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Primeira Edição: Le Monde, 3 de dezembro de 1969.
Fonte: Que Cem Flores Desabrochem! Que Cem Escolas Rivalizem!
Tradução utilizada: EMMANUEL, BETTELHEIM, AMIN e PALLOIX. Imperialismo e Comércio Internacional (a troca desigual). São Paulo: Global Editora, 1981, pg. 201-206.
HTML: Fernando Araújo.
Já nos últimos vários anos, a conjuntura mundial da luta de classes tem dois traços fundamentais: as crises conjuntas, econômica e política, do imperialismo em suas variadas especificidades nacionais. A crise econômica – agravada desde a recessão mundial iniciada em 2007/2008 e não apenas não encerrada, como às voltas com uma nova recessão mundial – expressa, por um lado, a incapacidade do capital em retomar de forma sustentável suas taxas de acumulação (crescimento) e de lucro, não obstante a forte ofensiva burguesa na luta de classes que essa incapacidade fomenta. Em decorrência disso, os indicadores econômicos mundiais apontam de forma cada vez mais clara para taxas de crescimento menores (EUA, China), recessões (Itália, Argentina), redução na produção industrial (Alemanha), elevados níveis de desemprego (Brasil), etc. Esses fatores acionam a ação do Estado capitalista para estimular a acumulação e os lucros de suas burguesias, seja com redução de impostos para as empresas (EUA), aumento da dívida pública (China) ou reformas para reduzir conquistas da classe operária e rebaixar o valor da força de trabalho (Brasil). Além, é claro, de instrumentos de controle e repressão, inclusive ideológicos, mais desenvolvidos.
Por outro lado, a crise econômica do imperialismo expressa/impulsiona modificações na divisão internacional do trabalho, com o capital se movimentando ao redor do mundo em busca dos locais com melhores condições de produção (salários e impostos baixos, infraestrutura, menor custo de capital, etc.) – independente de considerações sobre sua origem nacional e os impactos que isso causa no seu país de origem ou no de destino, nos respectivos governos, camadas médias ou classes dominadas. No caso mais conhecido, essa reconfiguração da ordem econômica mundial impulsionou e é consequência do desenvolvimento econômico da China imperialista, com o deslocamento dos grandes monopólios transnacionais americanos (principalmente) para produzir no Oriente, deixando para trás verdadeiras zonas desoladas na sua “América natal”, cujos trabalhadores perderam seus empregos formais, estáveis e com salários mais altos e agora se viram como podem em empregos em tempo parcial, precarizados, sem sindicalização. Na mais recente rodada desse processo, as indústrias intensivas em mão de obra já se deslocam da China para os demais países do sudeste asiático em busca de custos salariais ainda mais baixos que os dos chineses – cuja intensa luta de classes, nos últimos anos, contra seus patrões (sejam privados, sejam estatais ou mesmo aqueles com o hipócrita e mentiroso nome de “comunistas”) tem conseguido elevar os salários e aumentar as mínimas conquistas trabalhistas existentes.
A crise política, na maioria dos países, reflete/agrava os efeitos da crise econômica a partir das suas condições nacionais, de sua inserção no sistema imperialista e da luta de classes. Isso implica, por um lado, a falência dos representantes políticos tradicionais da burguesia, seja na sua face de “esquerda” (socialistas na Europa, democratas nos EUA, PT e outros no Brasil), seja na de direita (parcela tradicional dos partidos conservador inglês e republicano nos EUA, PSDB no Brasil), presos no que é visto como “propor mais do mesmo”, continuar no que está dando errado (aqui também chamado de “velha política”, com o acréscimo da corrupção).
Diante disso, a outra face da moeda da crise política tem sido o crescimento de posições mais abertamente fascistas em setores da burguesia e das camadas médias nos países imperialistas (EUA, Inglaterra, França, Itália) e dominados (Hungria, Turquia, Brasil), com seus aspectos nacionais específicos misturando em distintas proporções nacionalismo, xenofobia, racismo e fundamentalismos religiosos e, em todos os casos, acentuando as tendências autoritárias da ofensiva burguesa. Como sabemos, o imperialismo é a fase de putrefação, apodrecimento do capitalismo, e o fascismo é a sua ideologia.
O avanço dessas posições, inclusive com a conquista do poder político (todos os países mencionados no parágrafo anterior, exceto a França), fortalece a ideologia por elas propagadas, que passa a ocupar espaço no conjunto da ideologia dominante. Dessa forma, essas ideologias (nacionalismo, xenofobia, racismo, fundamentalismos) também permeiam a classe operária e demais classes dominadas, especialmente no cenário concreto atual de ausência contínua e prolongada de um forte e de massas movimento comunista internacional, guiado pela teoria revolucionária do proletariado, o marxismo-leninismo.
Um dos papeis das ideologias dominantes burguesas no seio da classe operária é propagar seu conformismo ante sua exploração pelo capital (igualdade jurídica formal, meritocracia, religiões) e estimular suas divisões (nacionalismo, xenofobia, racismo, etc.)(1). No caso dessas últimas, concretamente, ao invés de assumirmos que “somos irmãos(ãs) trabalhadores(as)”, como canta a Internacional, passamos a ser brasileiros(as), americanos(as), chineses(as), alemães(ãs), portugueses(as), etc. Dessa forma, o que essas ideologias estimulam é uma união sem princípios (subordinação) dos operários com a burguesia exploradora de cada país, ao invés da solidariedade entre os proletários explorados em todos os países – todos contra suas próprias burguesias nacionais.
A ideologia burguesa do nacionalismo e do racismo está presente nos EUA, agravada no governo Trump, na ideia de que os imigrantes latinos vão “roubar” os empregos dos operários americanos, trabalhando com salários mais baixos e nas piores condições – como se isso fosse uma escolha voluntária e não uma imposição dos patrões. Ideologia essa que chegou ao extremo de (re)criar campos de concentração de imigrantes (inclusive de crianças separadas de suas famílias), além da política de caça e deportação em massa.
Ela está presente, também, nos mesmos EUA, na ideia de que os operários chineses “roubam” os empregos dos operários americanos – como se não fossem os próprios grandes monopólios transnacionais dos EUA a se deslocar para países de salários mais baixos, buscando aumentar seus lucros de imediato e, pelos mecanismos do mercado imperialista mundial, baixar também os salários nos seus países de origem.
O nacionalismo, com quase os mesmos tons, também está presente na Inglaterra do Brexit e na Europa continental das políticas anti-imigração, que parece ter sua expressão mais acabada no ideal da extrema-direita italiana de deixar os africanos se afogarem no Mediterrâneo e prender aqueles que os socorrem. Não é à toa que Donald Trump, Boris Johnson e Matteo Salvini são os ídolos dos Bolsonaros e sua trupe.
No Brasil, na ausência de ondas migratórias (exceto a venezuelana atual, que já originou a proposta de fechamento da fronteira), uma subespécie de nacionalismo racista surge principalmente contra os nordestinos, os “paraíbas”, que, nessa distorção ideológica, surgem como “parasitas” dependentes de Bolsa Família e outras transferências governamentais e subordinados aos coronéis da “velha política”.
Mutato nomine, de te fabula narratur!
Se hoje, o principal aspecto do nacionalismo, da xenofobia e do racismo é contra os trabalhadores dos países/regiões mais pobres, quarenta anos atrás, os comunistas eram obrigados a combater a esdrúxula tese de que os trabalhadores dos países “mais ricos” eram “sócios” da exploração capitalista dos seus países (ou seja, das burguesias desses países) sobre os trabalhadores dos países “mais pobres”. A crítica marxista a essas posições nos parece ter a mesma fundamentação: partir da teoria marxista, do funcionamento do sistema imperialista, da posição proletária na luta de classes, para mostrar o caráter burguês dessas teses que opõem os operários dos diversos países.
Trazemos, assim, para os camaradas e leitores o artigo de Charles Bettelheim, Os Trabalhadores dos Países Ricos e Pobres Têm Interesses Solidários, de 1969, escrito contra as teses de que o problema do imperialismo eram as trocas desiguais (e não a exploração na produção de mercadorias e a mais-valia) e que, portanto, trabalhadores e patrões nos países “ricos” seriam sócios da exploração dos trabalhadores dos países “pobres” e, logo, esses não teriam nenhuma luta em comum com aqueles.
Bettelheim destrói essas teses mostrando, em primeiro lugar, como os salários são determinados no capitalismo a partir da produtividade do capital e da luta de classes em cada país. Por essa razão, o marxismo se distancia do “senso comum” ao mostrar que o operário em um país imperialista pode ser mais explorado (expropriado de parte maior da mais-valia) que o de um país dominado, mesmo que seu salário seja muitas vezes maior. Dessa maneira, um aumento de salários nos países imperialistas – fruto das lutas da classe operária contra sua burguesia – tem como efeito direto a redução do lucro dos patrões, e não o agravamento da exploração de outros operários e trabalhadores.
A conclusão, para os comunistas, só pode ser uma: a união internacional da classe operária se dá, objetivamente, sobre a base da exploração capitalista comum que todos os operários sofrem. E essa união de classe também é impulsionada por fatores subjetivos como a revolta contra a exploração e a humilhação, a solidariedade concreta e cotidiana dos oprimidos, e a visão de termos, juntos, um mundo a ganhar.
Ou, nas palavras de Bettelheim:
“Portanto, se bem não se possa falar de uma exploração dos trabalhadores dos países “pobres” pelos dos países “ricos”, deve-se reconhecer que nenhuma contradição fundamental opõe os interesses uns aos outros. Por outro lado, existem entre eles laços objetivos de solidariedade, visto que todos estão submetidos, direta ou indiretamente, à exploração capitalista, ou ameaçados por ela.
A contradição social fundamental é, definitivamente, a que opõe os trabalhadores de todos os países às classes dominantes e exploradoras que os privam do domínio dos seus meios de produção e do produto do seu trabalho”.
PAZ ENTRE NÓS, GUERRA AOS SENHORES!
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À tese da solidariedade dos trabalhadores de todos os países opõe-se, às vezes, a ideia de uma divergência profunda entre os interesses dos trabalhadores dos diversos países. Para os porta-vozes desta ideia, tal divergência teria sua origem na exploração de determinados países (qualificados como “ricos”). A exploração a que se referem e da forma como a enfocam não é – pelo menos não é essencialmente – a exploração imperialista, mas resultaria diretamente das trocas tal como se processam no mercado capitalista. Resultaria de uma “troca desigual” que se explicaria pelas desigualdades de salários entre países. Tal “troca desigual” implicaria em que os trabalhadores dos países “ricos” explorassem os trabalhadores dos países “pobres”. Se isso fosse exato, seria necessário abandonar a tese da solidariedade internacional dos trabalhadores: os trabalhadores dos países de altos salários não seriam simples “beneficiários” de uma situação econômica que não depende deles, mas “agentes ativos” dessa situação. Mais ainda: cada vez que esses trabalhadores obtivessem aumentos de salários estariam agravando a exploração dos países pobres.
Esta concepção pressupõe que o salário desempenha o papel privilegiado de uma “variável independente” capaz de determinar o nível e a estrutura dos preços. Tal suposição é totalmente arbitrária. Contudo, corre o risco de ser facilmente aceita já que goza de certo “senso comum”, isto é, de certas “evidências imediatas” (precisamente aquelas que o conhecimento científico deve sempre questionar). No caso em questão, estas “evidências” são também aquelas a que se referem os defensores de concepções econômicas reacionárias quando acusam os trabalhadores de serem responsáveis pela alta dos preços, pela inflação, etc., devido aos salários “demasiadamente elevados” que exigem. Nenhuma destas afirmações ou suposições tem fundamento: o salário é um preço entre outros (o preço da força de trabalho) e não exerce nenhuma influência “privilegiada” sobre o nível geral dos preços.
Salvo em casos de desvalorização da moeda, os aumentos de salários não conduzem a aumentos de preços mas a uma redução dos lucros; ademais, a depreciação da moeda não é “determinada” pela elevação dos salários. Para que se compreenda o alcance das desigualdades internacionais dos salários, é preciso que se as explique. A teoria e a análise concretas mostram que as desigualdades internacionais dos salários têm sua origem no desenvolvimento desigual da produção capitalista de país para país, e nos efeitos desse desenvolvimento desigual sobre a produtividade e a intensidade do trabalho. De um modo geral, estas crescem com o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Consequentemente, em cada país que participa de uma dada produção, são produzidas diferentes quantidades de uma mesma mercadoria num mesmo tempo de trabalho. No mercado internacional tendo essas mercadorias um preço unitário único que é o seu “preço mundial”, os trabalhadores dos países capitalistas mais desenvolvidos produzem, no mesmo espaço de tempo, mais valor, expresso em dinheiro que os trabalhadores dos países capitalistas menos desenvolvidos.
Esta diferença nas produtividades expressa em dinheiro implica num conjunto de consequências, tanto no que respeita aos níveis nacionais como no que respeita às condições da especialização capitalista internacional. As estatísticas indicam que, nos casos extremos, a relação entre produtos de uma hora de trabalho (medido em termos monetários) fornecido pelos trabalhadores dos países capitalistas desenvolvidos e o produto de uma hora de trabalho fornecido pelos trabalhadores dos países em que o capitalismo está mais fracamente desenvolvido é da ordem de 40 para 1. Indicam também que os salários nominais nacionais médios dos países capitalistas mais desenvolvidos parecem ser de vinte a trinta vezes mais elevados do que os dos países em que a produção capitalista está menos desenvolvida.
Aqui temos um ponto essencial: os salários nominais, e mais ainda, os salários reais estão longe de variar proporcionalmente às diferenças internacionais de produtividade. Donde deriva o fato aparentemente “paradoxal”, mas na realidade necessário (quer dizer, proveniente das leis do funcionamento do modo capitalista de produção): a taxa de exploração é muito mais elevada nos países capitalistas desenvolvidos do que nos países fracamente desenvolvidos.
Dizer que a taxa de exploração é mais elevada nos países capitalistas desenvolvidos que nos países capitalistas menos desenvolvidos não é afirmar que o nível de consumo dos trabalhadores é mais baixo (como se sabe, a verdade é exatamente o contrário), mas sim que os salários são aí relativamente mais baixos em comparação com a produtividade expressa em termos monetários. Assim ocorre precisamente porque nos países menos desenvolvidos o valor da produção por operário é mais fraco que a taxa de exploração que, em média, é relativamente menos elevada, apesar dos salários miseráveis ali pagos.
Visto que as diferenças de produtividade expressas em dinheiro explicam as diferenças entre os níveis de preços e de salários de país para país, os salários mais elevados auferidos pelos trabalhadores dos países capitalistas mais desenvolvidos não são de modo nenhum “adquiridos” à custa dos trabalhadores dos países menos desenvolvidos: estes salários inscrevem-se num sistema de preços que não determinam.
Uma consequência prática da proposição precedente: quando, num país capitalista de forças produtivas desenvolvidas, os trabalhadores não obtêm salários mais elevados, isso não se traduz numa melhoria das condições de existência dos trabalhadores dos países pobres, mas em maiores lucros para os capitalistas dos países ricos e, portanto, numa aceleração das desigualdades do desenvolvimento. Em contrapartida, os aumentos de salários obtidos pelos trabalhadores dos países mais industrializados podem tornar “competitivas” as indústrias dos países menos desenvolvidos e criar, assim, condições mais favoráveis à luta econômica de classe dos trabalhadores desses países.
O que, definitivamente, constitui o fato fundamental é o desenvolvimento desigual das forças produtivas nas condições de dominação mundial das relações de produção capitalistas. É o que permite explicar as desigualdades econômicas internacionais de salários manifestas sob a forma de troca desigual; é a base da exploração imperialista (exploração que agrava ainda mais as desigualdades de desenvolvimento) expressa acima de tudo na forma de “bloqueio” das forças produtivas dos países capitalistas menos desenvolvidos.
Este “bloqueio” nada mais é que a reprodução ampliada das desigualdades econômicas. É um dos principais efeitos da dominação mundial das relações de produção capitalistas e indica que o enriquecimento dos países capitalistas mais desenvolvidos repousa menos sobre a exploração dos países menos desenvolvidos (exploração que aceitaria o pressuposto da sua “valorização”) do que em manter inexploradas imensas riquezas em homens e em terras dos países pretensamente “pobres”.
Portanto, se bem não se possa falar de uma exploração dos trabalhadores dos países “pobres” pelos dos países “ricos”, deve-se reconhecer que nenhuma contradição fundamental opõe os interesses uns aos outros. Por outro lado, existem entre eles laços objetivos de solidariedade, visto que todos estão submetidos, direta ou indiretamente, à exploração capitalista, ou ameaçados por ela.
A contradição social fundamental é, definitivamente, a que opõe os trabalhadores de todos os países às classes dominantes e exploradoras que os privam do domínio dos seus meios de produção e do produto do seu trabalho. Face a essa contradição, os interesses “nacionais” ou “categoriais” que podem opor certos trabalhadores a outros correspondem a contradições secundárias.
Certamente essas contradições secundárias são utilizadas pelas classes dominantes para manter sua dominação. Exatamente por este motivo é que se deve relembrar constantemente onde reside a contradição social fundamental.
A invocação à solidariedade objetiva dos trabalhadores é particularmente necessária hoje porque mais do que nunca os povos de todos os países estão à mercê de crises nacionais e internacionais, incluindo as guerras, frutos naturais do modo de produção capitalista.
Notas de rodapé:
(1) Em nossa recente publicação do “Discurso Sobre a Libertação Gay e Feminina”, de Huey Newton [http://cemflores.org/index.php/2019/07/19/discurso-sobre-a-libertacao-gay-e-feminina-de-huey-newton/], também tratamos sobre o papel de discriminações e preconceitos na divisão política do proletariado e sua funcionalidade à dominação burguesa, sobretudo em contexto de crise. (retornar ao texto)