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Primeira Edição: Artigo publicado no livro: FREYRE, Gilberto et al. (orgs.). Estudos Afro-Brasileiros: trabalhos apresentados ao 1º Congresso Afro-Brasileiro. Recife, 1934, 1º volume, Ariel – Editora LTDA, 1935, pp. 237-241. Nota dos Editores: o texto foi adequado às normas gramaticais atuais.
Fonte: Marxismo 21 - https://marxismo21.org/racismo-etnia-e-luta-de-classes-no-debate-marxista/
Transcrição: Lucas Pereira
HTML: Fernando Araújo.
A abolição da escravatura veio resolver o problema do branco, não o do negro. Era o branco o senhor, o capitalista, – e o desenvolvimento econômico do país tornara prejudicial ao desenvolvimento das forças produtivas a existência do escravo. Sabe-se que, em 1988, a porcentagem de escravos sobre o total da população brasileira era apenas igual a 5%.
O processo histórico de transformação da sociedade semifeudal do Brasil em sociedade capitalista, que se traduziu, primeiro na demagogia abolicionista, depois na consciência, por parte dos próprios senhores de escravos, da necessidade de trabalho assalariado, que produz a mais-valia absoluta, e onde a exploração do trabalhador pode ser levada ao extremo, – veio mudar somente a forma de exploração e de domínio. Desligado da faço de café ou do engenho de açúcar, onde, apesar dos pesares, sempre achava uma lasca de jabá com farinha e uma cama de varas para dormir, o negro se viu forçado a sofrer as flutuações do mercado, onde ia à procura de comprador para a única mercadoria de que podia dispor, - a sua força de trabalho. Numa palavra, o negro esse proletarizou. O desenvolvimento incipiente do capitalismo no Brasil, no século passado, aproveitou à grande essa força de trabalho, explorando-a até o máximo. O negro foi forçado a descer, ainda mais do que com a escravidão, sob essa outra escravidão que era o capitalismo.
Sobre os ombros do trabalhador negro se construíra toda uma superestrutura política, expressão direta da vontade da classe dominante. Esta superestrutura, agindo sobre o escravo, produziu o chamado choque das culturas, que, devido a circunstâncias especiais, resultou, não na anulação sumária das culturas inferiores do negro e do índio, mas no fenômeno da interpenetração das culturas, – a reação da base do edifício social. Incorporado, pelas “águas lustrais” do batismo cristão, à religião oficial dos brancos, o negro adaptou o seu animismo fetichista às novas condições de existência, identificando Exu, Ogum, Oxalá, Omolú, todos os seus santos, com os santos do agiológio católico. Obrigado a falar a língua portuguesa, o negro, que possuía uma língua simples, onomatopaica, ainda em formação, reproduzindo apenas o trabalho produtivo realizado em comum nas aldeias natais, estropeou a língua oficial, criou termos novos, corrompeu outros, influiu mesma na própria sintaxe lusitana. Para a compreensão desses fenômenos, não se deve esquecer que o negro foi, sob a escravidão, o único elemento realmente ativo do Brasil...
A passagem do semifeudalismo à etapa econômica superior do capitalismo foi, para o negro, um presente de gregos. Livre no texto da constituição burguesa de 1891, e reconhecido abstratamente como igual a todos perante a Lei (a Lei com letra maiúscula, que representava unicamente os inconfessáveis interesses político-econômicos da classe dominante, e em cuja elaboração não tomara parte), o negro só teve – como, aliás, os proletários índios e brancos –, o direito, reconhecido havia muito por Fourier, de morrer de fome, quando a anarquia da produção capitalista se fizesse sentir nas crises periódicas de superprodução. Ainda aqui, sob o capitalismo, o negro ficou sendo o burro de carga da produção nacional, representando a maioria esmagadora da população trabalhadora no Brasil. Entregue a si mesmo, dono de uma “liberdade” fictícia, ganhando mal, vestindo mal, alimentando-se mal, bancando o joguete dos acontecimentos econômicos, embrutecendo-se num trabalho de dez horas diárias em condições anti-higiênicas, sofrendo a opressão racial dos homens brancos (dos senhores do capital) e o desprezo dos próprios proletários brancos, que a burguesia, pondo em prática o velho conselho de “dividir para reinar”, insuflava, – o negro viveu ao deus-dará. E caiu no álcool, na malandragem, na criminalidade, no fetichismo mais animal. Nem à escola – por onde se poderia principiar a adaptação do negro ao meio social do Brasil –, podia mandar os filhos, não só por faltarem escolas, como também porque os serviços dos filhos muito cedo eram necessários para a economia familiar.
Essa situação, se mudou no curso destes últimos sessenta anos, mudou para pior. A experiência da democracia burguesia provou a sua inutilidade na resolução dos problemas do país. O negro – e, em geral, o proletário – teve a sua situação agravada pela crescente desorganização do capitalismo no Brasil e no mundo e pela luta dos imperialismos estrangeiros pela dominação dos nossos mercados internos. No Estado da Bahia, por exemplo, onde a população negra é talvez maior do que nos outros Estados, a criminalidade negra tem aumentado de ano para ano, provando a falta de condições sociais favoráveis, e as autoridades policiais respeitam as disposições constitucionais que se referem à religião, fechando candomblés, detendo pacíficos pais de santo, aprendendo objetos do culto africano e taxando exorbitantemente o funcionamento das roças e dos terreiros onde esse culto se realiza. Se muita coisa do negro entrou na nossa formação social, na nossa vida, nos nossos costumes, foi, quase sempre, contra a vontade do senhor branco, apesar do senhor branco. O negro tem sido, e continua sendo, um ser à parte, quase um bicho que as Prefeituras consentem apenas passear pelas ruas e trabalhar para o branco. E nada mais. Deste modo, o negro não pode (e nem poderá) aumentar de muito o seu nível intelectual e moral, donde a permanência do animismo, da criminalidade, etc. Circunstâncias exteriores, principalmente econômicas, concorreram também, como disse, para esse resultado. As fileiras do exército industrial de reserva têm engrossado extraordinariamente...
A situação deplorável em que se acham os negros no Brasil não depõe, absolutamente, contra a raça negra. Sabemos hoje que a raça não tem a importância que se lhe quer dar no desenvolvimento social. Nem há raças superiores, nem inferiores. As raças se formaram nos primeiros estágios da Civilização, sob a influência do meio natural, e a sua marcha ascensional se faz, como quer Morgan, por caminhos uniformes, devido à similaridade da inteligência humana e dos obstáculos que têm de vencer para chegar à dominação da natureza. O que há, portanto, não é inferioridade ou superioridade racial fixa, o que equivaleria à negação do movimento permanente da matéria, mas desigualdade de desenvolvimento econômico, condicionada em primeiro lugar pelo meio geográfico e em segundo lugar pelas possibilidades técnicas da raça no momento histórico, condicionando, por sua vez, a libertação gradual, mas progressiva também, do homem em face da natureza. A falta de condições que o ajudassem eficazmente, humanamente, fez com que o processo de absorção, por parte dos negros, da cultura superior do branco, sofresse um ralentissement,(1) que redundou ainda contra o negro. Nada fizemos, de verdadeiramente útil, pela incorporação do negro à comunidade brasileira. Agora mesmo, quando a Saúde Pública aborrece as populações das cidades com milhares de imposições de todas as espécies, as populações rurais, onde o negro, ou os tipos vizinhos dele, os tipos negróides, predominam, se vêm abandonadas, na mais desesperadora miséria, sofrendo o pauperismo e o analfabetismo, entregues à malária, à verminose, ao amarelão, à malária, à varíola, e, mesmo, nas cidades, os bairros proletários, onde o negro predomina também, são amontoados de casas velhas, insalubres, desconhecidas dos mata-mosquitos, onde o negro sofre e morre sem cuidados médicos, transmitindo aos filhos e a todos os moradores da casa a sua moléstia, um pouco aqui, outro acolá, aumentando assim o âmbito da ação do mal, tanto nele mesmo quanto nos outros, numa reciprocidade fatal.
É a comunidade na miséria, no mais largo sentido da expressão. Sem dúvida, a culpa não cabe somente ao branco ou somente ao negro, mas a toda a sociedade burguesa, que, em benefício de um punhado de pulas que não trabalham, que não têm a existência justificada por nenhum trabalho honesto e produtivo, consagra o tabu da propriedade privada para que esse mesmo punhado de pulhas possa dormir sobre a miséria das classes inferiores da sociedade. O pior, porém, é que essa sociedade burguesa, donde resultam todos esses males para a população negra, está representada, quase que exclusivamente, pelos brancos. O que sempre é um incentivo à luta de raças...
Entretanto, a situação não é insolúvel.
Os negros conscientes, que se adaptaram, bem ou mal, à superestrutura política da sociedade brasileira, sabem perfeitamente que os seus interesses imediatos e futuros não são em nada diversos dos do proletariado em geral e desejam, além da instrução, da alimentação suficiente e do melhoramento das condições de trabalho, o reconhecimento dos seus direitos – como de todas as raças oprimidas do país –, a colaboração, no mesmo pé de igualdade, com o branco na obra de reconstrução econômico-política do Brasil.
Os negros começam a tomar papel ativo na conquista desse objetivo. Sabe-se que o negro tem fornecido um grande contingente para as fileiras do Partido Comunista do Brasil.
Com efeito, esta tarefa, na realidade tão simples, não cabe nos quadros da sociedade burguesa, atualmente dominante no Brasil. Somente a sociedade comunista, que reconhece às raças oprimidas até mesmo o direito de organizarem em Estado independente, conseguirá realizá-la, abolindo a propriedade privada e acabando, de uma vez por todas, com a exploração do homem pelo homem.
Notas de rodapé:
(1) Nota dos Editores: A palavra de origem francesa ralentissement significa abrandamento, moderação da marcha, desaceleração. (retornar ao texto)