spínola voou para Tancos e depois fugiu para Espanha e para o Brasil, onde continuou a conspiração com novas formas. Tudo isso é sabido. O que só agora pouco a pouco começa a ser esclarecido são as responsabilidades de partidos e de altas personalidades civis e militares nessa tentativa de golpe. Em vez de esclarecimentos verdadeiros e de assunção de responsabilidades, continuou até hoje a falsificação da história, o encobrir de cumplicidades e compromissos de que há fortes indícios mas não provas confessadas ou documentadas. Em vez da verdade, continua até hoje da parte de alguns a invencionice caluniosa e indigna de classificar o 11 de Março como uma tentativa de golpe... do PCP!... ou, segundo outros... do KGB!!

A história e as responsabilidades da vaga de terrorismo bombista no «verão quente» de 1975
também não estão ainda totalmente esclarecidas e conhecidas. Seguros agora da impunidade, alguns dos operacionais (Alpoim Calvão, Monteiro e outros) vão-se gabando dos seus feitos e citando factos e nomes. Está porém ainda muita coisa por contar.

Não se trata de acontecimentos de menor gravidade. Com a cobertura e incitamento tanto de fascistas vindos da ditadura como do PPD e do PS, só nos meses de Julho e Agosto de 1975 tiveram lugar centenas de actos terroristas entre os quais mais de 100 assaltos, pilhagens e incêndios de Centros de Trabalho do PCP. Que o inspirador e chefe do MDLP foi Spínola não consta que alguém conteste. A rede de cumplicidades e apoios a outros altos níveis está porém por apurar e por confessar.

O golpe militar de 25 de Novembro foi a conclusão de um agudo e tempestuoso período de choques, divisões e conflitos não só entre os partidos participantes no governo, nomeadamente PCP e PS, mas também no MFA: entre os chamados «moderados» (nomeadamente o «Grupo dos Nove» que se aliavam cada vez mais à direita reaccionária), e a esquerda militar (cada vez mais ligada e sofrendo pressões do esquerdismo pseudo-revolucionário lançado em irresponsáveis acontecimentos desestabilizadores).

A crise político-militar agudizou-se extraordinariamente e entrou na fase final com a saída dos Ministros do PS e do PPD do IV Governo Provisório de Vasco Gonçalves (Julho de 1975), a formação e demissão do V Governo Provisório com o prático desparecimento do Conselho da Revolução e do Directório que se lhe seguiu, a ruptura violenta entre alguns dos principais dirigentes do MFA (Costa Gomes, Vasco Gonçalves, Otelo), a dissolução da 5a Divisão, a Assembleia de Tancos (Setembro de 1975) e sucessivos conflitos agudos e sublevações militares, a par de grande movimentação popular e da vaga de terrorismo bombista.

Ao longo de toda a crise político-militar, o PCP defendeu uma solução política, a «renegociação», reaproximação» e «entendimento» no MFA e mesmo uma reunião dos principais sectores militares e com o PS e o PCP, tentando evitar um confronto armado, que a não haver uma solução política, seria inevitável e poria em risco a instauração da democracia.

O 25 de Novembro de 1975 culminou este período com um golpe militar da direita aliada aos «moderados» de que resultou a derrota da esquerda militar, a dissolução efectiva do MFA e por esta forma a perda da componente militar da revolução popular.

Os «moderados» que participaram no golpe compreenderam que, se fosse por diante a intenção dos sectores mais reaccionários de procederem ao assalto armado das sedes do PCP e dos sindicatos e à sua ilegalização, caminhar-se-ia não para um regime democrático mas para uma ditadura e eles teriam em breve a mesma sorte. Pelas duas razões opuseram-se a tal intenção.

O 25 de Novembro não liquidou o processo, ainda então em curso, de configuração do regime democrático a instaurar e a institucionalizar. Criou entretanto uma nova correlação de forças que abriu caminho mais fácil à formação de governos com uma política contra-revolucionária.

6 — A revolução de Abril — transformação democrática da sociedade portuguesa

A revolução de Abril transformou profundamente a sociedade portuguesa. Não só liquidou a ditadura fascista e instituiu e acabou por institucionalizar um regime político democrático avançado, como realizou profundas reformas nas áreas económica, social e cultural.

Liquidadas as discriminações, proibições e repressão políticas, foram instauradas, pela acção das massas com apoio dos capitães de Abril, as liberdades democráticas, nomeadamente de formação de partidos, de organização sindical, de associação, de imprensa, de reunião, de manifestação (logo com o gigantesco 1.° de Maio de 1974), de criação intelectual, artística e científica, assim como o direito ao trabalho e o direito à greve complementado com a proibição do lock-out.

O regime político que resultou da revolução não só estabeleceu órgãos de soberania (Presidente da República, Assembleia da República, Governo e tribunais) com competências separadas, complementares e interdependentes adversas a qualquer poder absoluto, como incluiu por criação directa da luta revolucionária das forças democráticas e das massas populares em movimento um poder local democrático fortemente descentralizado. A par de formas de democracia representativa o regime político resultante da revolução incluiu numerosas formas de democracia participativa de cujas virtualidades o próprio processo revolucionário desvendou uma riquíssima experiência (comissões de trabalhadores, controlo de gestão nas empresas, comissões de moradores, etc.).

Liquidado o poder económico e político dos grandes grupos monopolistas e dos latifundiários, o sistema socioeconómico do capitalismo monopolista foi substituído por uma nova organização económica do país. A revolução de Abril não consistiu na mudança da forma de domínio político das classes detentoras do poder económico no tempo da ditadura. A revolução de Abril afastou essas classes do poder político e liquidou o seu poder económico.

A nacionalização da banca, e dos sectores básicos (seguros, electricidade, petróleos, indústria do ferro e aço, transportes, estaleiros, extracção de minérios, vidro, produtos químicos, celulose e papel, tabaco, cervejas) não só salvou a democracia em vias de instauração do estrangulamento económico que os grandes grupos monopolistas estavam provocando, como estabeleceu uma base objectiva para o desenvolvimento económico em benefício do país e do povo, aliás concretizado em resultados positivos.

A intervenção do Estado em muitas centenas de empresas a que foi obrigado pela sabotagem do patronato reaccionário, o estabelecimento em centenas de empresas de sistemas de autogestão, controlo operário e cooperativas reforçou tal possibilidade.

A reforma agrária na zona do latifúndio, conduzida no fundamental pelo proletariado rural alentejano e ribatejano, foi outra das grandes conquistas da revolução de Abril. Realizada defrontando furiosas campanhas, ameaças, acções militares de intimidação, operações armadas dos agrários, atentados terroristas, golpes de mão, actos de sabotagem, tentativas sucessivas de estrangulamento económico e financeiro, a reforma agrária transformou radicalmente a agricultura e a situação das populações na região. Foram criadas cerca de 500 Unidades Colectivas de Produção (UCPs)/Cooperativas, numa superfície de mais de 1 milhão de hectares. Foram desbravadas centenas de milhar de hectares de terras até então incultas. Foi alargada a área cultivada, diversificadas as culturas, introduzidas novas culturas, aumentada a produção agrícola e o efectivo pecuário, enriquecidos os parques de máquinas, construídas vacarias e ordenhas mecânicas.

As condições de vida dos trabalhadores e das populações melhoraram radicalmente. Desapareceu o desemprego. Criaram-se milhares de postos de trabalho. A juventude participou activamente na reforma. Diminuiu a diferença de salário de homens e mulheres. Criaram-se creches e centros de terceira idade. Desenvolveram-se actividades culturais. Diminuiu a emigração.

A reforma agrária teve um carácter regional com iniciativa e luta determinante do proletariado agrícola. Não são porém de esquecer noutras regiões a luta dos utentes dos baldios e dos rendeiros cujos objectivos se viram reconhecidos nas Leis do Arrendamento Rural e dos Baldios. Deve entretanto sublinhar-se como uma das principais lacunas da revolução democrática o não ter resolvido muitos dos graves problemas dos pequenos e médios agricultores.

Na situação social deram-se profundas alterações progressistas com o rápido melhoramento das condições de vida dos trabalhadores e do povo em geral, de que são exemplos o estabelecimento do salário mínimo nacional, os aumentos de salários, a actualização de pensões e do abono de família, a redução de horários de trabalho, a criação do subsídio de desemprego, a proibição de despedimentos sem justa causa, os subsídios de férias e o estabelecimento para as mulheres de licença no período da maternidade. Subiu significativamente a quota de participação dos trabalhadores no produto nacional. O melhoramento dos serviços de saúde que se viria a traduzir num Serviço Nacional de Saúde e a limitação das rendas de casa contam-se também na longa lista de conquistas sociais da revolução de Abril.

Como resultado do melhoramento das condições de vida, verificou-se uma quebra vertical do numero de emigrantes.

No domínio do ensino e da cultura, também a revolução democrática introduziu importantes modificações na situação existente.

O sector educativo registou profundas alterações: o rápido aumento do número de alunos a frequentar todos os graus de ensino, a criação da rede pública de educação pré-escolar, a autonomia e a gestão democrática das escolas e a autonomia das universidades; a unificação do ensino (até ao 9.° ano); o fim do «livro único»; a melhoria da situação do emprego e salarial dos professores ao nível da sua qualificação e a criação dos sindicatos dos professores.

No plano cultural, a liberdade de expressão e de imprensa e a abertura à criatividade deram forte impulso à iniciativa e nomeadamente à participação de massas nas actividades culturais. O rápido aumento do movimento editorial constituiu indício da sede de cultura após dezenas de anos de censura e repressão.

Uma profunda alteração das mentalidades relativamente a variados aspectos do comportamento cívico e humano é indissociável das conquistas políticas, sociais e culturais da revolução democrática.

O fim das guerras coloniais e a contribuição para a independência no imediato dos povos submetidos ao colonialismo português constituíram uma realização da revolução de Abril de significado histórico imperecível.

A luta do povo português para se libertar do fascismo e conquistar a democracia e a luta dos povos das colónias para se libertarem do colonialismo e conquistarem a independência foram lutas mutuamente solidárias que estabeleceram, nas duras condições de guerra e de repressão, laços de amizade e cooperação entre o povo português e os povos das colónias. Foram persistentes e demoradas as resistências colonialistas e neocolonialistas dos sectores militares e civis nos novos órgãos do poder. Sucederam-se as mais variadas iniciativas e conspirações a nível nacional e internacional incluindo a invasão militar de Angola (1975) e tentativas de golpes em Moçambique para impedir que ascendessem ao poder os movimentos que haviam conduzido a luta pela libertação: MPLA e FRELIMO. A .revolução de Abril venceu essas resistências e marcou um ponto de honra na história de Portugal e do povo português.

Conforme a análise do PCP, Portugal era um país simultaneamente colonizador em África e colonizado na Europa. Considerando que «um povo não pode ser livre se oprime outros povos» a luta contra o domínio imperialista e pela independência nacional de Portugal foi considerada a par da luta pelo reconhecimento dos povos das colónias à autodeterminação e à independência.

A revolução de Abril foi em si mesma uma afirmação da vontade do povo português e de independência da nação portuguesa. Na política externa Portugal quebrou o isolamento e diversificou as suas relações, incluindo o estabelecimento de relações com a URSS e os outros países socialistas. A revolução democrática assumiu também uma afirmação de independência nacional integrando os comunistas no governo durante mais de dois anos. Entretanto a revolução não conseguiu libertar Portugal nem de posições chave do capital estrangeiro nem de pressões económicas, financeiras, diplomáticas e militares do imperialismo. Os fortes apoios e incitamentos externos ao PS, ao PPD, ao CDS e a todas as forças reaccionárias e conservadoras que se opunham ao curso da revolução democrática constituíram um importante elemento para o desenvolvimento das conspirações antidemocráticas e o desencadeamento do processo contra-revolucionário.

Há quem atribua as grandes conquistas de Abril a um voluntarismo revolucionário, a um «queimar de etapas» imposto pelo poder e mais concretamente pelos comunistas. A verdade foi outra.

Utilizando todos os meios, a resistência contra-revolucionária à democratização da vida nacional — sucessivas tentativas de golpes para instaurar uma nova ditadura, violências, sabotagem económica, provocações, atentados bombistas — teve durante os primeiros tempos da revolução efeitos contrários aos pretendidos. Sucessivamente derrotadas as tentativas mais ambiciosas e perigosas, em vez de travarem o avanço democrático, radicalizaram mais os conflitos e forçaram à adopção de medidas de defesa da democracia que envolveram reformas tanto no âmbito político como relativas às estruturas socioeconómicas. O controlo operário e a gestão de empresas pelos trabalhadores, por exemplo, surgiram, não apenas como uma necessidade de defender e dinamizar as actividades económicas paralisadas ou comprometidas pela sabotagem do patronato reaccionário, mas também como uma necessidade para defender as liberdades e a democracia em vias de instauração. E as decisões ao nível do poder relativas às nacionalizações e à reforma agrária (já em curso pela acção das massas) apareceram logo a seguir à derrota da tentativa de golpe militar reaccionário de 11 de Março de 1975, como resposta ao comprometimento directo no golpe dos grandes capitalistas e agrários.

Como o próprio nome indica, coube à Assembleia Constituinte, eleita em 25 de Abril de 1975, elaborar a nova Constituição da República Portuguesa, ou seja a nova lei fundamental do país. Há factos que importa lembrar.

Na medida em que, por acção das massas populares, avançava a transformação democrática da sociedade, o PPD, o PS e o CDS e todas as forças reaccionárias e conservadoras tentaram entravar e adiar a elaboração da Constituição e tornar a Assembleia um órgão de conspiração e desestabilização. Já em plena crise político-militar de 1975, procuraram transformar a Assembleia Constituinte num Parlamento como centro do poder contra o Governo Provisório, contra o MFA e contra o movimento popular. Repetidas propostas foram feitas para que não fossem inseridas na Constituição numerosas disposições já aprovadas. Procuraram que a aprovação se seguisse imediatamente um referendo. Procuraram que a Assembleia da República a eleger tivesse no imediato competências de revisão .da Constituição. Procuraram opor-se a que fossem inscritos limites materiais das revisões. Procuraram, através de uma violenta campanha, a substituição do Presidente da República, General Costa Gomes, por se saber disposto a promulgar a nova Constituição (o que numa situação extremamente tensa, acabou por fazer na própria Assembleia da Republica logo a seguir à aprovação em 2 de Abril de 1976). Ainda nas vésperas da data marcada para a aprovação e promulgação da Constituição, foi desencadeada uma gigantesca campanha para impedi-lo. Não o conseguiram.

A Constituição elaborada pela Assembleia Constituinte e aprovada em 25 de Abril de 1976 converteu em princípios fundamentais da República o essencial das grandes conquistas democráticas alcançadas pelo povo e pelas forças revolucionárias. A Constituição aprovada em 1976 significou o reconhecimento e a consagração em termos jurídicos da vitória da revolução democrática.

7 — Política de verdade e política de mentira

A orientação, objectivos e actividade do PCP no processo de instauração do regime democrático, foram sempre frontais e transparentes. Tinha definido os objectivos no seu Programa nove anos antes de 1974. Defendeu-os depois do derrubamento do fascismo no governo em que participou, na acção política, na luta de massas. O PCP, que fala verdade ao povo, travou a luta com inteira verdade.

Não fizeram o mesmo os outros partidos. Declaravam uma coisa e faziam outra.

Que posição assumiram as várias forças políticas em relação às transformações profundas da sociedade, às grandes conquistas democráticas da Revolução de Abril?

O PS dirigido por Mário Soares, na «Declaração de Princípios» aprovada no Congresso realizado em Dezembro de 1974, considerava o capitalismo «uma força opressiva e brutal», declarava lutar «pela sua total destruição» (1. 11), «repudiava» aqueles que «dizendo-se social-democratas e até socialistas acabam por conservar [...] as estruturas do capitalismo» (1.7), defendia «um plano escalonado de nacionalizações» e «um plano escalonado de reforma agrária visando a expropriação do latifúndio». (2.2.5 e 2.2.7).

O PSD (então PPD) dirigido por Sá Carneiro, no Programa aprovado no 1." Congresso Nacional realizado em Novembro de 1974, definia como objectivo «modificar a estrutura da economia expandindo progressivamente o sector da propriedade social dos meios de produção» (p. 100), defendia as nacionalizações nomeadamente em «sectores chave e indústrias básicas» (p. 103) e uma «reestruturação fundiária» para o que propunha a criação de um «Instituto da Reforma Agrária» (p.
115).

O PS, afirmando ter «como inspiração teórica o marxismo», declarava ser seu objectivo a instauração do «socialismo democrático» e de «uma sociedade socialista universal» (1.8). O PPD, também no seu Programa, dizia lutar para a «implantação em Portugal» de «um socialismo democrático e humanista» (p. 99). Todos diziam querer o socialismo em Portugal. Até Spínola, mesmo na precisa altura em que desencadeava os golpes, se declarava pelo «socialismo em liberdade» (28 de Setembro) ou por um «socialismo de iniciativa» (11 de Março).

Estes factos indicam a obrigação ideológica, política e ética, tanto do PS como do PSD, de agora falar verdade quando procuram escrever ou reescrever a história da revolução de Abril.

Se declaravam ser seu objectivo uma sociedade socialista e inscreveram nos seus programas as nacionalizações e a reforma agrária por que o fizeram? Não mostram os factos que o seu propósito era agir primeiro para impedir e depois para liquidar tais reformas democráticas e portanto com manifesta mentira e má-fé?

Se, durante vários anos, propuseram apenas correctivos às nacionalizações e à reforma agrária, incluindo em inúmeras leis que aprovaram e se em 1976 votaram favoravelmente a Constituição da República na Assembleia Constituinte por que o fizeram? Se estavam de acordo com a Constituição em cuja elaboração participaram e aprovaram não é manifesto que mentiam ao povo relativamente aos seus propósitos e objectivos?

E, se como justificação alguns altos dirigentes declaravam e insistem em declarar que foram «coagidos» na elaboração dos seus próprios programas, na assinatura de pactos com o MFA, na elaboração e aprovação da Constituição, o que se pergunta é se será legítimo a um partido político aceitar sob coacção tão sérias decisões e responsabilidades.

O PCP, pela sua parte, tem a consciência tranquila. Nunca no Programa, nos objectivos declarados ao povo, nas suas orientações, na sua acção, aceitou actuar cedendo a coacções, ameaças ou perigos.

Em todo o processo da revolução democrática e de instauração do novo regime verifica-se assim uma diferença de capital importância no comportamento das forças políticas. Enquanto outras forcas políticas negaram e negam aspectos importantes da sua acção antidemocrática e não assumem as respectivas responsabilidades, o PCP sempre assumiu e continua a assumir a responsabilidade dos seus objectivos, dos seus actos e da sua intervenção.

Nós, os comunistas, assumimos inteira responsabilidade do nosso programa e anunciámos e propusemos ao povo português os objectivos e as características do sistema económico e do regime democrático por que lutamos.

Assumimos inteira responsabilidade de, com os trabalhadores e as massas populares, termos intervido para controlar e impedir o desvio e exportações ilegais e fraudulentas de capitais pelos banqueiros e grandes capitalistas, lançados no estrangulamento económico para matar à nascença a jovem democracia.

Assumimos inteira responsabilidade por termos contribuído para a instauração do controlo operário, depois institucionalizado com o nome de controlo de gestão, assim como para a gestão pelos trabalhadores de centenas de empresas abandonadas ou sabotadas pelo patronato reaccionário.

Assumimos inteira responsabilidade por termos não só definido programaticamente, mas termos dado importante contribuição para a nacionalização dos bancos e empresas e sectores básicos da economia portuguesa, como caminho para o desenvolvimento económico em benefício do povo e do país.

Assumimos inteira responsabilidade por termos com os trabalhadores e as massas populares, promovido a ocupação e desbravamento de terras abandonadas, de constituir unidades colectivas e cooperativas agrícolas, de levar a cabo uma reforma agrária na zona do latifúndio que significou um extraordinário progresso na produção agrícola e o melhoramento radical das condições de vida do povo nessas regiões.

Assumimos inteira responsabilidade de, com os trabalhadores e as massas populares e lado a lado com militares progressistas termos feito frente às tentativas dos golpes de 17 de Julho e 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975 bem como a outras conspirações e tentativas de golpe de menor vulto.

Em contraste com o PCP, outras forças e individualidades que tiveram papel de relevo nos acontecimentos, ocultaram os seus objectivos e a verdade dos factos, fugiram às suas responsabilidades e lançaram as mais caluniosas e indignas acusações contra o PCP.

Entre as mais caluniosas falsificações foi a insistência em negar a própria existência dos golpes contra-revolucionários falhados. O 28 de Setembro teria sido uma «inventona» ou «intentona do PC». O 11 de Março também teria sido, segundo o PPD, «uma inventona fomentada por oficiais e forças ligadas ao PCP» (Povo Livre, 3.12.75), ou nas palavras de Spínola «uma hábil manobra montada pelo PC em combinação com os serviços secretos de certos países estrangeiros» (O Diabo, 12.8.76). O facto de que dirigentes do PS acompanharam esta sinistra propaganda provocatória é um indício que lhes é pelo menos comprometedor.

Pela insistência em tais calúnias e pelo que actualmente para aí se diz e escreve, vê-se que a hora não chegou ainda e não parece claro quando venha a chegar em que todos os responsáveis assumam as responsabilidades do que fizeram. Nomeadamente, por exemplo, de quais os compromissos, colaboração e participação nas tentativas de golpes antidemocráticos (nomeadamente no 28 de Setembro e no 11 de Março), nas provocações contra o PCP e o movimento operário, no desencadeamento da vaga bombista contra o PCP. Tanto o PS e o PPD/PSD, como numerosos comparsas menores da vida política, insistindo em divulgar versões falsas da história da Revolução de Abril continuam a não responder a estas questões que respeitam a um momento crucial da vida portuguesa.

Muitas pontas do véu vão-se porém levantando e vai aparecendo a verdade dificilmente contestável.

A verdade é que, nesses momentos cruciais da instauração da democracia em Portugal depois de 48 anos de ditadura enquanto outras forças e personalidades conspiravam e promoviam, animavam ou aprovavam as mais variadas resistências e iniciativas contra-revolucionárias incluindo golpes militares, provocações e terrorismo bombista, o PCP, em estreita ligação com a luta dos trabalhadores e das massas populares, actuou com frontalidade e com verdade.

É uma das bases dos seu prestígio e do seu crédito.

8 — A destruição das conquistas de Abril contra a democracia, contra Portugal

O Programa do PCP para a revolução antifascista, definida como uma revolução democrática e nacional, estabelecia uma ligação de carácter inseparável entre os objectivos políticos, económicos, sociais e culturais da democracia no quadro necessário da independência e soberania nacionais.

Trata-se de uma concepção básica, cujo rigor e validade os acontecimentos — particularmente a experiência da Revolução de Abril e do processo contra-revolucionário ulterior — não só comprovam como enriquecem e aprofundam.

Os ideólogos do capitalismo procuram fazer crer que o domínio do grande capital e a liquidação de direitos dos trabalhadores é consentâneo e até garantia de uma democracia política. A realidade nacional, tal como a realidade mundial, mostra que um sistema de negação da democracia económica e social num sistema de capitalismo monopolista, implica pela sua natureza graves limitações à democracia política.

Na sequência da liquidação sistemática das conquistas de Abril de governos anteriores o actual governo do PSD de Cavaco Silva comprova a correcção desta tese ao desenvolver simultaneamente ofensivas antidemocráticas nas quatro vertentes da democracia.

Na vertente económica, reestruturando e restaurando o capitalismo monopolista, promovendo a veloz centralização e acumulação do capital com relevo de operações e meios especulativos e fraudulentos, protegendo e promovendo uma vaga gigantesca de corrupção nas mais altas esferas sociais e do Estado, furtando-se às obrigações sociais do Estado com a privatização de tudo quanto é rentável, aumentando a distância entre um pólo de riqueza e da sua ostentação e uma zona crescente de pobreza, miséria e marginalização.

Na vertente social, impondo liquidação de postos de trabalho, despedimentos em massa, o desemprego, a baixa dos salários, os salários em atraso, a precarização do trabalho, as pensões e reformas de miséria, a liquidação de direitos e beneficios sociais, a privatização, degradação e alto preço dos serviços de saúde e do ensino, a habitação inacessível, o elitismo na preparação e opção profissional, as discriminações das mulheres, o trabalho infantil e o desprezo efectivo pela solução dos problemas e pelo futuro da juventude.

Na vertente cultural, ressuscitando e difundindo valores retrógrados e reaccionários incluindo elementos típicos da ideologia fascista, realizando uma política de partidarização, clientelismo e capela no ensino e na atitude do Estado em relação às artes, à ciência e à vida cultural em geral.

Na vertente política, desrespeitando a Constituição e a legalidade, absolutizando o poder político através da sua governamentalização e da negação do exercício das competências pelos outros órgãos de soberania, liquidando sucessivamente os mecanismos de fiscalização da acção governativa, criando graves limitações aos direitos dos trabalhadores e dos cidadãos, limitando os direitos da oposição, criando novas policias políticas, instrumentalizando partidariamente grandes meios de comunicação social, e procurando impôr novas leis eleitorais que com artifícios técnicos, venham a permitir ao PSD eternizar-se no poder, mesmo que sofrendo uma queda vertical de votos em futuras eleições.

Acompanhando as ofensivas antidemocráticas nestas quatro vertentes, o governo de Cavaco Silva e o PSD sacrificam e submetem os interesses Portugueses a interesses estrangeiros a troco de fundos da CEE que em grande parte são desviados dos seus declarados objectivos e metidos ao bolso de novos e velhos milionários, mas que apesar disso cobrem temporariamente carências graves e criam também temporariamente uma sensação de desafogo económico e financeiro.

Cavaco Silva, o Governo, o PSD anunciaram que como resultado da acção do Governo, Portugal era o «oásis» da Europa, um país de «sucesso» em pleno desenvolvimento lançado como uma lebre no encalço da tartaruga da Europa.

A realidade é a progressiva destruição do aparelho produtivo (na agricultura, na indústria, nas pescas), a crise e a recessão económica geral. Sacrificam-se, comprometem-se e entregam-se ao capital estrangeiro empresas e sectores básicos estratégicos e recursos e potencialidades materiais e humanas. Agrava-se a dívida do Estado. Agrava-se a balança externa. Aumenta o distanciamento em relação aos países mais desenvolvidos em vez da «coesão económica» tantas vezes apresentada como objectivo em vias de ser atingido. São cada vez mais graves as limitações à independência e soberania nacionais pela aceitação servil, seguidista e capitulacionista do Tratado de Maastricht e da imposição a Portugal pelos países mais desenvolvidos de decisões supranacionais contrárias a interesses vitais Portugueses.

A continuar. no poder Cavaco Silva e o governo de direita, Portugal corre o risco não só de ver substituída a democracia política por um regime autoritário de cariz ditatorial, mas também de um dia não muito distante, quando diminuir, como é inevitável e está previsto, o fluxo de fundos da CEE, ser mergulhado numa crise profunda de carências alimentares, energéticas, técnicas e tecnológicas para superar as quais uma solução será então extremamente difícil na situação que está a ser criada.

A politica do governo do PSD de destruição das conquistas e valores democráticos da revolução de Abril é uma política que destrói recursos e potencialidades que vêm do passado, que provoca uma penosa crise no presente e que faz pesar sobre Portugal gravíssimas ameaças para o futuro.

9 — As cinco vertentes da democracia e da política antidemocrática

Tanto a revolução de Abril como o processo contra-revolucionário posterior constituem uma experiência de extraordinário valor como comprovação viva e evidente da natureza inseparável das quatro vertentes da democracia — a político, a económica, a social e a cultural — às quais se pode juntar uma quinta vertente: a nacional.

Na revolução de Abril, a conquista e o aprofundamento da democracia política exigiu para sua própria concretização, por razões objectivas e subjectivas, transformações democráticas na esfera económica, social e cultural. Inversamente estas transformações de natureza democrática apenas foram possíveis pela profundidade e riqueza do processo de democratização política e designadamente das formas de democracia participativa traduzida na poderosa intervenção criativa das massas e na formação (em muitos casos espontânea, a partir das próprias massas) de formas de organização popular.

Realizadas as grandes transformações revolucionárias na esfera socioeconómica — liquidação dos grandes grupos económicos dominantes e do capitalismo monopolista através das nacionalizações, da intervenção do Estado e do controlo operário posteriormente consagrado constitucionalmente como «controlo de gestão» — foi inteiramente justo afirmar que nessa época a restauração do capitalismo monopolista não era possível no quadro então existente da democracia política e da efectiva correlação de forças sociais, políticas e militares. Nessas condições e nessa época só a instauração de uma ditadura reaccionária teria permitido tal restauração.

É certo que essa tese foi equivocamente expressa absolutizando de forma intemporal uma realidade da situação ulteriormente ultrapassada. É também certo que pecou pela confiança excessiva na possibilidade de derrotar a contra-revolução, de defender e manter as novas estruturas socioeconómicas alcançadas com as nacionalizações e a reforma agrária e pela falta de rigor na previsão do desenvolvimento lento mas progressivo do processo contra-revolucionário. Mas não é menos certo que a tese relativa ao carácter inseparável das vertentes económica, social e política da democracia continha uma ideia básica que a realidade comprovou e comprova inteiramente.

Desde o desencadeamento do processo contra-revolucionário a realidade mostrou que o avanço das ofensivas no domínio económico e social para reestruturação e restauração dos grupos monopolistas e do sistema do capitalismo monopolista caminhou par a par e no fim de contas só foi possível com ofensivas constantes contra a democracia política. Com operações de violenta repressão contra os trabalhadores. Com graves limitações às liberdades e direitos dos cidadãos. Com a liquidação progressiva das formas de democracia participativa. Com a perversão antidemocrática do regime. Com a governamentalização do poder. Com um falso parlamentarismo em que o parlamento (com uma maioria de direita) se tornou instrumento do poder executivo fortemente centralizado. Com a liquidação progressiva dos mecanismos de fiscalização e controlo da acção governativa. Com o desrespeito da legalidade através da criação ilegal de situações de facto consumado, de revisões da Constituição e da aprovação de novas leis, muitas delas inconstitucionais.

A restauração do capitalismo monopolista num processo que dura já há mais de 16 anos torna-se assim possível com graves limitações, desvirtuações, distorções e perversões da democracia política em muitas das suas componentes essenciais e o encaminhamento gradual para um regime de cariz autoritário, com critérios e traços de carácter ditatorial.

As realizações e experiências da revolução de Abril abrangem praticamente todas as áreas da vida nacional. Constituem grandes valores de Abril. De todos globalmente considerados resulta o que se pode chamar o valor dos valores como experiência e ensinamento: a demonstração na vida da natureza inseparável das cinco vertentes da democracia, e em particular a ligação entre o sistema socioeconómico e a democracia política.

Na actualidade tanto nacional como mundial a vida mostra a contradição entre o sistema do capitalismo monopolista e a democracia política. Em todos os países do sistema de capitalismo monopolista, a democracia política sofre gravíssimas limitações e perversões. O capitalismo e os partidos que o servem ao nível do poder político dão ao regime vigente uma intransigente natureza de classe. Democracia para as classes exploradoras e dominantes e forças políticas que as representam e limitações, discriminações ou recusa de direitos democráticos para as classes exploradas e forças políticas respectivas. Direitos e liberdades reconhecidos na letra da lei mas cujo exercício é impossibilitado na prática por medidas concretas, por diferenças económicas abissais, por formas intimidatórias e repressivas de contenção da luta popular. Por um chamado Estado de direito em que o poder político ao serviço do grande capital se reserva o direito de alterar e desrespeitar a legalidade.

O capitalismo monopolista, tal como é a negação da democracia económica, é também por natureza inimigo da democracia política.

Para nós, Portugueses, esta realidade comprovada pela experiência, não tem apenas validade teórica. Ela dá consistência à avaliação do carácter retrógrado e antidemocrático da política de direita de sucessivos governos, nomeadamente do actual governo do PSD/Cavaco Silva. Dá também consistência à avaliação positiva das grandes conquistas da Revolução de Abril que se projectam como valores e elementos programáticos para o futuro democrático de Portugal.

10 — Valores de Abril no futuro de Portugal

Após quase meio século de tirania, opressão, exploração, atraso, submissão nacional, a revolução de Abril representou uma transformação profunda e um progresso notável da sociedade portuguesa. Ao contrário do que a ideologia e a propaganda das forças do capital actualmente procuram gravar na memória e na consciência dos Portugueses, as grandes conquistas democráticas da revolução de Abril (regime democrático com órgãos de soberania interdependentes, um poder local fortemente descentralizado, múltiplas formas de democracia participativa, exercício sem discriminações de liberdades e direitos, direitos dos trabalhadores, liquidação do capitalismo monopolista com as nacionalizações, reforma agrária na grande região do latifúndio) correspondiam a exigências de natureza objectiva para o desenvolvimento do país e às necessidades e aspirações profundas do povo português. Dois factos o evidenciam.

O primeiro é que tão profundas e radicais transformações tiveram lugar, pela impetuosa e irresistível acção das massas populares, num espaço de tempo extraordinariamente curto, vencendo sem uso da violência todas as violentas resistências contra-revolucionárias.

O segundo é que a liquidação dessas conquistas democráticas, apesar de constituir a partir de 1976 o objectivo estratégico, se bem que não declarado durante vários anos, de sucessivos governos (do PS, do PS/CDS, de «iniciativa presidencial», do PSD/CDS, do PS/PSD, e finalmente do PSD) e das novas hierarquias militares que se sucederam à liquidação do MFA, tem levado até hoje cerca de 17 anos de contínuas ofensivas conduzidas pelos órgãos do poder e ainda não está completada ao perfazerem-se 20 anos do 25 de Abril.

A situação para a qual a política de direita está arrastando Portugal, é contrária a interesses vitais do povo e do país. O sistema socioeconómico (capitalismo monopolista de Estado), o regime político (formalmente democrático mas de cariz autoritário e ditatorial), direitos nacionais (independência e soberania submetidos a decisões supranacionais), a concretizarem-se completamente os objectivos estratégicos das forças de direita no poder, significaria um verdadeiro desastre para o povo português e para Portugal, com duradouras e trágicas consequências. Não se trata de uma visão «catastrofista» da realidade como dizem alguns. A realidade da política contra-revolucionária de direita é que encerra elementos de catástrofe.

Só a cobardia oportunista pode justificar, da parte de forças que insistem em afirmar-se de esquerda, que se considere inevitável e irremediável tal evolução dos acontecimentos e, em consequência, se aceite a renúncia à luta por soluções democráticas e se opte pela acomodação, adaptação e integração no novo regime e no novo sistema.

Há que ter em conta com toda a objectividade a situação actual, tanto nacional como internacional. Há que definir objectivos, soluções e caminhos que permitam travar e impedir a total concretização do processo contra-revolucionário conduzido pelo governo de direita. Há que considerar que Portugal é hoje membro de uma Comunidade Europeia que com decisões supranacionais afecta gravemente o nosso desenvolvimento e põe graves limitações à nossa independência nacional, pelo que exige um governo português que não capitule perante interesses estrangeiros e determinado a defender com firmeza os interesses nacionais. Há que avaliar e saber movimentar e fazer convergir as forças sociais e políticas cuja luta é indispensável para alcançar tal resultado. São necessários entendimentos e plataformas. Esses objectivos não podem porém significar que se deixem de definir objectivos a curto, a médio e a longo prazo e que se deixe de definir, apresentar e propôr a política que se considera necessária ao povo português e a Portugal.

Neste sentido a análise da evolução da sociedade portuguesa ao longo do século, do que foi o fascismo, do que foi a revolução democrática, do que tem sido e é a contra-revolução, conduz à conclusão de que, como noutro local se afirmou, «os grandes valores da revolução de Abril criaram profundas raízes na sociedade portuguesa e projectam-se como realidades, necessidades objectivas, experiências e aspirações no futuro democrático de Portugal».

Isto não significa que se aponte para o futuro democrático de Portugal como uma repetição da revolução inacabada. Nem que se repitam literalmente as soluções. Experiência significa aprendizagem e aprendizagem significa enriquecimento democrático do projecto e do programa.

Falando do passado e do futuro, cabe ainda dizer que um dos maiores logros da propaganda antidemocrática é a afirmação de que a política que o PCP propõe é o «regresso ao passado» e a política do PSD é uma política voltada para o futuro.

A ideia verdadeira é precisamente a inversa.

O regresso ao passado (em muitos aspectos ao passado anterior ao 25 de Abril) está na reestruturação e restauração dos grupos monopolistas alguns deles do tempo do fascismo, na liquidação dos direitos dos trabalhadores, na .perversão da democracia política, na degradação cultural, na capitulação perante o estrangeiro e nas alianças internacionais com as forças mais retrógradas do mundo actual.

Uma política voltada para o futuro é aquela que propõe o PCP: estruturas socioeconómicas para promoverem o desenvolvimento económico nacional, o melhoramento das condições de trabalho e de vida do povo, a solução dos grandes problemas sociais como a saúde, a habitação e o ensino, uma democracia política com forte componente participativa, a generalização da criação e da fruição culturais, o aprofundamento da democracia no quadro da independência e soberania nacionais. Ou seja: o projecto e programa de uma democracia que, respondendo às mudanças no mundo e no país, tendo em conta as experiências positivas e negativas, dando respostas novas e criativas às novas situações, aos novos fenómenos e às novas realidades, se afirma na coerente continuidade histórica dos ideais, conquistas, realizações e valores da revolução de
Abril.

11 — Componentes fundamentais de um programa democrático

O PCP, no seu Programa aprovado no XIV Congresso realizado em 1992, propõe ao povo português, para solução dos grandes e graves problemas nacionais e resposta aos desafios deste findar do século XX «uma democracia avançada no limiar do século XXI». Com cinco componentes fundamentais.

Em primeiro lugar, no que respeita à democracia política, um regime de liberdade, que, como a experiência irrecusavelmente mostra, não só pressupõe como exige um Estado democrático.

Duas observações se impõem em relação às liberdades e direitos dos cidadãos e em relação ao Estado.

Constitui uma grande lição da história, e em particular da revolução de Abril e do processo contra-revolucionário, que o reconhecimento apenas formal das liberdades e direitos dos cidadãos e o impedimento discriminatório do seu exercício através de regulamentações e decisões de natureza administrativa contrariam a própria essência da democracia.

As liberdades de expressão do pensamento, de imprensa, de informação, de reunião, de manifestação, de constituição e acção de partidos políticos, de organização sindical, de religião e de culto, assim como os direitos de eleger e ser eleito, de greve, de criação científica e artística, de respeito pela privacidade devem ter assegurado o seu exercício sem discriminações sociais, económicas e políticas, com igualdade de oportunidades e dispondo de uma comunicação social pluralista, democrática e responsável.

Um regime de liberdade exige, como elemento essencial, a formação de um Estado democrático. São aspectos basilares de um Estado democrático, elemento integrante e imprescindível da democracia política: Uma estrutura e funcionamento do Estado e dos seus órgãos que impossibilite a absolutização e o abuso do poder político, leis eleitorais que não permitam a falsificação da vontade popular, a divisão de funções dos principais órgãos de soberania, mecanismos eficientes de fiscalização democrática da acção governativa, descentralização de competências com relevo para o poder local democrático e a regionalização, alargamento e aprofundamento de formas de participação popular directa e permanente no poder, justiça independente e acessível, administração pública desconcentrada e desburocratizada, forças armadas para defesa da independência nacional e da integridade territorial e não estruturadas e equipadas para servir estratégias estrangeiras, segurança e ordem públicas com primado de prevenção, serviços públicos essenciais garantidos pelo Estado.

O processo contra-revolucionário dos governos com política de direita, nomeadamente o actual governo de Cavaco Silva, comporta lições de grande valor para o futuro. O regime democrático que propomos deverá garantir que nenhuma força política esteja em condições de alcançar o poder na base de liberdades e direitos e utilize o poder para os liquidar; que chegue ao poder através de um sistema eleitoral determinado e depois utilize o poder para alterar o sistema e impedir que outro partido ganhe as eleições; que reclame mais liberdades quando na oposição e as liquide ou restrinja quando no governo, e tão-pouco que invoque o «Estado de direito» concebendo-o como o direito de definir uma nova legalidade correspondente a situações de facto que ilegalmente ele próprio cria.

Tais são, por lições da vida, alguns dos elementos do regime democrático que o PCP propõe ao povo português.

Em segundo lugar, é componente da democracia o desenvolvimento económico com a sua vertente social, o que não só pressupõe como exige uma economia mista, com um forte e dinâmico Sector Empresarial do Estado nos sectores básicos e estratégicos da economia.

Um desenvolvimento económico deve ter também como objectivo a melhoria das condições de trabalho e de vida dos Portugueses, terá de contar como elementos determinantes o reforço e a especialização coordenada e equilibrada do aparelho produtivo, o desenvolvimento das forças produtivas, o aumento da produção, a mobilização e gestão adequada dos recursos naturais e das potencialidades materiais e humanas, novas tecnologias, investigação científica, e uma política financeira, energética, industrial, agrícola, de pescas e de serviços que conduza, o mais rapidamente possível, à atenuação dos principais défices estruturais — energético, alimentar, de bens de equipamento e tecnológico.

Para que seja possível tal desenvolvimento económico é indispensável impedir que seja levado ao termo a restauração do poder económico dos grupos monopolistas e impedir igualmente que o capital estrangeiro, pela mão de governos de direita, tome de assalto as alavancas fundamentais da economia portuguesa.

A sistemática e odiosa campanha contra as nacionalizações tornou quase um «tabu» a defesa das empresas públicas. O processo sinistro de privatizações, pelas suas consequências e pelas ilegalidades, escândalos, fraudes, corrupção e crimes em altas instâncias do poder, está quebrando esse «tabu» e reaviva a necessidade de recolocar esta questão em termos dos interesses nacionais e de defesa da democracia.

Uma economia nacional libertada do domínio e do desprezo pelos interesses nacionais dos grandes grupos económicos, torna necessária uma organização económica mista, com papel de relevo para o sector privado, e com larga abertura ao sector cooperativo, mas exigindo um Sector Empresarial do Estado dinâmico e dinamizador na banca, nos seguros e noutros sectores básicos e estratégicos como a energia, a indústria, os transportes e comunicações. Sector Empresarial do Estado que exige gestores competentes e incorruptos, ao contrário do que tem acontecido com o governo de direita em que os gestores participam muitas vezes por interesse directo ou como testas de ferro na privatização das respectivas empresas.

Fazendo frente à campanha das forças do grande capital é necessário que as forças sociais atingidas pela política da direita assim como as forças democráticas e patrióticas encarem sem preconceitos esta questão essencial para o futuro do país. Os valores e as experiências da revolução de Abril devem também a este respeito estar presentes.

Falando das realizações e valores de Abril e do desenvolvimento económico com a sua vertente social, é obrigatório falar da reforma agrária que a propaganda contra-revolucionária procura também tornar um «tabu».

O PCP colocou a reforma agrária na zona do latifúndio como um dos objectivos fundamentais da revolução democrática e do desenvolvimento agrícola e económico do país com a sua vertente social. A necessidade de liquidação da obsoleta estrutura e agricultura latifundiárias apareciam de tal forma evidentes que a necessidade de uma reforma agrária era de há muito apontada não apenas pelo PCP mas por economistas e sociólogos de ideologias muito diversas.

Só um espírito retrógrado e primário de classe do grande capital e o pânico do capitalismo ante reformas que ponham em causa o sistema podem explicar a defesa e manutenção da estrutura latifundiária do Alentejo e Ribatejo, o abandono dos campos, a agricultura extensiva, os baixíssimos investimentos e rendimentos.

A política de direita de restauração dos latifúndios, dos subsídios da CEE que recebem os agrários para não produzir, das coutadas de caça em grandes reservas protegidas por aramados, e mesmo a florestação indiscriminada de eucaliptos em dezenas e dezenas de milhar de hectares, são verdadeiros crimes contra a agricultura, contra a economia, contra o povo, contra o país.

Justifica-se inteiramente que o PCP continue a inscrever no seu programa uma reforma agrária na zona do latifúndio. É necessário não repetir situações (nomeadamente em relação a pequenos e médios agricultores) que só a conjuntura de então explica. É necessário sarar feridas geradas no processo de liquidação das UCPs/Cooperativas. A reforma agrária da revolução de Abril é porém tão extraordinariamente rica que obriga a que se retenham todas as suas experiências e êxitos económicos e sociais e todas as virtualidades e potencialidades reveladas pela luta heróica e o trabalho esforçado e criativo dos trabalhadores e das populações alentejanas e ribatejanas.

Em terceiro lugar, e componente da democracia proposta pelo PCP uma política social que garanta a melhoria das condições de vida materiais e espirituais dos trabalhadores e do povo em geral — vertente da qual o desenvolvimento económico deve ser considerado inseparável.

Precisamente ao invés da política do grande capital e do governo de direita e das suas consequências bem evidentes na sociedade, a democracia exige a eliminação dos grandes flagelos do capitalismo como o desemprego, a pobreza, a miséria, a prostituição, a droga, a toxicodependência, a marginalidade, a vaga de criminalidade e gritantes desigualdades e injustiças sociais.

Tal como sucede com as liberdades, também com os direitos sociais, nomeadamente os direitos dos trabalhadores, não basta o seu reconhecimento formal. Ao invés da política do grande capital e do governo de direita, impõe-se a sua concretização. Concretização dos direitos ao trabalho, ao emprego, à segurança social, à saúde, à educação, ao ensino, à cultura, ao desporto, à habitação, a um ambiente ecologicamente equilibrado, à tranquilidade e segurança das populações. E ainda o direito das mulheres à igualdade, dos jovens à realização pessoal e profissional, das crianças ao desenvolvimento harmonioso, dos idosos e reformados a uma vida digna, dos deficientes a uma vida integrada na sociedade, dos emigrantes portugueses no estrangeiro e dos imigrantes estrangeiros em Portugal à protecção dos seus interesses.

O Estado democrático tem também de chamar a si a responsabilidade essencial e garantir em nível adequado serviços sociais fundamentais como a saúde, o ensino, a segurança social, assim como um ambiente ecologicamente equilibrado, e de prestar uma contribuição decisiva para a solução do problema da habitação.

Uma política social democrática tem de ser acompanhada pela luta ideológica contra as novas «teorizações» largamente difundidas que procuram explicar e justificar, como necessidade objectiva inevitável e factor de desenvolvimento, a liquidação de direitos sociais. Merecem particular referência as alternativas que o grande capital e o governo de direita pretendem impôr aos trabalhadores como única garantia do emprego: baixa dos salários, partilha da Jornada de trabalho, renúncia a benefícios sociais.

O melhoramento das condições de trabalho e de vida e não o seu agravamento, a garantia dos direitos sociais e não a sua liquidação são elementos favoráveis e intrínsecos de um desenvolvimento económico no quadro da democracia.

Em quarto lugar, é componente da democracia proposta pelo PCP uma política cultural e de educação e ensino. que assegure a todos os cidadãos o acesso ao conhecimento, ao pleno desenvolvimento das suas capacidades e vocações, à livre criação e fruição culturais.

A cultura é tanto um testemunho como um factor do desenvolvimento geral da sociedade, do desenvolvimento integral da pessoa humana e da consciência cívica dos cidadãos. A revolução de Abril deu passos importantes embora insuficientes nessa direcção.

A cultura não pode ser concebida como monopólio das classes dominantes. Em democracia é um valor da sociedade e do indivíduo que tem de ser assegurado.

A generalização da fruição dos bens e actividades culturais, o estímulo à livre criatividade científica e artística, à descentralização de estruturas, recursos e serviços culturais, o apoio às formas populares de associativismo, a salvaguarda, estudo e divulgação do património cultural, o intercâmbio com outros povos, a valorização da formação cultural na escola, a educação física e o desporto nomeadamente da juventude como factores de valorização humana e de democratização da vida social, a erradicação do analfabetismo — são elementos de uma política cultural da democracia avangada proposta pelo PCP.

Finalmente, a democracia que o PCP propõe tem como condicionante (que se pode considerar uma quinta componente) a Independência, a soberania e a integridade territorial do país — valor inalienável do Povo, da Nação e do Estado.

A integração económica, política, diplomática e militar de Portugal na Comunidade Europeia, que com o Tratado de Maastricht evoluiu numa perspectiva federativa e que hoje é dirigida por instâncias supranacionais comandadas pelos países mais desenvolvidos, limita gravemente a independência e a soberania dos países menos desenvolvidos, como é o caso de Portugal.

A situação criada pela integração exige, não a política de capitulação nacional e de submissão a interesses estrangeiros do governo do PSD (secundado pelo PS) mas uma política verdadeiramente nacional e patriótica visando afastar ou limitar os aspectos negativos da integração e potenciar todos os aspectos eventualmente positivos.

A par da luta por uma Comunidade de cooperação de Estados livres, soberanos e iguais em direitos, é essencial para a democracia e a independência nacional no quadro da Comunidade Europeia, o desenvolvimento acelerado do país, implicando a aplicação adequada dos fundos comunitários, a exigência do princípio da «coesão económica e social» contrariada pela realidade da «Europa a duas velocidades», a invocação sempre que necessário dos interesses vitais do país, decisões e medidas concretas de defesa das actividades económicas portuguesas e dos produtos e produtores Portugueses, e de uma forma geral a defesa corajosa e firme dos interesses nacionais.

Reagindo contra imposições e pressões, propõe-se uma política externa diversificada, de paz, amizade e cooperação com todos os povos, a reconsideração da participação de Portugal na NATO e na UEO, a firme recusa à integração militar na União Europeia e à participação em agressões contra outros povos.

Numa afirmação de vontade e independência nacional digna da Revolução de Abril, concretizando-se a política democrática proposta pelo PCP «Portugal assume o seu pleno direito de decidir do seu próprio regime económico, social e político, da sua própria política interna e externa, do seu futuro e do seu destino».

A revolução de Abril foi uma afirmação histórica desse direito. Trata-se de um valor que Portugal está vitalmente interessado em projectar no seu futuro.


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Inclusão 12/10/2010