Economia Política
(Curso Popular)

Terceira Parte - A Sociedade Organizada na Forma Socialista

A. Bogdanoff


Capítulo Único - Sociedade Socialista


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A época do capitalismo ainda não terminou; mas a instabilidade de suas relações já se pôs suficientemente de manifesto. Igualmente se manifestaram com suficiente clareza as contradições fundamentais que minam os alicerces deste sistema e as forças de desenvolvimento que estão criando a base de um outro, novo. As principais características da direção em que se movimentam as forças sociais já foram assinaladas. Por conseguinte, é possível tirar conclusões quanto à forma que o novo sistema adotará e quanto às diferenças que o distinguirão do atual.

Poderia pensar-se que a ciência não tem o direito de falar do que ainda não aconteceu, nem do que não se sabe com exatidão, por ensinamentos da experiência; mas semelhante raciocínio é errôneo; a ciência serve precisamente para predizer as coisas. Claro está que do que ainda não foi experimentado não se pode formar uma ideia exata; se, porém, conhecemos, em linhas gerais, o que existe e a direção em que está mudando, a ciência poderá inferir a quê esta mudança há de conduzir. A ciência tem de tirar estas conclusões para que os homens possam conciliar seus atos com as circunstâncias, de modo que, em lugar de desperdiçar seus esforços trabalhando contra o futuro e de atrasar o desenvolvimento de novas forças, possam trabalhar conscientemente por acelerar este desenvolvimento, concorrendo para ele.

As conclusões da ciência social, no que diz respeito à sociedade futura, não podem ser rigorosamente exatas, porque a grande complexidade dos fenômenos sociais não permite, em nosso tempo, observá-los minuciosamente em todos seus detalhes, mas só em suas principais características, e, por este motivo, o quadro do novo sistema social só pode ser traçado, igualmente, em linhas gerais. Não obstante, estas considerações revestem a máxima importância para os homens contemporâneos.

A história do mundo antigo demonstra que a sociedade humana pode, às vezes, retroceder, degenerar e, até, perecer. A história do homem primitivo e a de várias sociedades orientais isoladas demonstra a possibilidade de um largo período de paralisação. Por este motivo, do ponto de vista rigorosamente científico, a transição de novas formas não deve aceitar-se senão condicionalmente. Somente aparecerão novas e mais elevadas formas no caso de que a sociedade continue progredindo em seu desenvolvimento, como tem progredido até agora. Entretanto, para que se produza um retrocesso ou um espasmo, têm de existir causas suficientes, e estas causas não podem observar-se na vida da sociedade moderna. Com as inumeráveis contradições a ela inerentes e com o impetuoso processo de vida que estas criam, não pode haver estacionamento. Estas condições inerentes só poderiam causar um retrocesso caso faltassem as formas e os elementos suficientes de desenvolvimento. Mas estes elementos existem e estas mesmas contradições os desenvolvem e os multiplicam. A força de produção do homem aumenta sem cessar, e mesmo uma catástrofe social tão considerável como uma guerra mundial, só transitoriamente a debilita. Por outro lado, uma numerosíssima classe da sociedade, que aumenta e se organiza constantemente, se esforça dor levar estas novas formas à prática. Por esta razão não há motivos sérios para esperar um movimento de retrocesso. Antes ao contrário, há muitíssimos mais motivos para crer que a sociedade seguirá seu caminho ascendente e criará um novo sistema que destruirá e abolirá as contradições do capitalismo.

I - Relação da sociedade para com a natureza

O desenvolvimento da técnica do maquinismo adquiriu no período capitalista tal caráter de continuidade e atividade que é muito possível determinar suas tendências, e, por conseguinte, o resultado de seu ulterior desenvolvimento.

Pelo que respeita à força motriz, passar-se-á do vapor para a eletricidade, a mais flexível e mais plástica de todas as forças da natureza. Pelo que respeita ao mecanismo transmissor, observa-se uma tendência para o tipo automático de máquina e depois para um tipo muito superior, o da máquina de regulador automático. No capitalismo, estas últimas máquinas apenas poderão encontrar aplicação para a produção pacífica, porque são desvantajosas do ponto de vista dos lucros, eis que são muito complicadas e de elevado preço: a quantidade de trabalho que economizam, em comparação com as máquinas automáticas do primeiro tipo, não é muito grande, porque também estas economizam uma quantidade considerável de trabalho humano. De um lado, os operários necessários para manejá-las têm de possuir uma inteligência desenvolvida, pelo que sua remuneração teria de ser elevadíssima e sua oposição ao capital muitíssimo maior. Na guerra não se trata dos lucros, e, por isso, não existem esses obstáculos para sua aplicação a mecanismos mortíferos. No socialismo, a questão dos lucros desaparece também na produção, pelo que se emprestará primordial importância à maquinaria de autocontrole, a qual permitirá uma rapidez e uma exatidão de trabalho incomparavelmente maiores que as conseguidas pelos órgãos humanos, que trabalham mais de vagar e com menos precisão e que, ademais, estão sujeitos à fadiga e ao erro. Por outro lado, o número de máquinas e a soma total de energia mecânica aumentarão em tão grandes proporções que a energia física dos homens será, em comparação, infinitamente pequena. As forças da natureza realizarão o trabalho prático dos homens; serão como obedientes escravos, cuja força aumentará até o infinito.

A técnica das comunicações entre os homens é de especial importância. O rápido progresso observado, neste sentido, nos fins da época capitalista, tem sido encaminhado evidentemente para a supressão de todos os obstáculos que a natureza e o espaço colocam no caminho da organização e da união de toda a humanidade. O aperfeiçoamento da radiotelegrafia e da radiotelefonia chegará a permitir que os homens se comuniquem entre si em quaisquer circunstâncias, de qualquer distância e através de todas as barreiras naturais. O aumento na rapidez de todas as formas do transporte aproximam, atualmente, os homens e os produtos de seu trabalho em proporções jamais sonhadas no século passado. E a navegação aérea por meio de dirigíveis emancipará por completo as comunicações humanas tanto das condições geográficas, como da estrutura e configuração da superfície da terra.

A primeira característica fundamental do sistema coletivo é o poder real da sociedade sobre a natureza, desenvolvendo-se, sem limites, sobre a base da técnica organizada cientificamente.

II - As relações sociais de produção

Como vimos, a técnica mecânica, no período do capitalismo, altera a forma da cooperação de duas maneiras. Em primeiro lugar, a divisão técnica do trabalho perde seu caráter especializado, que estreita e limita a psicologia dos operários, e fica reduzida à cooperação simples, na qual os operários executam um trabalho similar, e a especialização é transferida do operário para a máquina. Em segundo lugar, a estrutura desta cooperação se expande em proporções enormes e surgem empresas que abrangem dezenas de milhões de operários em uma só organização.

É licito supor que ambas tendências se acentuarão muito mais sob o novo sistema que sob o mecanismo capitalista. As diferenças na especialização das diferentes indústrias ficarão reduzidas a tão insignificantes proporções que a desunião psicológica criada pela diversidade de operações acabará por desaparecer: os laços de compreensão mútua e a comunidade de interesses se expandirão sem entraves sobre a base da comunidade de interesses vitais.

Ao mesmo tempo se desenvolverá, paralelamente, a unidade do trabalho organizado, agrupando centenas de milhares e até milhões de pessoas em torno de uma tarefa comum.

A prossecução do desenvolvimento das duas tendências anteriores dará origem a duas novas características do sistema post-capitalista. De um lado, a forma mais pertinaz de especialização, isto é, a divisão entre as funções organizadoras e executoras, acabará por transformar-se e perder sua significação, e, por outro lado. todos os núcleos de produção adquirirão uma mobilidade e fluidez cada vez maiores.

Embora na época do mecanismo capitalista o trabalho executor nas máquinas adquira um caráter algo semelhante ao do trabalho organizador, subsiste entre ambos, todavia, uma diferença, e por este motivo a individualização das funções do executor e do organizador conservam sua estabilidade. Na produção mecânica, o operário mais perito é muito diferente de seu diretor e não pode substituí-lo. Mas o desenvolvimento crescente da complexidade e precisão da maquinaria, junto com o desenvolvimento da inteligência geral dos operários há de acabar por suprimir esta diferença. Com a transição para a maquinaria de controle automático, o trabalho de um simples operário se aproxima cada vez mais ao do engenheiro, e consiste em vigiar o funcionamento conveniente das diversas peças da máquina. Para isso não se necessitará somente de atenção comum, mas um conhecimento exato do mecanismo, conhecimento só possuído, hoje em dia, pelo intelectuais organizadores. Por conseguinte, a diferença entre o executor e o diretor ficará reduzida a uma diferença puramente quantitativa na preparação cientifica. O operário executará, então, as instruções de um camarada melhor informado e mais perito, em lugar de submeter-se cegamente a uma autoridade alicerçada em um conhecimento inaccessível para ele. Isto permitirá a possibilidade de substituir um organizador por qualquer operário, e vice-versa. A desigualdade no trabalho destes dois elementos desaparecerá e ambos se confundirão em um só.

Com a abolição das últimas sobrevivências da especialização intelectual desaparecerá também a necessidade, e a ideia, de ligar determinadas pessoas a determinados trabalhos. Por outro lado, a nova forma do trabalho exigirá flexibilidade mental e diversidade de experiência, para o que será necessário que o operário troque de vez em quando de trabalho e vá de uma máquina a outra, da função de organizador à de executor, e vice-versa. E o progresso da técnica, mais rápido que em nossos dias, com os contínuos aperfeiçoamentos da maquinaria, emprestará uma mobilidade muitíssimo maior aos núcleos de forças humanas e aos sistemas de trabalho isoladas ou empresas, como as chamamos hoje.

Tudo isto será possível e realizável pelo fato de que a produção será organizada consciente e sistematicamente pela sociedade como um todo. Sobre a base da experiência científica e da solidariedade do trabalho criar-se-á uma organização universal deste. A anarquia, que, na época do capitalismo, desune as empresas individuais, pela concorrência implacável, e todas as classes por uma luta feroz, ficará suprimida. A ciência indica o caminho que deve seguir-se para semelhante organização e assinala os meios de levá-la a cabo, e a força incorporada dos operários com consciência de classe realiza-la-á.

Esta organização deverá ser de início de caráter universal para que não tenha de depender, em sua produção e em seu consumo, da troca com outros países que não façam parte dela. A experiência da guerra mundial e das revoluções que a acompanharam demonstra que tal dependência se converteria imediatamente em um meio de destruição do novo sistema.

Esta organização não poderá ser senão de tipo centralizado, se bem que não no sentido do antigo centralismo autoritário, mas no de um centralismo científico. Seu Centro, será um escritório estatístico gigantesco, encarregado de calcular exatamente a distribuição da força de trabalho e dos instrumentos de produção.

A força motriz da organização será, a princípio, isto é, enquanto a totalidade da sociedade não houver ainda assimilado o espírito do trabalho coletivo, uma disciplina fraternal, que compreenderá um elemento coercitivo qualquer, do qual a sociedade se irá livrando pouco a pouco.

Neste sistema de produção, cada trabalhador estará efetiva mente em situação de igualdade com o resto da sociedade, como um elemento consciente de um todo racional. Cada qual terá todas as possibilidades para desenvolver completa e universalmente sua força de trabalho, bem como de aplicar esta em proveito de todos.

Assim, pois, os traços característicos da sociedade socialista são a organização homogênea de todo o sistema de produção, com a maior mobilidade possível de seus elementos e núcleos, e uma igualdade mental eminentemente evoluída de todos os trabalhadores como produtores conscientes e sob todos os pontos de vista desenvolvidos.

III - A distribuição

A distribuição» constitui geralmente uma parte essencial da produção, e sua organização depende por completo dela. A organização sistemática da produção pressupõe uma organização similar da distribuição. O supremo organizador em ambas esferas será a sociedade como um todo. A sociedade distribuirá o trabalho e o produto deste trabalho. Isto é, precisamente o contrário da distribuição anárquica e desorganizada que se manifesta na troca e na propriedade privada, sistemas baseados na concorrência e na luta violenta de interesses. A organização social da produção e da distribuição pressupõe também a propriedade social dos meios de produção e dos artigos de consumo criados pelo trabalho social até que a sociedade os entregue ao indivíduo para seu uso pessoal. A propriedade individual tem sua origem na esfera do consumo, que é essencialmente individual. Logo, isto nada tem a ver com a propriedade privada capitalista, que é primordialmente a propriedade privada dos meios de produção, mas não representa o direito do operário aos meios necessários de subsistência.

O princípio da distribuição nasce diretamente da base da cooperação. Como o sistema de produção se organiza sobre a base de assegurar a cada membro da sociedade a possibilidade do desenvolvimento completo e universal de sua força de trabalho e a de aplicar esta em proveito de todos, o sistema de distribuição deve dar-lhe os artigos do consumo necessários para o desenvolvimento e para a aplicação da força de trabalho. No que respeita ao método mediante o qual pode conseguir-se isto, cabe prever duas fases. A princípio, quando a produção não haja penetrado ainda o espírito de cada um dos membros da sociedade, de sorte que ainda devem ser mantidos os elementos de coerção, a distribuição servirá como meio de disciplina: cada qual receberá uma quantidade de produtos proporcional à quantidade de trabalho que proporcionou à sociedade. Mais adiante, quando o incremento da produção e o desenvolvimento da cooperação no trabalho torne desnecessários esta meticulosa economia e estes métodos de coerção, ficará estabelecida a liberdade completa de consumo para todos os trabalhadores. Dando estes à sociedade tudo quanto sua força e sua capacidade lhes permita, a sociedade dar-lhes-á tudo de que necessitarem.

A complexidade no novo método de organização da distribuição terá de ser evidentemente enorme e exigirá um aparelho estatístico e informativo de proporções jamais atingidas, nem mesmo de longe, na presente época. Na esfera bancária e do crédito, por exemplo, há agências e comissões de peritos para estudar o estado do ' mercado, a organização da bolsa, etc. No movimento obreiro há sociedades de auxílio mutuo e cooperativas, e o Estado tem organizados sistemas de seguros, subsídios, etc. Tudo isso deverá ser reformado radicalmente para poder ser utilizado no futuro sistema de distribuição, porque hoje em dia se ajusta inteiramente ao sistema anárquico do capitalismo e está, portanto, subordinado a suas reformas. Estes elementos podem considerar-se como protótipos rudimentares e dispersos do futuro sistema uniforme e harmônico de distribuição.

IV - A ideologia social

A primeira característica da psicologia social da nova sociedade é seu espírito social, seu espírito de coletivismo, o qual é determinado pela estrutura fundamental da sociedade. A unidade de trabalho da grande família humana inerente ao desenvolvimento de homens e mulheres criará um grau de compreensão e simpatia reciprocas, das quais a solidariedade atual dos elementos conscientes do proletariado, verdadeiros representantes da sociedade futura, não é senão um fraco prenuncio. O homem nascido na época da concorrência feroz, da desapiedada rivalidade econômica entre grupos e classes, não pode imaginar o desenvolvimento que podem alcançar os vínculos fraternais entre os homens sob as novas relações de trabalho.

O domínio real da sociedade sobre a Natureza externa e sobre as forças sociais é causa de outra característica da ideologia do mundo novo, a saber, a ausência completa de todo o fetichismo, a pureza e clareza do conhecimento e a emancipação da mente de todos os frutos do misticismo e da metafísica. Os últimos vestígios do fetichismo natural acabarão por desaparecer e com eles consumar-se-á o período da dominação da Natureza externa sobre o homem e do fetichismo social, reflexo da dominação das forças elementares da sociedade. O poderio do mercado e o da concorrência serão desarraigados e destruídos. Organizando consciente e sistematicamente sua luta contra os elementos da Natureza, o homem social não terá necessidade de ídolos, que mais não são do que a personificação do sentimento de impotência ante as forças insuperáveis do meio ambiente. O desconhecido deixará de o ser, porque o processo de aquisição do conhecimento (a organização sistemática sobre a base do trabalho organizado) será acompanhado de uma consciência de energia, de um sentimento de triunfo, nascidos da convicção de que na experiência viva do homem já não há esferas rodeadas de intransponíveis muralhas de mistério. Começará, então, o reinado da ciência e esta porá termo, para sempre, à religião e à metafísica.

Como resultado da combinação destas duas características temos uma terceira, que é a abolição gradual de todas as normas coercitivas e de todos os elementos de coação na vida social.

A significação essencial de todas as normas coercitivas (costume, lei e moral) repousa em que servem para regular as contradições vitais entre os homens, os grupos e as classes. Estas contradições acarretam lutas, rivalidades, rancores e violências e nascem do estado de desorganização e anarquia do conjunto social. As normas coercitivas que a sociedade estabeleceu, umas vezes de modo espontâneo e outras conscientemente, na luta contra a anarquia e as contradições, acabaram por converter-se em um fetiche, quer dizer, em um poder externo a que o homem se submeteu, em um quer quê [sic] superior a ele e colocado por cima dele, que reclama culto ou veneração. A não ser por este fetichismo as normas coercitivas não teriam suficiente poder sobre o homem para reprimir as contradições vitais. O fetichista natural atribui uma origem divina à autoridade, à lei e à moral; o representante do fetichismo social atribui sua origem à "natureza das coisas": ambos pretendem dar-lhes um significado absoluto e uma origem superior. Crendo no caráter absoluto e superior destas normas, o fetichismo se submete a elas e as mantém com a devoção de um escravo.

Quando a sociedade deixar de ser anárquica e se transformar em uma organização harmônica e simétrica, as contradições vitais de seu ambiente deixarão de ser um fenômeno fundamental e permanente e se converterão em algo parcial e casual. As normas coercitivas são uma especie de "lei" no sentido de que têm de regular a repetição dos fenômenos motivados pela estrutura mesma da sociedade; sob o novo sistema perderão evidentemente esta significação. Com um sentido social e um conhecimento altamente desenvolvido, as contradições casuais e parciais podem ser vencidas facilmente sem o auxílio de "leis" especiais postas em vigor de modo coercitivo pela "autoridade". Se, por exemplo, uma pessoa atacada de uma enfermidade mental constitui um perigo para os demais, não é necessário haver "leis" especiais e órgãos de "autoridade" para suprimir esta contradição: os ensinamentos da ciência bastam para indicar as medidas que devem adotar-se para curar essa pessoa, e o sentido social das pessoas que a rodearem será suficiente para impedi-la de praticar qualquer ato de violência, tratando-a, por sua vez, com a violência mínima. Em uma forma superior de sociedade as normas coercitivas perdem todo seu sentido pela nova razão de que, com o desaparecimento do fetichismo social com ela relacionado, perdem também seu caráter de superioridade.

Aqueles que creem que na nova sociedade terá de ser conservada a forma social do Estado, quer dizer, uma organização legal, porque serão necessárias leis coercitivas, como a de exigir a cada qual que trabalhe determinado número de horas diárias para a sociedade, estão equivocados. Todo Estado, como forma social, é uma organização de dominação de classe, coisa que não pode existir onde não haja classes. A distribuição do trabalho da sociedade socialista será garantida, de um lado, pelos ensinamentos da ciência e dos que as professam (os organizadores técnicos do trabalho, atuando exclusivamente em nome da ciência, mas sem autoridade alguma), e, de outro lado, pela força do sentimento social que converterá a homens e mulheres cm uma só família produtora, unida pelo desejo sincero de fazer todo o possível pelo bem-estar geral.

Unicamente no período de transição, quando subsistam ainda vestígios das contradições de classe, será possível o Estado na sociedade futura. Mas este Estado será também uma organização de dominação de classe: só que, neste caso, será a dominação do proletariado, o qual acabará por suprimir a divisão da sociedade em classes e a forma social do Estado.

V - Forças de desenvolvimento

A nova sociedade basear-se-á, não na troca, mas na economia natural autônoma. Entre a produção e o consumo dos produtos não se levantará o mercado da compra e da venda, mas a distribuição organizada consciente e sistematicamente.

A nova economia autônoma distinguir-se-á do antigo comunismo primitivo, por exemplo, em que abrangerá, não uma comunidade grande ou pequena, mas a sociedade inteira, composta de centenares de milhões e, finalmente, de toda a Humanidade.

Nas sociedades baseadas na troca, as forças de desenvolvimento são a "superprodução relativa", a concorrência, a luta de classes, quer dizer, em realidade, as contradições inerentes à vida social. Nas sociedades autônomas aludidas anteriormente, (sociedades tribal e feudal, etc.), as forças de desenvolvimento se baseiam na "superpopulação absoluta", quer dizer, nas contradições externas entre a Natureza e a sociedade, entre a procura de meios de vida, motivada pelo incremento da população, e a soma destes meios, que a Natureza pode proporcionar à uma sociedade dada.

Na nova sociedade autônoma, as forças de desenvolvimento consistiram também nas contradições externas entre a sociedade e a Natureza, no processo mesmo da luta entre a Natureza e a sociedade. Mas, neste caso, não será preciso o lento processo da superprodução para induzir o homem a aperfeiçoar cada vez mais seu trabalho e seus conhecimentos: as necessidades da Humanidade aumentarão com o processo mesmo do trabalho e da experiência. Cada novo triunfo sobre a Natureza e seus mistérios deparará novos problemas à mentalidade altamente organizada do homem novo, sensível à perturbação e à contradição por mais leves que sejam. O domínio sobre a Natureza implica a acumulação contínua da energia da sociedade arrebatada por esta à Natureza externa. Esta energia acumulada procurará uma saída e a encontrará na criação de novas forças de trabalho e de conhecimento.

É certo que a acumulação da energia nem sempre conduz à criação: pode, também, conduzir à degenerescência. As classes parasitárias da sociedade moderna, tal como as das sociedades precedentes, acumulam energia à custa do trabalho alheio e procuram uma saída para ela, não na criação, mas na depravação. no luxo, na perversão e no requinte. Isto acarreta a debilitação mental e a decadência destas classes. Entretanto, os membros destas classes não são senão parasitas: não vivem na esfera do trabalho socialmente útil, mas quá- se exclusivamente na do consumo.

Como é natural, procuram sempre novas formas de satisfação nesta esfera e as encontram em todo o gênero de perversões e requintes. Mas a sociedade socialista não conhece tais parasitas. Nela todos são trabalhadores e satisfarão seus impulsos criadores, nascidos do excesso de energia, na esfera do trabalho. Assim, aperfeiçoarão a técnica e, por conseguinte, aperfeiçoar-se-ão a si mesmos.

As novas formas de desenvolvimento geradas da luta com a Natureza e da experiência produtora do homem atuam tanto mais enérgica e rapidamente quanto maior, mais complexa e diversa é esta experiência. Por este motivo, na nova sociedade, com seu gigantesco e complexo sistema de trabalho, com seus múltiplos vínculos para unificar a experiência das individualidades humanas mais diversas (se bem que igualmente esclarecidas), as forças de desenvolvimento deverão criar um progresso de uma rapidez inimaginável hoje. O progresso harmônico da sociedade futura será muito mais intenso que o progresso semi-espontâneo, desenvolvido entre contradições, da época atual.

Todos os obstáculos econômicos opostos ao desenvolvimento serão removidos no novo sistema. Assim, a aplicação da maquinaria, que, no capitalismo, é determinada por considerações de lucro, sob o novo sistema visará exclusivamente a produtividade.

As forças de desenvolvimento que predominarão nesta fase não serão forças novas: já terão intervindo anteriormente. Entretanto, no sistema autônomo natural primitivo, estas forças eram reprimidas pelo conservadorismo que predominou nele; sob o capitalismo, são reprimidas em virtude do fato de que as classes que se apoderam do produto do trabalho suplementar, quer dizer, da fonte principal das forças de desenvolvimento da sociedade, não participar da luta direta com a Natureza, não dirigem a indústria pessoalmente, mas por intermédio de terceiros, e, por conseguinte, permanecem alheias à influência das forças criadoras na luta.

Sob o socialismo, ao contrário, a totalidade do trabalho suplementar será empregada por toda a sociedade, e cada membro desta participará diretamente na luta contra a Natureza. Por conseguinte, a força motriz mais importante do progresso atuara sem entraves e a toda velocidade, não por intermédio de uma minoria selecionada, mas através de toda a Humanidade, e a esfera do desenvolvimento se expandirá incessantemente.

Assim, pois, as características gerais do sistema socialista, a mais elevada fase da sociedade que podemos conceber, são: domínio sobre a Natureza, organização, espírito social, liberdade e progresso.


Inclusão 17/05/2016