Conquistar a Democracia pela Base

José Chasin

Dezembro de 1977


Primeira Edição: Este artigo foi escrito entre setembro e dezembro de 1977, visando contribuir para análise e discussão das condições nas quais se processava a luta política pela democracia no país. À época, o texto circulou restritamente em versão mimeografada, posto que não se destinava à publicação. Seu caráter não ultrapassa o de um conjunto de anotações para posterior desenvolvimento. Foi publicado originalmente na revista Temas de Ciências Humanas nº 6. Editora Ciências Humanas, 1979.
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Brasil vive, há mais de treze anos, sob a égide e o comando da ditadura e do “milagre”.

A análise desta situação deve principiar compreendendo que, nem as ditaduras, nem os “milagres” são novidades na história brasileira; ao contrário, fazem parte, lamentavelmente, do que há de mais característico, profundo e dominante da nossa formação histórica. Ditaduras e “milagres” traduzem o caráter essencial de nossa formação e estrutura coloniais. Estrutura que se vem conservando sob formas diferentes — mais ou menos complexas, ou mais ou menos sofisticadas, como eixo básico de nossa existência social. Assim é, desde a empresa açucareira colonial, até a recente tentativa de uma economia de exportação de manufaturados.

Assim é, para só falar da nossa história republicana, desde a máscara democrático-liberal da República Velha, até a ditadura explícita da última década e tanto.

Em poucas palavras, e só para relembrar os períodos dominantes e mais decisivos do nosso processo econômico-social: sucessivamente tivemos o “milagre” da cana-de-açúcar, o “milagre” da mineração, o “milagre” do café, e finalmente, dentro do “milagre” da industrialização subordinada ao imperialismo, o menor e mais curto de todos, o “milagre” de 1968 a 1973.

Este último, baseado na dinâmica econômica da indústria automobilística e produtos correlatos, os chamados bens de consumo duráveis, destinados a uma absorção por segmento privilegiado do mercado interno; “milagre” também sustentado pelo “esforço” exportador predominantemente, como sempre, de produtos primários e matérias-primas, e, de modo complementar, mais na aparência do que em termos efetivos, pela venda ao exterior de manufaturas.

Entrelaçadamente com os “milagres” e afinados com estes, temos a sucessão das especialidades políticas. Sem contar o período monárquico, que fala por si mesmo, montado que esteve sobre a mão de obra escrava, o período republicano, em sua primeira fase de pouco mais de quarenta anos, fez vigorar a “política dos governadores” — estrutura de poder autocrático, de fachada liberal-democrática, real ditadura das oligarquias rurais.

A segunda metade da década de trinta, depois de irrelevantes e pouquíssimos anos constitucionais, vê surgir a ditadura do Estado Novo, que só findará com o término do segundo conflito mundial em meados da década seguinte. Os anos quarenta terminaram com o governo constitucional de Dutra, sob o patrocínio da Constituição de 46 e da política imperialista da guerra fria, redundando em repressão geral, particularmente aos comunistas, que são postos na ilegalidade, com a cassação de todos os seus parlamentares, após curta existência legal. Do retorno de Vargas ao poder, por via eleitoral, até o golpe de 64 transcorrem os anos “mais democráticos e liberais” da vida nacional. Menos, portanto, de década e meia, através da qual a democracia vigente, com todas as suas limitações, foi várias vezes duramente atacada, e ao cabo da qual não se conseguiu firmar.

É muito fácil notar, portanto, mesmo numa simples e apressada panorâmica como esta, que a história do Brasil é “rica” em ditaduras e “milagres”. Pobre efetivamente de soluções econômicas de resolução nacional e carente de verdadeira tradição democrática.

Trata-se, pois, no Brasil de conquistar a democracia, e não propriamente de reconquistá-la, visto que, até hoje, em termos concretos não a conhecemos de forma duradoura e real, nem mesmo nos limites mais acanhados do que se entende por democracia burguesa.

Toda via, os “milagres” e as ditaduras da vida nacional, apesar de seus decisivos e comuns significados gerais, devem ser analisados na sua especialidade. É preciso entender a dinâmica de cada uma, suas contradições próprias e decorrentemente o modo pelo qual principalmente as massas devem lutar contra elas. Mais do que isso, é preciso compreender, para conduzir vitoriosamente a ação das massas, a caráter de cada momento de um processo ditatorial, principalmente quando este momento é um momento de crise.

2

A crise atual, apesar de recente, não é uma recém-nascida, — já data do segundo semestre de 1973. Numa palavra, vem cobrindo todo o período do governo Geisel.

A crise atual é a crise do último “milagre”, e não, portanto, uma crise à superfície das instituições. É o fracasso de uma política econômica, o fracassado que, numa terminologia errônea, vem sendo chamado de “modelo”, e não simplesmente o “cansaço”, desgaste ou esgotamento da ditadura implantada em 64, supostamente ruída pelo tempo. Muito menos é a crise atual, o resultado de uma vaga aspiração nostálgica e abstrata pelas “liberdades”, nem o poderia ser — , haja vista que isto se mostra historicamente improcedente — quando se leva, na devida conta, o que ficou esclarecido no item anterior.

Tais afirmações parecem contrariar o que seria “evidencia” do que vem ocorrendo nos últimos tempos. Parecem cometer o engano de recusar a “efervescência” política em marcha, e parecem também cometer o equívoco de desconhecer o renascimento de um “debate” tão valorizado por alguns setores.

Mostraremos que não, que não se ignora ou desvaloriza acontecimentos, mas tão-somente que se repõe as coisas, pela análise correta, nos seus devidos e justos lugares.

É sabido que os aspectos de uma totalidade nacional tendem a se alterar quando se registram modificações (positivas ou negativas) na sua viga mestra, isto é, na sua estrutura de produção material. também é conhecido, se bem que menos, que a correspondência entre tais alterações não é uma relação mecânica ou automática, embora se mantenha sempre, o que é decisivo, a direção básica da determinação, isto é, os aspectos políticos são essencialmente determinados, enquanto a realidade econômica é por natureza determinante. Em nossos dias, ainda que sabidas, estas concepções voltaram a exigir que sejam relembradas, dada a enorme diluição e mistificação por que passa a elaboração teórica (inclusive a que se pretende ligada à dialética), não sendo demais reafirmar com Engels, a título de simples ilustração, que, ao se realizar uma análise política, “trata-se de reduzir, segundo a concepção de Marx, os acontecimentos políticos e efeitos de causas que, em última instância, são econômicas” .

De modo que não se trata de negar a efetividade de certos acontecimentos, nem de recusar certa “efervescência” política, e também não de desvalorizar um dado “debate” que procura renascer.

Trata-se, isto sim, de compreender tais coisas em suas devidas dimensões e significados; no seu tamanho e sentido reais; no seu lugar próprio, enquanto especificidades determinadas por uma totalidade que se ordena e estrutura pela base econômica(1).

Só assim compreender-se-á o que está acontecendo, superando as opiniões imediatistas e superficiais que se formam apressadamente em contato apenas com as aparências. Para a dialética a aparência é um aspecto do real, seu aspecto mais superficial e elementar, a aparência (o que aparece) traduz as relações mais simples do real, é a epiderme que se mostra e que, na maioria das vezes, está em contradição com a essência dos fenômenos. Se assim não fosse, Marx não teria observado que “Toda ciência seria supérflua se a aparência das coisas coincidisse diretamente com sua essência”. (O Capital.) Impõe-se, consequentemente, ultrapassar o nível das aparências. É o que significa aprofundar dialeticamente a análise.

É o que permitirá apreender concretamente a realidade, no processo do conjunto de seus múltiplos fenômenos, identificando, assim seus fatores estruturais, responsáveis pelos significados decisivos do momento atual. E as próprias aparências poderão, então, revelar verdadeiros significados, permitindo, assim, que sejam objetivamente consideradas para efeitos programáticos.

Para realizar, é óbvio que somente em parte, o aprofundamento analítico proposto — e dele extrair as consequências para o terreno dos programas políticos, pois que é de política, acima de tudo, que aqui se trata, e de política na perspectiva das massas — , principiemos pela consideração das duas questões fundamentais até aqui apontadas: o fracasso do “milagre” e a movimentação política em curso.

Pelo exposto até aqui, o fracasso do “milagre” aparece como o aspecto profundo e estrutural do momento brasileiro, e a movimentação política, até agora registrada, como sua aparência.

É preciso logo de início, deixar claro o que se compreende por fracasso do “milagre”. Trata-se de um fenômeno complexo da acumulação capitalista no Brasil, comportando determinações contraditórias. Para facilitar a compreensão deve-se dizer que o “milagre” de 1968-1973 é duas vezes um fracasso e uma vez um efetivo sucesso.

Ele é um fracasso, pela primeira vez, desde suas origens, desde os momentos iniciais de sua implantação. Nesse sentido ele é, desde logo, uma enorme e grave falsidade enquanto formulação de um projeto econômico para o país. Sob este aspecto o “milagre” é uma proposta política econômica que jamais poderia encaminhar soluções, nem mesmo em parte, para os básicos problemas matérias que afligem de longa data as classes dominadas do Brasil. Ao contrário, a dinâmica econômica que ele propôs e implantou tem como base necessária a maciça exclusão das camadas populares dos resultados que produz. Em termos rigorosos a estrutura de produção em que se baseia o “milagre” produz necessariamente uma distribuição negativa para as classes subalternas. Para se realizar, o “milagre” obrigatoriamente tem de gerar a miséria de amplas camadas populacionais; o aviltamento da maior parte da forca de trabalho empregada é a condição de seu funcionamento.

Deste ponto de vista, a oposição brasileira em seu conjunto não foi capaz de compreender o caráter de dinâmica posta em marcha, e passou simplesmente, no melhor dos casos, a reclamar inutilmente por uma impossível correção das “formas injustas” de distribuição da riqueza gerada, não denunciando criticamente na raiz, como seria o caso, a forma de produção implantada, responsável causal direta, este sim, pela distribuição negativa, revelando desconhecer a determinação marxista fundamental de que a distribuição é produzida e condicionada pelas formas de produção. A oposição, assim, em suas componentes mais avançadas, de quem se poderia esperar uma visão mais correta, não compreendeu o que estava concretamente em curso, e sua atuação pôs-se, consequentemente, à margem do essencial, não atacando os fatores determinantes do quadro objetivo. Isto é verificável mesmo sem considerar que, no próprio seio da oposição, havia e há forcas para as quais “iludir-se” com o “milagre” é uma consequência de suas posições de classe e decorrentemente de seus interesses econômicos imediatos.

O “milagre” é fracasso, uma segunda vez, quando considerado como esgotamento de uma fase de acumulação. Isto é, quando se torna evidente, mesmo no nível das aparências, das relações mais visíveis e à flor da pele, que a larga acumulação efetivada entre 68-73 não tinha mais como prosseguir, que havia chegado a seu termo. Isto é, quando se torna ostensivo que a estrutura de produção em vigor não é mais capaz de prosseguir multiplicando o capital no mesmo ritmo que o vinha na fase imediatamente anterior, isto é, durante os anos do “milagre”.

Sintetizando as duas formas de fracasso do “milagre”: do ponto de vista das necessidades gerais da nação, ele e um fracasso como projeto e organização da produção, consideradas as necessidades das classes subalternas, numa palavra, do conjunto do povo brasileiro; é também um fracasso, ao cabo de poucos anos, quando se consideram, a partir de 73, as exigências naturais do próprio capital: a acumulação deste é entravada pela própria estrutura de produção que durante um certo tempo o beneficiou larga e exclusivamente. Em suma: o “milagre” fracassa como projeto e prática do desenvolvimento nacional, dado ter por base insuperável a exclusão da maioria do povo brasileiro desse desenvolvimento, e fracassa também, esgotando rapidamente suas possibilidades, mesmo como simples forma restritamente voltada apenas para a acumulação do capital. Para facilitar a exposição passaremos a chamar, daqui para frente, os dois aspectos do fracasso do “milagre”, respectivamente por fracasso geral e por fracasso específico do “milagre”.

Tanto quanto em relação ao primeiro, também relativamente ao fracasso restrito a oposição não esteve à altura dos acontecimentos. Se aos primórdios da implantação da política econômica vigente, a oposição não foi capaz de pôr a nu e denunciar as mecanismos do projeto econômico da ditadura, e a partir daí equacionar e lutar por um programa político verdadeiro e eficiente, também quando se verificou o fracasso restritivo, quando o “milagre”, se esgotou, a oposição não compreendeu verdadeiramente o que ocorria. Sem dúvida que esta segunda incompreensão nasceu e esteve condicionada pela primeira, mas dada a diferença entre os dois fracassos, os momentos histórico-sociais também são distintos, e as consequências das duas incompreensões também se mostram diversas, principalmente no terreno prático da atuação política.

Quanto a isto basta recordar três pontos: 1) a falsificação do índice de inflação referente a 1973, operada pelas agências oficiais; 2) a assim chamada crise do petróleo; 3) os pronunciamentos do empresariado.

No que se refere ao primeiro ponto, a questão é gritante. Já como sinal da pane do “milagre” houve o recrudescimento do processo inflacionário. A ditadura, no final do mandato Médice e ainda sob o império da “generalidade” de Delfim Neto, não encontrou, em seu arsenal de recursos, resposta melhor do que a pura falsificação do índice inflacionário, reduzindo fortemente sua expressão numérica.

O DIEESE certificou sua discordância quanto aos cálculos oficiais anunciados, publicando os índices reais. A oposição não se sensibilizou com a questão e não houve ação parlamentar que levasse o problema às tribunas. A oposição simplesmente desconheceu o significado da ocorrência, que duramente lesava, sob mais uma forma, os já fortemente achatados salários da massa trabalhadora. Não entendendo os mecanismos econômicos vigentes, não compreendeu o potencial político que podia ser explorado e que estava contido no episódio da falsificação, pois o exame da mesma permitira elevar a crítica aos fundamentos da ditadura, e principiar a desmascará-los, agora que o “milagre” esboroava, e já não podia constituir pretexto para a ideologia do “crescimento do bolo”. Se assim tivesse procedido, a oposição, ou, pelo menos, seus representantes mais avançados, teria apoiado a massa trabalhadora e a ela tentado se unir de fato e pela raiz, criando, desse modo, estímulos à ação sindical, dura e persistentemente reprimida, e propiciado o início de uma acumulação de forcas junto ao proletariado, sem o qual e qualquer esperança política é vaga e insubsistente. Todavia, o silêncio imperou nas hostes oposicionistas, e, assim prosseguiu, quase que inalteradamente, até mesmo quando o relatório do Banco Mundial denunciou a fraude, e até mesmo Mário H.Simonsen se viu obrigado a reconhecer a “divergência” dos índices, revelando mesmo que desde 73 sabia da questão e sobre ela prevenira o futuro presidente Geisel, em relatório confidencial, quando aquele estruturava sua equipe e programa. E nem mesmo quando recentemente o movimento sindical se repôs, de público, valendo-se maduramente da questão, nem mesmo então, a oposição, ou seus representantes mais avançados, compreendeu a imensa dimensão política da ocorrência. Mais uma vez, e nesta oportunidade de forma a mais bisonha, a oposição deixou passar a oportunidade de iniciar a efetivação de um real e concreta ação oposicionista. Sem dúvida, à oposição brasileira vem faltando, por inteiro, o sentido da perspectiva do trabalhador, razão pela qual ela tem-se mostrado tão extraordinariamente frágil e inconsequente.

Relativamente ao segundo ponto, ao da assim chamada “crise do petróleo”, o panorama é também de poucos méritos e creditar para as fileiras oposicionistas.

A ditadura, a braços com o fracasso específico do “milagre”, isto é, com o esgotamento de um ciclo de acumulação, tomou a crise geral do sistema capitalista, os desequilíbrios e as dificuldades mundiais do sistema internacional do capitalismo, particularmente a reformulação por que passou o comércio petrolífero, como a explicação e justificativa para as suas próprias e ásperas dificuldades. Com esta forma de interpretação cometeu duas inversões analíticas ao mesmo tempo: deu à questão do petróleo a qualidade da causa da crise capitalista, e a ambas, principalmente à primeira, como razões dos problemas econômicos nacionais. Num primeiro lance, o Brasil era afirmado ainda exceção num mundo conturbado, “uma ilha de desenvolvimento e tranquilidade, num universo de recessão e atrocidades”. Este diagnóstico falsificado da realidade brasileira e mundial permeou a oposição, desarmada (ou armada?) pela sua incompreensão básica da realidade nacional.

Tanto quanto acreditou no “milagre”, a maior parte da oposição também, em boa medida, foi sensibilizada pela explicação da ditadura; pelo menos articulava os conceitos de modo muito próximo ao esquema governamental. Mais uma vez desconhecendo (e não casualmente) a estrutura da organização da produção em vigência, a oposição não soube compreender, e daí tirar proveito político, que a “crise do petróleo” era efeito da crise do sistema capitalista no seu todo, e não o inverso, e que, no Brasil, o aumento dos preços do petróleo não gerava o esgotamento do “milagre”, mas simplesmente precipitava seu desenlace e acentuava suas debilidades estruturais, levando mais rapidamente a um desequilíbrio da balança de pagamentos e ao progressivo endividamento externo. Não entendeu, mesmo quando a realidade se esfregava em seu nariz, que o desequilíbrio da balança de pagamentos, bem como da balança comercial, e ainda a fenomenal dívida externa eram consequências intrínsecas do próprio “milagre”. Isto é, que mesmo sem a “crise do petróleo”, ainda que talvez um pouco menos rapidamente, os mesmos desequilíbrios e a mesma dívida seriam os resultados inevitáveis do “milagre”. Não compreendeu que o desequilíbrio da balança comercial que gera o desequilíbrio da balança de pagamentos, donde redunda o endividamento crescente, tem por principal fator estrutural a importação de bens de produção e insumos básicos; que os gastos com a importação destes são progressivos, superando crescentemente os relativos à importação do petróleo que, aliás, tendem a uma certa estabilização, ao contrário daqueles. Importação de bens de produção de bens de consumo duráveis, visando à absorção de tais valores na própria organização da produção tal como está subentendida pela política econômica do “milagre”, voltada que está para a produção de bens de consumo duráveis, visando à absorção de tais valores por estreita e privilegiada faixa social. Não compreendeu, numa palavra, o conjunto da oposição que um “modelo exportador”, nas condições de subdesenvolvimento é concomitante, irreversível e determinantemente um “modelo importador”. É sob este ângulo que a pata imperialista melhor se mostra em toda sua anatomia. Há que fazer justiça a pouquíssimas vozes isoladas da oposição, que no parlamento federal buscaram e fizeram importantes esforços críticos em relação à política econômica governamental.

Todavia, tais pronunciamentos, até agora, não conseguiram vencer e superar a barreira da alienação do conjunto da oposição, nem sequer fazer com que as forcas mais válidas, entre as agrupadas na frente emedebista, se voltassem para o imprescindível exame da base da ditadura.

Em síntese, a oposição que, pelo exame e debate da “crise do petróleo”, poderia desnudar o “milagre” revelando as raízes do regime antipopular e antidemocrático no poder, e, em consequência, formular uma política alternativa, mais uma vez passou a si mesmo um atestado de ignorância e incompetência; deficiências estas, classisticamente determinadas, é evidente, mas não por isso mais desculpáveis, principalmente quando presentes junto a forcas que julgam representar, de algum modo perspectivas de ordem popular.

Por fim, o terceiro ponto, o mais próximo do momento atual, e que, em parte, ainda vivemos; aquele que indicamos sob a expressão de “os pronunciamentos do empresário”.

Tanto quanto os dois pontos demonstrativos das agudas incorreções do comportamento oposicionista que acabamos de examinar, também este último relaciona-se diretamente com o fracasso específico do “milagre”, mesmo porque é somente a ocorrência deste último que passam a ocorrer os “pronunciamentos do empresariado”.

Vale preliminarmente não deixar desapercebido que, se sabe, que diretamente relacionado com o fracasso específico, o erro e engano de avaliação que a oposição tem cometido quanto aos “pronunciamentos do empresariado” tem também como condicionante de fundo, tanto quanto os dois outros pontos examinados, a incapacidade que ela também revelou quanto à compreensão do fracasso geral do “milagre”.

A própria época em que vão-se dar os “pronunciamentos dos empresários” faz compreender o seu verdadeiro significado. Só a profunda alienação que a oposição vive em seu conjunto, sob diversas formas, há longos anos, permite entender a confusão que tem praticado quanto a essa questão.

É de vital importância atentar que os empresários só vem a público para determinadas manifestações de opinião em termos recentes, precisamente quando o país já está às voltas com o fracasso específico do “milagre”. Isto é, quando a acumulação capitalista propiciada pelo “milagre” chega a seu esgotamento.

Quando, portanto, a taxa de acumulação e de lucro decrescem. Num primeiro momento, tais manifestações se explicitam sob a forma de combate ao estadismo. Longa e sistemática campanha foi, então, movida nesse sentido e dominou os primeiros anos do governo Geisel. E não casualmente: se num plano geral se estava diante do esgotamento do “milagre”, mais especificamente, tendo o governo Geisel identificado o problema, havia sido o II PND que enfatizava um programa econômico voltado para a indústria de base, o que entreabria o “perigo” de uma intervenção estatal na economia ainda maior. A campanha anti-estadista levou à derrocada do II PND.

Não é preciso dizer do vital interesse do imperialismo quanto a esta questão, nem de sua decidida e decisiva intervenção.

O segundo momento dos “pronunciamentos dos empresários” principia timidamente em fins do ano passado e vai num crescendo ao longo dos primeiros 7 ou 8 meses de 1977. É o “desaquecimento da economia” que está em pauta, são suas consequências negativas relativamente à dinâmica dos negócios que inquietam o capital e suscitam suas verbalizações, movidas por interesses imediatos, e encapadas em expressões políticas que, por vezes, tem a aparência de licitações liberalizantes. São pronunciamentos quase sempre individuais que não chegam a alcançar forma estruturada e representativa maior. Quando de forma organizada o empresariado vem a se pronunciar temos sua verdadeira face. A expressão maior disto se verificou recentemente, durante a CONCLAP, capitaneada pelos representantes dos monopólios estrangeiros e nacionais, onde a voz das pequenas e médias empresas foi praticamente nula, tendo-se limitado a instituir nas suas perenes e reais necessidades de financiamento. Deixando de lado os aspectos pitorescos — , como o de Bardella aventando a possibilidade de “oferecer” a legalidade aos comunistas, caso os “comunistas existam”, quando mais natural seria e melhor faria em se ocupar por garantir para o capital nacional, que é o seu, espaço na produção de bens de produção, deixando para os comunistas, caso “existam”, que pensem e lutem por sua legalidade — , a CONCLAP tornou evidente o pensamento dominante entre os grandes empresários, que se mostrou surpreendente. Seus arroubos “democráticos” sintetizam-se no propósito de excluir o Estado da atividade econômica, seja como investidor, seja como controlador.

Defendem, pois, uma organização econômica de tradicional talhe, verdadeiramente pré-keynesiano. Mas estes baluartes do liberalismo econômico já não são tão fantásticos quando se trata de democracia.

Ao contrário, neste sentido suas convicções são completamente destituídas de vigor. Efetivamente não quebram lanças pelas prerrogativas políticas democráticas. De fato as temem, pois os direitos políticos teriam de ser partilhados com as massas, caso formalmente instituídos. De modo que os “pronunciamentos dos empresários” revelam liberalismo econômico, mas não a defesa de princípios democráticos. Portanto, a “democracia” dos empresários se resume um lutar pelos lucros, no que seguem não só a inclinação básica e natural do capital, mas as características das classes dominantes brasileiras, que são economicamente liberais, mas não politicamente democráticas. O que faz, no momento, que a “democracia” dos empresários se esgote reacionariamente na luta contra a estatização. No que se conjuga plenamente com os interesses do imperialismo.

Fácil é compreender que socialmente é mais eficiente e viável lutar pelos imediatos interesses econômicos empresariais encapando-os ilusoriamente com os interesse democráticos das maiorias, do que apresentando-os em sua nudez privatista.

Que este seja o significado real dos “pronunciamentos dos empresários”, que este não se tenha convertido de repente e por milagre à democracia, basta recordar, que, enquanto o “milagre” funcionou o empresário sustentou, honrou e defendeu intransigentemente o regime em toda a sua extensão ditatorial. Não é, pois, do regime da ditadura que os empresários se cansaram, mas o que eles não toleram é o fim do “milagre” e suas consequências diretas sobre seus negócios. De tal modo que ao discutirem a “democracia”, o que fazem realmente é debater e lutar pelas formas e condições em que se dará a nova fase da acumulação capitalista.

Os diversos setores empresariais querem simplesmente garantir as suas fatias do novo bolo a ser cozido. Por estas razões, e não porque as diversas frações das classes dominantes ainda não acertaram entre si o novo “modelo” político, é que se vem assistindo a uma certa movimentação neste campo, mesmo porque o regime que ah está, com uma pequena caiação, é precisamente do que usufruíram e continuam precisando os monopólios. Dele não estão, nem nunca estiveram cansados.

O que cansa e desestimula, e não ao capital, é ver que não poucos nutrem a ilusão de que as massas trabalhadoras tenham com isto qualquer afinidade ou coisa em comum, que a luta das massas pela democracia seja confundida com batalha reacionária do grande capital — brasileiro e estrangeiro — pelo liberalismo econômico, isto é, pela expulsão do Estado da atividade econômica.

Não atuando através de uma real compreensão dos acontecimentos objetivos, não distinguindo seus diversos componentes, a oposição não vem sabendo fazer mais do que confundir as necessidades democráticas das massas (que abrangem vários planos, e não apenas o institucional) com o “liberalismo” econômico dos monopólios, atuando oportunisticamente na pseudo-convergência entre ambos. Em mais esta ocorrência, a dos “pronunciamentos dos empresários” a oposição deixou escapar a oportunidade de fazer a crítica de fundo da política econômica em vigor, e, assim, está deixando de aproveitar a ocasião, aberta pelos referidos pronunciamentos, para introduzir nos debates a sua própria perspectiva e com isto dar conteúdo concreto à movimentação em curso. Não o fazendo, sua plataforma acabou por se esvaziar progressivamente até se reduzir ao formalismo inerme de uma Constituinte oca, absolutamente destituída de qualquer diretriz. Com isto a oposição no seu todo, e lamentavelmente até mesmo suas componentes mais avançadas fazem o jogo e ficaram a reboque de seu próprio adversário. Isto evidencia de forma dramática a ausência, no curso dos acontecimentos, da perspectiva do trabalho. Em última análise, o trabalhador brasileiro, de fato, não está sendo verdadeiramente considerado e representado, na oposição. E este é, sem margem para qualquer dúvida, o problema maior para as forcas políticas mais avançadas da oposição. De sua solução depende, a curto, médio e longo prazos, a luta contra a ditadura, bem como qualquer passo concreto, por menor que seja na direção da conquista de um quadro social um pouco menos desfavorável para as amplas e sempre sacrificadas massas brasileiras. Só a presença da perspectiva do trabalho no seio da oposição dará consequência à luta oposicionista. No quadro de uma ampla frente, sim, mas frente que necessita ganhar contorno e estrutura palpáveis, que só a perspectiva do trabalhador a obrigará a adquirir e sustentar.

Falou-se, mais atrás, que o “milagre” foi duas vezes fracasso, mas não se deixou também de assinalar que ele foi uma vez verdadeiro sucesso. Em que constituiu tal sucesso é do que nos ocuparemos agora, aproveitando para sumariamente expor o esqueleto da política econômica que o consubstancia.

O “milagre” é uma forma de desenvolvimento capitalista; desenvolvimento no quadro dos países economicamente submetidos ao imperialismo, que beneficia o capital monopolista e que expulsa as massas populares da esfera dos direitos políticos e econômicos.

Semelhante desenvolvimento atende ao objetivo essencial e único da acumulação capitalista enquanto tal. Atende às exigências do capital em sua forma monopolista, submetendo tudo o mais a seus próprios objetivos, vinculados estes especialmente ao grande capital externo.

No caso brasileiro, os mecanismos principais do “milagre” podem ser simplificadamente assim delineados.

A organização da produção foi sistematizada sobre dois eixos básicos, indissolúveis em sua complementaridade orgânica: a produção de bens de consumo duráveis para absorção de uma fatia privilegiada do mercado interno, e o, assim chamado, esforço exportador, que, mantendo a tradicional dimensão exportadora da economia brasileira, baseada em bens primários, a ela buscou agregar um componente de bens manufaturados.

Da conjugação destas duas linhas produtivas é que se desenhou, pelo prazo de alguns anos, o “milagre”. Não sendo esta mais do que uma expressão complexificada e sofisticada da estrutura de caráter colonial ou neocolonial da economia brasileira. Por outros termos, a economia do país realiza-se e está voltada, como subordinada, para os interesses e determinações das economias centrais que a imperializam. As necessidades internas, as carências nacionais, particularmente as das vastas camadas trabalhadoras das cidades, e dos campos ficam relegadas a planos infinitamente secundários, desentendidas, mesmo em suas necessidades primárias. Numa palavra, amplas camadas populares são inteiramente sacrificadas, coagidas a níveis baixíssimos de subsistência, e sobre este sacrifício e por causa dele realiza-se a acumulação capitalista, atendendo à dinâmica do capital monopolista, particularmente o estrangeiro.

No caso do último “milagre (1968-1973) o pólo dinamizador da economia esteve montado sobre a produção de bens de consumo duráveis, notadamente a indústria automobilística e seus correlatos, bem como de produtos afins dos denominados bens de consumo burguês. Destinada ao consumo interno, esta forma de produção tinha que gerar imprescindivelmente um privilegiado mercado de consumo, socialmente muito restrito, numericamente acanhado, mas suficientemente dimensionada para ser apto a absorver a produção efetuada, e assim realizar a mais valia criada, é precisamente a isto que se chamou de ‘pacto social com a classe média’”. A concentração de renda é, pois, decorrência lógica da organização da produção posta em andamento, decorrência lógica e absolutamente necessária. A miséria produzida pelo “milagre” é resultante, portanto, da organização da produção que ele subentende, e não a simples falta de uma equação distributiva e mais equitativa. Isto é, por mais que o “bolo crescesse” jamais poderia render para as massas trabalhadoras.

Quanto a este setor produtivo há que ressaltar ainda sua condição de propriedade dos capitais estrangeiros. E, em decorrência, que a realização final da mais valia por ele apropriada só se efetiva na sua remessa para o exterior. Ou seja, produzindo para consumo do mercado interno brasileiro, realiza sua mais valia em cruzeiros, que precisam ser convertidos em dólares quando se trata de remeter o produto de suas operações para os centros que o comandam e determinam. Além disso, o desenvolvimento da produção de bens de consumo duráveis implica, nas condições do subdesenvolvimento brasileiro, a importação de bens de produção e insumos básicos. O que significa, no conjunto, a necessidade de obter volumosas quantidades de divisas. Daí o chamado “esforço exportador” para obter dólares. Todavia, por mais forte que ele tenha sido, por mais incentivado que ele seja, nunca foi capaz de atender às necessidades na geração de tais recursos.

Daí o crônico e crescente desequilíbrio da balança comercial e correlativamente da balança de pagamentos. Como consequência foi-se compondo com grande velocidade o endividamento externo, que atinge hoje, mesmo em cifras oficiais, a casa dos 30 bilhões de dólares, devendo alcançar em 1980 algo em torno de 45 bilhões. O que significa em 1978 só com o serviço da dívida (juros e amortizações) os cofres nacionais terão de desembolsar aproximadamente 7,5 bilhões de dólares, e mais de 8 bilhões em 1979. O que implica dizer que só com o serviço da dívida o Brasil absorveria 55% de suas exportações prováveis. E, mesmo segundo técnicos a serviço do capital estrangeiro, uma evolução insuportável da dívida externa.

Esta linha de tendência, que chega a seu impasse, veio-se compondo desde o segundo semestre de 1973. Em síntese: os próprios mecanismo do “milagre” levam à sua inviabilidade ostensiva.

Inviável como projeto de real desenvolvimento, inviabilizar-se, em poucos anos, no curso de sua própria aplicação.

No que foi, então, o “milagre” um sucesso? Precisamente em ter propiciado, ainda que por um curto prazo, uma fase, um período de acumulação. Atendeu às demandas naturais de acumulação do capital. Sob a atrofia e sacrifício de tudo o mais, é verdade, mas realizou uma fase de acumulação. Aproveitamento uma disponibilidade financeira exterior e achatando violentamente os salários das massas trabalhadoras, sob o pretexto, aliás real, porém isento de novidade, de ter de levar ao mercado externo produtos e preços competitivos, cujo significado concreto é vender barato e comprar caro, que é a marca estrutural dos países economicamente subordinados.

O “milagre”, pois, é um milagre sobretudo para o capital financeiro internacional, sob a condição de que veja constantemente assegurada a certeza de que os mecanismos econômicos montados produzam e reproduzam a captação dos dólares necessários para “remunerá-los”. E é precisamente o contrário disto que hoje se verifica, num processo que vem-se explicitando cada vez mais agudamente desde os primeiros momentos do governo Geisel. Numa palavra, o “milagre” incompatibilizou-se consigo mesmo. Não é mais capaz de ir reproduzindo os passos do processo de acumulação, contradizendo a si mesmo.

Face a isto acabou por se impor, após um momento de inconformidade e relutância, a política do desaquecimento econômico, o que equivale dizer que o “milagre”, incompatibilizado em seus próprios mecanismos, convertido numa fera voraz quanto mais crescia com mais apetite devorava seus próprios fundamentos, teve de ser amordaçado e manietado. Os altos índices de crescimento do PNB deixaram de ser estimados e ostentados como demonstrativos e coroamento dos sucessos da ditadura, convertidos, agora, em resultados ameaçadores que deveriam ser evitados a qualquer preço.

Mas a política de desaceleração econômica não tinha como satisfazer a nenhum dos setores econômico-sociais, pois condena a todos, quando não ao retrocesso, pelo menos a níveis de estagnação, ou a ritmos reduzidos de crescimento. Contudo, mesmo face à inquietação política que assim se gerou, não havia, dentro do sistema, outra alternativa e o desaquecimento se pôs como medida de urgência para evitar a crise em seus aspectos mais dramáticos ou aprofundados, e como instrumento de transição para a nova fase de acumulação que exigia fosse demarcada e desencadeada no mais breve prazo possível.

Estes são os problemas básicos que estiveram e estão em jogo, num crescendo, ao longo dos últimos tempos. Questões decisivas de infraestrutura, que a nível de superfície mostraram-se como turbulência política, ou melhor, institucional.

Moveu se, portanto, a sociedade, há que ressaltar de novo, particularmente alguns de seus setores, não como o fracasso geral do “milagre”, que agravou os problemas da questão nacional e relegou violentamente as amplas massas trabalhadoras a condições extremamente negativas. Mas movimentaram-se tais setores somente com o fracasso restrito. Não os moveu, consequentemente, inspirações ou anseios democráticos: não os movimentou qualquer fantasioso cansaço pela ditadura. Quando passaram e reivindicar maior participação para si, maior direito de opinar sobre o “futuro da nação”, estavam, e estão, é disputando o “direito” no bojo desconfortável do desaquecimento, de pagar o menor ônus possível pelo fracasso restrito do “milagre”, e buscando garantir a melhor posição possível na futura organização da produção que regerá a nova fase de acumulação. Eis a “democracia” em que estão empenhados.

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Para bem compreender o instante atual e encaminha uma equação tática, digna das perspectivas das classes trabalhadoras e de suas necessidades, e que de fato seja eficiente no encaminhamento da luta pelas conquistas democráticas o que subentende cercar, desmoralizar e derrubar a ditadura (que nenhuma cai por si só, apenas pelo corroimento interno), retomemos, para certo desenvolvimento, alguns pontos já mencionados.

A política econômica da ditadura conheceu seu estrangulamento pela contradição que se estabeleceu, dadas as condições do país economicamente subordinado, entre o esforço exportador e as exigências de importação. Estas superando sempre aquelas, gerando os desequilíbrios das balanças comercial e de pagamentos implicando progressivo endividamento. Evidentemente, completam ainda este quadro os demais ônus decorrentes da forte presença no interior da economia brasileira do capital estrangeiro. Como já indicamos, a responsabilidade maior pelas importações reside nos bens de produção, equipamentos e insumos básicos. Alto e crescente é o percentual que lhe corresponde na absorção dos dólares captados nas relações de troca com o exterior. Ao contrário do que foi propalado pela ditadura, como justificativa de suas dificuldades, os gastos com o petróleo são meros perturbadores, seja pela sua grandeza absoluta, seja porque seu consumo tende a uma certa estabilização, ao contrário dos bens de produção e insumos básicos que implicam demanda crescente, e são diretamente responsáveis pela continuidade do processo de acumulação. Obstar ou restringir este consumo produtivo é interferir diretamente no processo de reprodução do capital. Ao limite é a recessão que se põe.

O II PND, preparado pela equipe Geisel quando formulava seu plano de governo, divisou a questão e enfatizou um projeto de desenvolvimento desse setor. Em últimas instâncias, propunha-se a operar uma nova fase do processo de substituição de importações, posta esta, agora, a nível da indústria de base.

Pretendia com isto resolver o problema do estrangulamento econômico que se estabeleceu, e que principiava a se tornar evidente.

Seja em razão da subordinação econômica do país aos centros altamente industrializados, seja pelo encaminhamento contraditório que o II PND dava à questão, buscando canalizar capital estrangeiro para tal fim, sejam pelas múltiplas pressões que foram exercidas de todos os lados, seja, enfim, pelo retardo com que a questão foi enfrentada (e não por acaso, considerados os interesses do imperialismo desde a década de 50) a verdade é que o II PND foi reduzido praticamente a nada. A questão, portanto, da produção dos bens de produção (equipamentos e insumos básicos) não foi realmente encaminhada e muito menos resolvida.

E este é, insuperavelmente, como já o foi no passado, o grande desafio do momento. Sob este aspecto o “milagre” de 1968-1973 foi simplesmente uma forma de contornar e protelar a questão, mas que não escapou de repô-la com ênfase ainda maior.

E é o que se faz hoje, o cerne de toda a discussão. É a pedra angular de todas as disputas e combates, na exata medida em que, de 64 para cá, o Brasil, mais do que nunca, foi convertido à situação de arena de disputas dos monopólios internacionais.

É quanto a isto que os setores dominantes buscam se acertar, no clima de desfavorável transição do desaquecimento, onde os inconformismos diante do fracasso específico do “milagre”, que recalca certos setores econômicos a planos secundários, ainda não foram superados.

Não é, portanto, difícil entender por que a disputa pelo poder se manifesta desta vez com particular intensidade, sendo cada uma das candidaturas afloradas o produto ou a incorporação de tendências ou interesses que buscam impor suas convivências e soluções de vantagem. É isto que está em jogo, e não simplesmente futricas de caserna. É guerra brava, envolvendo o país em suas estruturas fundamentais, onde o ventilar do aspecto institucional, além de se prestar a dilações e mascaramentos, e até mesmo a instrumento do jogo cênico para os olhos do grande público, que esconde a batalha interna e oculta, para a qual estão centradas, para valer, todas as baterias, pode ser também, quando considerado isolado e prioritariamente, utensílio para encaminhar soluções econômicas subjacentes que antagonizam os interesses das massas populares e ferem negativamente o encaminhamento adequado da questão nacional. De modo que as forças dominantes, em todas as suas componentes, disputam o jogo da “sucessão presidencial” preocupadas e ocupadas com o conjunto dos problemas nacionais sabendo, no entanto, distinguir com precisão as questões de base das complementares, empenhando-se, a nível decisivo quanto às equações relativas à política econômica; quanto ao mais é sempre possível passar por cima. No que sequem, aliás, a tática de todos os governos da ditadura de 64 para cá. Ventilar as questões institucionais para um eventual “aperfeiçoamento” a ser decidido em horas indeterminadas, pelos arquipoderosos senhores, enquanto as questões econômicas são mantidas fora de discussão, como um tabu, foi uma tática que os governos ditatoriais sempre utilizaram, e que o governo Geisel levou à perfeição. E diante dela a oposição acabou por perder a visão do todo, sossobrando ao diapasão institucional.

 Tudo isso se vê plenamente confirmado pelo pronunciamento, a 1° de dezembro, da presidência da República. Numa reafirmação de seus propósitos institucionalizadores, anunciados e repetidos desde 73, de seus objetivos de “aperfeiçoamentos democrático” Geisel expressa agora que as “leis de exceção” podem ser substituídas por dispositivos constitucionais que garantam os “princípios e ideias de 64”. Em outros termos: a ditadura julga possível e conveniente consolidar suas diretrizes globais sob forma do estado de Direto. No que realizam velho e acalentado projeto e cujo enunciado já se encontra na Geopolítica de Golbery do Couto e Silva, quando afirma que não é possível deter o poder para todo o sempre, sob a forma de excepcionalidade. Institucionalizar os projetos de 64 foi, aliás, propósito tentado desde os tempos castelistas e não é casual que Geisel, Golbery, Cordeiro de Farias etc., tenham pertencido a esta “equipe”.

 Evidentemente, Estado de Direito e Democracia não se identificam ou confundem. Só os ingênuos e os superficiais teimam em deixar para amanhã o exame de suas radicais diferenças, quando mesmo, o que não é frequente, se dispõe a algum exame.

Há que notar ainda que a fala presidencial pelo simples fato de ter-se dado, nos termos em que foi pronunciada, induz à compreensão que a equação da nova fase de acumulação já se encontra esboçada. Que o “acento” entre as diferentes forças econômicas que dominam o quadro brasileiro estão perto de um ponto de convergência. Sintoma altamente ponderável são os indícios referentes ao programa Figueiredo. O ungido do Palácio do Planalto, que terá por “obrigação” a continuidade do processo de “aperfeiçoamento democrático”, além de incorporar as “soluções” do capital estrangeiro para a indústria de bens de produção, traz a novidade de se propor à modernização do campo, através também dos monopólios internacionais. O país converter-se-ia no “celeiro do mundo”, exportador de alimentos, que no plano interno, a nível de uma dieta mínima, seriam subsidiados. É no que consistirá a novidade no plano distributivista. Eis o novo perfil da ditadura, via institucionalização.

 É a plena continuidade do projeto global da ditadura. Verdadeiramente um programa, hostil às massas populares e aos interesses nacionais, mas um programa, que além do mais, obviamente não se ilude ou esgota com sua tática institucionalizadora.

Tática, todavia, que funcionou para a oposição, a ponto desta, na sua alienação, chegar a um estágio em que manifesta perplexidade “porque a ditadura ainda não caiu”, mas é incapaz de formular e propor um programa mínimo para o conjunto de questões populares e nacionais da nação brasileira.

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Em face a tudo isto, o que pode ser, e como pode-se dar o soerguimento da oposição, submersa no seu exclusivismo institucionalista, ardil do situacionismo do qual ela não soube identificar ou enfrentar?

Em termos diretos, as questões que se põem, com máxima urgência, são a dos programas e a da frente.

Obviamente não se tratam de problemas novos, as experiências de década e meia de ditadura devem enriquecer as formulações e deixar nítidas (mais nítidas) os passos táticos que até 1964 não estavam plenamente incorporados à consciência das forças mais consequentes da oposição brasileira, evidenciando-se tais debilidades principalmente no campo prático.

Não é possível esgotar, neste trabalho, que já se mostra demasiado extenso, tais questões, do mesmo modo que não pretendemos esgotar todas as questões anteriormente tratadas. Na mesma linha destas, preocupa-nos oferecer um esquema para o debate dos oposicionistas, mais avançados e consequentes, daqueles que efetivamente se põem na perspectiva do trabalho, especialmente do trabalhador brasileiro no quadro atual da história nacional.

Os impasses da infraestrutura brasileira no momento atual, da perspectiva do trabalho, só podem ser enfrentados a nível programático por uma dupla resolução básica:

1. Derrotar toda e qualquer versão ou modalidade de uma política econômica que tenha por fundamento o superaviltamento e a superdepreciação do valor da forca do trabalho. Por outras palavras, opor-se firmemente às políticas do achatamento salarial. Uma política deste tipo, no processo, correta, lúcida e firmemente conduzida, sem as precipitações dos imediatismos, conduzirá à mobilização das vastas camadas trabalhadoras, das cidades e dos campos, à sua unificação pelas suas mais prementes e legítimas aspirações; elevará seu nível de organização, seu grau de consciência sindical e política, e as fará emergir como uma forca política e social de peso específico e de presença marcante no cenário econômico e político do país. No prazo possível, uma forca dessa ordem tornará impossível políticas econômicas do tipo que subjaz ao milagre de 1968/1973, e que a ditadura pretende, sem margem para discussões, levar adiante. Geisel vem-se cansando em repetir que patrocina o “aperfeiçoamento do regime político”, mas também que o modelo econômico é imutável. Seu discurso de 1° de dezembro é mais do que transparente sob este aspecto. É óbvio que impedir, por completo, a possibilidade de tal política não se dará de repente e por milagre. Mas já no encaminhamento desse objetivo as classes trabalhadoras irão obtendo certas vantagens e criando progressivamente dificuldades concentradas para a sua vigência.

Este item programático, portanto, compreende tarefas a curto, médio e longo prazos.

2. A segunda resolução básica de um programa oposicionista da perspectiva do trabalho conduz à defesa e a luta por uma correta participação do estado nas atividades econômicas do país.

No seu sentido geral trata-se de um aspecto da luta contra a desnacionalização da economia brasileira, mas também conduz, no processo, a fazer com que tal intervenção venha a ganhar progressivamente funções de ordem social.

De imediato, estando em jogo o desenvolvimento da indústria de base, a luta deve encaminhar-se no sentido de que o estado assuma, neste campo, papel decisivo, que a iniciativa privada nacional pode completar, mas onde o capital estrangeiro não possa atuar. Neste campo, o imperialismo só pode acarretar deformações mais graves e profundas maiores ainda das que introduziu no nosso processo de industrialização, levando-nos à constituição, basicamente, de uma indústria de “ponta”. Ao pequeno e meio capital ficam assim reservadas a produção para o vasto mercado interno, particularmente a dos chamados bens de consumo operários.

À política de flanquear o campo ao imperialismo deve ser oposta uma política que reponha na ordem do dia a questão agrária, superando as generalidades do passado e fazendo das reivindicações trabalhistas sua arma e objetivo estratégico central. O que não implica deixar de lado outras válidas e necessárias proposições.

Com isto, é óbvio, não desenhamos o programa completo para a oposição, mas simplesmente assinalamos seus pontos fundamentais, o eixo central sobre o qual há de compor a sua perspectiva programática e orientar a sua ação na conquista de uma existência democrática para o país.

Não está aqui esquecida, nem subestimada a questão institucional, que muitos erroneamente vem chamando de questão democrática. A questão democrática, da perspectiva do trabalho, e mesmo do prisma de certo liberalismo menos acanhado e superado, não é puramente entendida como a questão relativa às formas de governo, ou melhor, aos modos pelos quais as classes dominantes exercem sua hegemonia. Destes pontos de vista a questão democrática não se esgota nos aparatos institucionais do poder, não é pensada simplesmente como a democracia política, mas implica necessariamente a democracia econômica, a democracia social, a democracia cultural etc., isto é, implica todas as especificidades que compõem a totalidade da vida em sociedade. Esta é verdadeiramente a questão democrática. Dela estivemos, pois, falando ao longo de todo este trabalho.

E na medida em que ele é a base de nossas reflexões, a questão institucional ganha sua efetiva dimensão. Do que se depreende que a luta por instituições políticas democráticas faz parte da luta mais ampla e concreta que é a luta pela democracia no seu todo concreto.

O que vigorosamente tem de ser evitado, particularmente da perspectiva do trabalho é restringir a luta pela democracia à luta pelas instituições políticas democráticas. Por uma razão de fundo e por tática. Porque a democracia é, em especial para os trabalhadores, muito mais que instituições políticas, e porque, particularmente sob formas ditatoriais como as que vigoram no Brasil, e consideradas as condições e as características das nossas massas populares, a luta somente por instituições não é suficientemente sensibilizadora e mobilizante. Não fere suas necessidades mais pungentes e imediatas. O que não é simplesmente uma debilidade porque obriga, de imediato, a considerar e agir sobre as estruturas fundamentais da sociedade nacional.

Tudo isto nos põe, agora, face a face com a questão vital da frente.

Grave e tradicional problema das forças do progresso em nosso país, ela nunca foi adequadamente sustentada no plano teórico, e pior ainda conduzida no plano prático.

É problema para dissertar por todo um grosso volume. Aqui tão-somente aludiremos a alguns aspectos principais, particularmente voltados para as nossas necessidades mais urgentes.

Dito sumariamente: entre nós, a frente tem sido concebida como uma prioridade ou um objetivo em si, e não como uma imposição política decorrentemente tem sido uma concepção, onde desapareceram as contradições. O que ao limite é a liquidação da própria frente, pois uma verdadeira frente ampla é a articulação de forças sociais distintas e contraditórias, que assim se mantém, mas que convergem um programa dado, num histórico determinado.

A inclinação entre nós tem sido a de eliminar as contradições internas da frente, sob a alegação das necessidades de uma unidade taticista. o que é um novo erro. O que não pode deixar de conduzir a posições reboquistas, diluentes dos conteúdos, cujo dano maior é levar, ao contrário do pretendido, ao enfraquecimento da frente, verdadeiramente à sua diluição. Face a que, em certos momentos, somos levados a soluções aventureiras, o que, é óbvio, é ainda outro erro que desestrutura as ações unitárias concretas de uma frente efetivamente concebida e praticada.

Na medida em que se pratica uma concepção abstrata de frente, a despreocupação programática se impõe, e fica-se reduzido a reivindicações formalistas, o que no limite é não mais pensar a frente como conjugação de forças sociais, mas de simples indivíduos. A frente não mais articula forças sociais, mas soma indivíduos: inadvertidamente passa-se da ideia de frente para o consenso liberal. E daí não há mais o que impeça que a visão taticista da frente, como simples política da “esperteza”, do “envolvimento” e “manipulação” do aliado. Tudo em nome, é claro, de uma “astúcia” (vulgar, é evidente) que toma a frente como aparência, e os encaminhamentos táticos como momentos autônomos da ação “política”. Tudo isso traduz, é nítido, uma concepção de frente exclusivamente pela cúpula, onde “iludir” o aliado é toda a “glória” marota de qualquer individualidade permeada pela ideologia pequena burguesa, particularmente de nossos segmentos mais intelectualizados.

Por razões facilmente determináveis a frente emedebista acabou por se configurar numa federação dessa ordem. Que quanto mais cresce, mais vazia se mostra; que quanto parece avançar, menos sabe onde se dirige. Uma frente, da perspectiva do trabalho, e que a história provou e aprovou em várias e distintas circunstâncias, é algo completamente diferente. Dessa perspectiva, a frente é concretamente uma articulação efetiva de concretos componentes sociais, articulada a partir das massas, das quais a cúpula dirigente é articuladora, mobilizadora, mas sob cujas perspectivas históricas se põe.

Uma frente pelas massas, pode levar mais tempo para se estruturar, impõe inúmeras dificuldades, mas é a única que confere solidez e dá consecução, ou pode dar consecução a um programa, que aliás é por ela exigido. Tudo porque escapa das simples e pueris “astúcias”, lançando raízes no solo denso das necessidades populares.

Dado o atual quadro de nossa realidade, uma frente dessa ordem, a única real e consequente, tem por eixo a aliança entre os trabalhadores urbanos e rurais, na luta por suas reivindicações trabalhistas e sociais que ferem na raiz a política econômica da ditadura. vinca-se a este eixo fundamental a burguesia das pequenas e médias empresas que o capital monopolista (nacional e estrangeiro) levam ao estrangulamento. A ela interessa o desenvolvimento do mercado interno, particularmente de bens operários. juntam-se ainda à frente as camadas médias, particularmente as intelectualizadas, motivadas em especial pelas reivindicações próprias à democracia cultural, e em geral pelas agruras matérias que o “desaquecimento” tende a lhes blindar. este conjunto de categorias sociais brasileiras perfazem a maioridade de sua população. Uma análise mais detalhada pode determinar ainda outras frações, numericamente menos importantes, mas não por isso desprezíveis. O que há necessariamente a evitar é confundir a “mais ampla frente possível” com toda a população brasileira, pois é cair na diluição abstrata de eliminar pela palavra os inimigos da democracia. Democracia que, assim posta, implica ser conquistada e consolidada a partir das bases nacionais, da base econômica e da base de massas. Única via possível para as conquistas democráticas no Brasil, pois só a elas interessa a concreta democracia em nosso país, só elas tem necessidade dela, como nossa própria formação histórica demonstra.


Notas de rodapé:

(1) F.Engels, Introdução à As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, de Karl Marx. (retornar ao texto)

Inclusão 04/05/2018