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O comunismo na Antiguidade, como verificamos principalmente na Grécia, visava objetivos de ordem política e material. Platão desejava um Estado ideal. Já o comunismo dos espartanos se propunha apenas criar uma comunidade de senhores, reinando sobre um povo de escravos.
O comunismo da Antiguidade assemelha-se ao comunismo moderno pelo fato de visar, como ele, objetivos de "natureza material”. O comunismo da Idade Média, pelo contrário, tem um caráter "mais religioso e moral que material”. Por esse motivo, um homem moderno compreende sempre melhor a Antiguidade que a Idade Média. De fato, o medo de pensar e de sentir da Idade Média nada tem de comum com a maneira de ser dos homens contemporâneos. O pensamento antigo e o pensamento moderno são racionais, lógicos, científicos. O pensamento medieval, pelo contrário, é irracional, ilógico, místico. Não estuda de maneira crítica os fatos da História, para, em seguida, procurar classificá-los rigorosamente no tempo e no espaço. Considera-os quase sempre como uma simples aparência, atrás da qual se escondem segredos divinos. O pensamento medieval não aceita as Santas Escrituras ao pé da letra, mas tenta interpretá-las de maneira simbólica, alegórica.
O homem moderno procura o triunfo material. O homem da Idade Média procura, sobretudo, valores eternos.
O comunismo medieval é um protesto, ao mesmo tempo moral e social, contra os progressos da economia privada, contra os excessos do poder temporal e do poder espiritual, que gradualmente repelem o direito natural, o Cristianismo primitivo e os velhos costumes das comunidades para um plano secundário.
É lícito dizer que na História do comunismo da Idade Média predominam quase exclusivamente as considerações de ordem moral e religiosa. Seu objetivo principal, nesse momento, é a luta contra o egoismo, para a supressão do mal e a instauração da justiça social.
Eis porque, na Idade Média, o comunismo pode ser definido como uma luta em prol da justiça social, baseada essencialmente na religião e na moral. Seus adeptos procuram mostrar que a pobreza é a base da vida, cristã. Sacrificam-se e sofrem martírios pela causa da pobreza. A História do comunismo na Idade Média vai nos fazer penetrar num mundo moral e religioso no qual os fatores materiais desempenham um papel inteiramente secundário. Os fatores espirituais, ao invés, aparecem aí como o elemento essencial.
Nascendo pela fusão da religião judaica com a filosofia de Alexandria, o Cristianismo transforma-se, no processo de desenvolvimento, no herdeiro do pensamento antigo, que ele, pouco a pouco, modifica integralmente. Todas as ideias da Antiguidade sobre a sociedade, o Estado, a moral, o direito e a economia, que não se opunham aos princípios do Cristianismo, foram por ele incorporadas e a seguir modificadas, de acordo com os seus próprios interesses. É assim que o Cristianismo se transforma numa verdadeira concepção do mundo, em que os elementos religiosos predominam. É como consegue exercer uma influencia cada vez maior na vida social.
Sob o ponto de vista teórico, o comunismo medieval apoia-se nas tradições do Cristianismo primitivo, nas esperanças quiliásticas, na moral dos sacerdotes da Igreja nos ensinamentos do gnosticismo e do misticismo, em Platão e no direito natural. Esses diferentes fatores não agem separadamente. Pelo contrário, intervêm em conjunto. Durante toda a Idade Média e, particularmente, nos períodos de grandes crises sociais e religiosas, sua influência se manifesta, tanto no comunismo da época como nas correntes reformadoras que surgem nesse período. Mas os elementos comunistas do Cristianismo, assim como as tendências reformadoras que encerra, partindo do centro da vida religiosa, são pouco a pouco repelidas para a periferia. Depois que se alia ao Império romano, o Cristianismo adquire cada vez mais um caráter oficial, dogmático, conservador, anticomunista. Daí por diante, surge um conflito entre a teoria e a prática sociais. As tendências comunistas ainda se manifestam nas publicações cristãs. Mas, a partir de então, o Cristianismo já procura, de forma cada vez mais acentuada, justificar a propriedade privada ou sustentar teorias que nela vêm a única base possível para a vida em sociedade. Esta transformação, naturalmente, não se faz sem choques e dificuldades. Os cristãos não querem aceitar esta metamorfose de sua doutrina, e, pelo respeito à tradição, ou por motivos de ordem econômica e religiosa, conservam-se fieis às ideias comunistas do Cristianismo primitivo. E, para salvarem essas ideias da transformação que se processa, os fiéis, ou se refugiam na vida monástica, ou se tornam hereges.
Neste particular, os monges podem ser comparados aos utopistas dos Tempos Modernos: como não podem ou não querem lutar contra o poder estabelecido, afastam-se da sociedade para fundar colônias comunistas. Os hereges, pelo contrário, são comparáveis aos revolucionários socialistas modernos (comunistas), porque, como eles, declaram guerra ao regime existente sem medir sacrifícios, lutam pelas suas convicções.
De qualquer modo, porém, o fato indiscutível é que os monges e os heréticos da Idade Média foram muito mais fiéis ao espírito do Cristianismo primitivo que os dirigentes da Igreja oficial.
A herança, que os três ou quatro primeiros séculos do Cristianismo e a ação dos padres da Igreja legaram à Idade Média, foi uma tradição de hostilidade ao domínio de Mamon, à extensão da propriedade privada e do poder temporal. Esta tradição, pelo contrário, era favorável às condições de vida comunistas e ascéticas. Influíram de maneira particularmente intensa nesse sentido os Atos dos Apóstolos, cujas descrições das condições de vida da comunidade cristã de Jerusalém alimentaram, no espírito dos mais nobres adeptos da nova religião, o desejo de uma vida baseada no espírito de comunidade.
Do mesmo modo que a volta à Idade de Ouro era o ideal dos poetas e dos pensadores da Antiguidade, a comunidade cristã de Jerusalém foi, durante muito tempo, o modelo de vida recomendado pelos padres da Igreja a todos os cristãos sinceros. Comungaram com este ideal, no decorrer dos primeiros séculos, não só os sonhos quiliásticos, como os melhores produtos do pensamento antigo — os ensinamentos de Platão, dos estoicos e dos neoplatônicos — que consideravam o Espiritual, a Divindade, como o elemento fundamental da vida humana. Para eles, a ideia é a verdadeira realidade, o fim a atingir, o modelo pelo qual se devem plasmar todas as doutrinas, todas as atividades. Os principais representantes desta doutrina religiosa, moral e filosófica foram os santos padres Barnabás, Justino o Mártir, Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano, S. Cipriano, Latância, Basílio de Cesária, Gregório de Nacianzo, João Crisóstomo, Santo Ambrósio, e Santo Agostinho que, ou pregavam o comunismo, ou, pelo menos, preconizavam um gênero de vida baseado no espírito comunista, que, segundo eles, era o mais virtuoso e o mais próximo do ideal cristão.
Barnabás, entre todos os sacerdotes o que mais se aproxima da idade apostólica, ordena aos cristãos:
"Deverás repartir tudo, em tudo e por tudo com o teu próximo e não falar em propriedade. Porque, se do ponto de vista dos bens espirituais já consideras o próximo como teu irmão, com muito mais razão deves assim considerá-lo em tudo o que se refere a bens materiais transitórios”.
S. Cipriano descreve com entusiasmo a comunidade cristã de Jerusalém:
"Desfrutamos em comum todas as dádivas divinas. Ninguém está excluído de seus benefícios. Todos os homens podem usufruir igualmente os bens e a benevolência de Deus... Todo aquele que divide seus lucros com os irmãos segue o exemplo de Deus”.
Latâncio sofreu grande influência da República de Platão.
Julgava que o comunismo seria possível se os seus partidários venerassem a Deus, fonte de toda a sabedoria e de toda a fé. Mas era um adversário declarado da comunidade das mulheres, preconizada por Platão. Entretanto, da mesma forma que ele, Latâncio queria fazer ressurgir no presente os bem-aventurados tempos pré-históricos, a Idade de Saturno, a época em que os homens viviam em comum, em que a justiça reinava no mundo, a época em que nada faltava a ninguém, porque tudo pertencia a todos.
Nas suas Homílias, Basílio o Grande lamenta-se:
"Nada resiste ao poder do dinheiro. Todos se rojam perante ele. Não se pode qualificar de ladrão ao homem que se apropria de bens que recebeu apenas para administrar? O pão de que te aproprias é daquele que tem fome. Daquele que está nu são as roupas que guardas nas tuas arcas. Daquele que anda descalço, e que trabalha em tua casa sem nada receber, é o dinheiro que escondeste no teu subterrâneo”.
Ms a luta de Basílio o Grande contra a riqueza não limita apenas a uma crítica negativa. Também reclama a comunidade dos bens:
“Nós, que somos seres providos de razão, poderemos mostrar-nos mais cruéis que os animais? Estes consomem em comum os produtos da terra. Os rebanhos de carneiros pastam no mesmo lugar da montanha e os cavalos no mesmo prado. Mas nós, nós nos apropriamos de bens que devem pertencer a todos e queremos possuir sozinhos o que pertence à comunidade”.
Aconselha, então, os cristãos a viverem de acordo com as leis de Licurgo:
"Imitemos os gregos e as suas normas de vida tão cheias de sabedoria e de humanidade! Há, entre os gregos, povos que têm o excelente costume de reunir todos os cidadãos no mesmo edifício ao redor de uma mesa comum”.
João Crisóstomo preconiza experiências comunistas na base da comunidade cristã de Jerusalém.
"Porque eles não se limitavam a dar somente uma parte do que possuíam, conservando a outra para si mesmos, nem tão pouco davam o que tinham como se estivessem entregando um bem que lhes pertencesse. Suprimiram todas as desigualdades e viveram no meio da maior abundância. Realmente, a dispersão dos bens acarreta maiores gastos. Em consequência disto, todos empobrecem. Tomemos, como exemplo, uma família composta de um homem, uma mulher e dez crianças. A. mulher em casa tecendo. O homem trabalha fora. Precisarão de mais dinheiro se viverem juntos ou separados? É claro: se viverem separados!... A dispersão determina inevitavelmente uma diminuição dos bens existentes. A vida em comum, pelo contrário, multiplica os bens. É assim que os monges vivem nos seus conventos, como viviam antigamente os primeiros cristãos”.
Santo Ambrósio considera a propriedade privada como filha do pecado, e defende a seguinte tese dos estoicos: "A natureza dá tudo em comum a todos. Deus criou os bens da Terra para os homens gozarem-nos em comum, para que sejam propriedade comum de todos. Portanto, foi a natureza que criou o comunismo. A violência é que estabeleceu a propriedade privada”.
Santo Agostinho, discípulo de Santo Ambrósio, é também favorável ao comunismo.
"A propriedade privada origina dissenções, guerras, insurreições, carnificinas, pecados graves e veniais... Nós possuímos grande número de coisas supérfluas. Contentemo-nos com o que Deus nos deu e tomemos só o que necessitarmos para viver. Porque o necessário é obra de Deus, mas o supérfluo é obra da cobiça humana. O supérfluo dos ricos é o necessário dos pobres. Quem possui um bem supérfluo possui um bem que não lhe pertence”.
Esta teoria tinha grande número de adeptos naquela época. Quase todos os padres, nos seus sermões, sustentavam ideias desse gênero.
O gnosticismo e o misticismo são a segunda fonte de movimento herético e social da Idade Média.
A palavra grego gnosis quer dizer "conhecimento”. Poder-se-ia, por isso, pensar que gnosticismo e ciência são termos equivalentes. Mas isto seria cometer um erro grave. O gnosticismo nada tem a ver, na realidade, com os métodos científicos do conhecimento, tais como hoje os compreendemos. Não trata das impressões sensíveis do mundo exterior ou da observação dos objetos e fenômenos exteriores, nem tampouco dos métodos que nos levam ao conhecimento das forças e das leis da natureza ou ao conhecimento dos fenômenos da vida social e política. O gnosticismo é, acima de tudo, uma filosofia da vida interior do homem, dos arroubos místicos da alma e da luta entre o Bem e o Mal, no interior do homem e da sociedade. O gnosticismo é uma corrente essencialmente religiosa, aparentada com o judaísmo e com o Cristianismo. Distingue-se, entretanto, do Cristianismo, porque se opõe a todos os dogmas e a todos os ritos da religião. O gnosticismo julga que os dogmas e os ritos, encerrando a vida religiosa em formas de organização temporal e armando-a com meios de opressão exteriores, envelhecem a religião, degradando-lhe o elemento espiritual. Opõe-se ao Cristianismo porque pensa que a Matéria sempre existiu, ao lado do Espírito, o Mal ao lado do Bem. O Mal, portanto, não apareceu somente depois do pecado original, como afirma o Cristianismo. Sempre existiu, seja como uma força passiva, seja como uma força em luta com o Bem.
A base intelectual do gnosticismo é, pois, o esforço para responder à grande questão fundamental: "De onde e como o Mal veio ao mundo? Como explicar o trágico conflito entre o Bem e o Mal? A vida humana, tanto individual como social, não é, afinal de contas, senão um esforço enorme para assegurar a vitória do Espírito sobre a Matéria, para vencer o Mal. Todos os antagonismos e conflitos que existem no mundo — entre o egoismo e o espírito de solidariedade, entre o lucro individual e o bem estar social, entre propriedade privada e propriedade coletiva, entre opressão e liberdade — não são mais que formas exteriores da luta geral entre o Bem e o Mal. Em outras palavras: tudo isto é o esforço para redimir a Humanidade, ou, empregando linguagem moderna, é a luta em prol da emancipação dos homens.
Vê-se, pois, que o gnosticismo é, sobretudo, uma ética e uma filosofia, que se desenvolve particularmente no momento em que surge o Cristianismo. Os rabinos, do mesmo modo que os doutores da Igreja, atacam violentamente o gnosticismo, porque, tanto do modo de ver do judaísmo, como do Cristianismo, o gnosticismo é uma "heresia”. Reaparece aproximadamente no fim da Idade Média como a filosofia das seitas heréticas e comunistas. Conhecemos dos escritos dos gnósticos apenas fragmentos, trechos, que os doutores da Igreja e os inquisidores medievais citam nos seus escritos. Só conhecemos, portanto, o pensamento dos gnósticos, através de seus adversários, que, quando citaram algumas passagens de suas teorias, o fizeram apenas para melhor combatê-las e refutá-las.
Tomando-se por base essa documentação imperfeita e fragmentária, conclui-se que o gnosticismo é uma mistura da moral e da filosofia oriental com o neoplatonismo.
Em linhas gerais, o gnosticismo diz o seguinte: Deus é a força primitiva que impregna toda a matéria. É a fonte da luz, o centro da claridade, da bondade e do amor, que irradia os seus raios por todo o infinito. Mas, quanto mais esses raios se afastam do centro emissor, tanto mais se enfraquecem. De etapa em etapa, vão perdendo o poder primitivo, a claridade e a bondade. Estas etapas são chamadas os "eonios”. Os eonios inferiores são os mais sombrios, os mais materiais, embora sejam os que conservam uma certa força criadora. Foram eles que, com auxílio da matéria, criaram o mundo tal qual o vemos. Este mundo não foi, então criado por Deus, fonte da Luz e do Bem, mas pelos seus raios inferiores. E assim se explica porque é formado por uma mistura de Luz e de Trevas, pelo Bem e pelo Mal, isto é, por elementos que mutuamente se combatem.
Para os gnósticos, o desejo de redimir-se não e mais que uma luta para vencer a matéria e unir-se ao espírito. O conhecimento da unidade do homem com Deus, o êxtase e a renúncia a tudo o que pertence ao domínio dos sentidos, a renúncia às riquezas e à violência, fontes do egoismo e da opressão, são os meios através dos quais os homens poderão vencer a Matéria e unir-se ao Espírito.
O gnosticismo, na sua forma inicial, admitia que o Espírito, a Luz e o Bem constituem a força criadora, enquanto a Matéria, as Trevas e o Mal são elementos passivos, obstáculos. Já o gnosticismo da época seguinte pensa de maneira diferente. O seu criador, Mani, filósofo persa que viveu no século III depois de Jesus Cristo, afirma que sempre existiu um antagonismo irredutível entre os dois princípios fundamentais: o Espírito e a Matéria, a Luz e as Trevas, o Bem e o Mal. Mas esse antagonismo nunca poderá desaparecer, porque a luta que se trava entre esses princípios opostos é eterna. O homem pode fortalecer o princípio divino procurando combater os maus instintos por meio da contemplação, do amor ao próximo, renunciando às riquezas, etc.
O grande número de adeptos, que a doutrina de Mani (“maniqueísmo”) conquistou no Império romano em decadência, mostra como o problema da moral preocupava os homens no fim da Antiguidade. Sabe-se hoje que Santo Agostinho, antes de converter-se ao Cristianismo, foi maniqueísta. Quase todo o movimento herético da Idade Média inspira-se no maniqueísmo.
O dualismo moral do maniqueísmo é o reflexo pessimista de vários séculos de opressão política e social. Durante muitos séculos, os povos do Oriente assistiram às conquistas imperialistas e às lutas devastadoras dos reinos da Mesopotâmia, do Egito e do Mediterrâneo. Estes povos haviam visto um grande número de impérios nascer e morrer. Tinham visto, por toda a parte, o Mal triunfar do Bem, a força brutal sempre vencedora. Particularmente, a longa carreira de vitórias do Império romano era para eles um espantoso enigma moral. Não estavam as vitórias de Roma em patente contradição com a ideia de uma ordem baseada na moral? E, no domínio da vida social, a luta entre o direito e a injustiça, entre escravos e senhores, entre explorados e exploradores, entre pobres e ricos, fora alguma vez favorável ao Bem? O próprio homem não vivia torturado por um grave conflito moral? No intimo, não era mais difícil o Bem vencer o Mal, o Espírito dominar a Matéria?
Em toda a História religiosa do Irã manifesta-se esta luta exterior e interior. E o resultado de modo algum podia dar lugar ao otimismo.
O gnosticismo é também místico. A unidade com Deus e o ascetismo unem intimamente estas duas grandes tendências intelectuais. A vitória do homem sobre os instintos, por meio da mortificação da carne, e a fusão da alma com Deus constituem os dois princípios fundamentais do misticismo. Mas essas duas correntes possuem diferentes concepções da divindade. O gnóstico acredita na existência de um centro especial, fonte de toda a vida e de toda a atividade. O místico é panteísta. Ele sente e vê o seu Deus por toda a parte. O gnosticismo é uma filosofia, mas o misticismo é uma prática. No êxtase provocado pelo ascetismo, o místico sente que todas as suas faculdades corpóreas se extinguem. Imerge-se-lhe todo o ser com beatitude num mundo divino. O misticismo faz desaparecer todas as diferenças entre o Espírito e a Matéria, entre o Céu e a Terra. Tudo se diviniza, se une, se purifica. A religião liberta-se de todo o temor, de toda a angústia. Não há nenhum intermediário especial entre o homem e a divindade, mas uma constante elevação do espírito para Deus. O misticismo também não admite castigos exteriores, porque não acredita na existência de relações entre o senhor e o servo, entre Deus e o homem.
Da mesma forma que o gnóstico, o místico também é adversário dos dogmas, costumes e ritos religiosos. Um e outro são adversários de todas as formas de imposição e de opressão exteriores, de todas as formas de violência, da guerra e das carnificinas.
Para o gnóstico e o místico, como, aliás, para todo herege, a vida do homem, estabelecida pelos preceitos e dogmas da Igreja, é grosseiramente material e mecânica, e entrava a liberdade interior do espirito. Um grande número de seitas gnósticas foram comunistas ou, pelo menos, inclinaram-se sensivelmente para o comunismo.
O neoplatonismo relaciona-se intimamente com o gnosticismo e com o misticismo. Como o nome o indica, inspira-se em Platão, cujas ideias sobre as relações entre Deus e o mundo têm um caráter monoteísta e um tanto místico.
Platão é idealista, isto é, pensa que as ideias que temos das coisas e dos fenômenos exteriores constituem a verdadeira realidade, e que as coisas por si mesmas têm um caráter accessório, transitório. As ideias, para latão, não são simples reflexos do mundo exterior, mas entidades reais, as únicas, segundo ele, que existem independentemente de nosso cérebro. O que é racional é também real, fundamental, e permanente. O físico não é mais que a matéria inferior modelada pela realidade intelectual, e que não adquire importância senão na medida em que vai sendo incorporada pelas ideias. Este idealismo era, na Idade Média, denominado “realismo”, porque sustentava que as ideias tem uma existência real. Esse “realismo” desempenhou importante papel na escolástica, em oposição ao “nominalismo”, que afirma serem as ideias simplesmente reflexos, os “nomes” (em latim, nomina) das coisas exteriores.
Era bem natural, pois, que Platão considerasse a divindade a fonte de todas as ideias, como o elemento essencial do Universo. “Deus é o começo, o meio e o fim”. A alma do homem é uma parte da divindade. A divindade é o núcleo de todas as coisas e o sentido profundo da vida. É preciso amar e venerar a divindade no próprio homem, absorver-se em pensamentos e consagrar-se ao culto do belo, do bem e da verdade. O que vive para os prazeres só pode ter pensamentos de valor transitório. Mas aquele que voltar seus pensamentos para as coisas imortais e divinas, conseguirá incorporá-las e chegar à imortalidade e à felicidade perfeita.
Esta filosofia quase religiosa, bem próxima da teologia judaica e cristã, funde-se em Alexandria, que naquele momento é a sede da ciência heleno-oriental. com os elementos judaicos, gnósticos e místicos. Surge desta fusão um novo sistema filosófico: o "neoplatonismo”. O fundador desse novo sistema foi Filon, um contemporâneo de Jesus. O nome de Amonias Saca, está também ligado ao neoplatonismo porque um seus discípulos, o comunista Plotin, elaborou e fixou por escrito o neoplatonismo. Vale a pena lembrar que o futuro doutor da Igreja, Orígenes, foi também discípulo de Amonias Saca.
O direito natural foi a terceira fonte do comunismo da Idade Média. Todos os escritores religiosos, tanto ortodoxos como heréticos, nele se apoiam. O direito natural é a base da concepção da História de toda a Idade Média.
Nós já vimos, na primeira parte desta obra, que foi no seio da Grécia, dilacerada pelas lutas sociais da época, que surgiram o comunismo, a ideia da igualdade e a ideia da liberdade, constituindo a base sobre a qual se edifica a teoria do direito natural. Esta teoria invade o Império romano, chegando a exercer notável influência nos seus juristas. Mas o direito romano, em virtude do seu caráter individualista, determinado pela estrutura econômica do Império, não pôde assimilar a ideia comunista do direito natural. Com efeito: a teoria do direito natural, como foi formulada pelos juristas romanos, não encerra o princípio geral da liberdade natural de todos os homens.
Os doutores da Igreja, gregos e latinos, pelo contrário, adotaram esta ideia na sua integridade primitiva, sem, entretanto, torná-la obrigatória. No começo da Idade Média, ela ainda aparece deturpada pelas concepções dos juristas romanos. Mas, no final da Idade Média, no período caracterizado pelo desenvolvimento das cidades, do comércio e da indústria, vários pensadores tentam justificar a ordem social baseada na propriedade privada por meio do direito natural. E os cristãos, que se esforçavam para conservar, até na vida prática, as velhas tradições do direito natural e do Cristianismo primitivo, acusados de heresia, foram obrigados a refugiar-se na solidão dos claustros para poderem aí organizar uma vida baseada em princípios comunistas.
Examinemos, agora, as diferentes formas que a teoria do direito natural adquiriu, primeiro entre os juristas romanos, depois entre os teólogos cristãos.
Os juristas romanos dividiam o direito em três partes: o direito natural, o direito das pessoas e o direito civil. O primeiro é rudimentaríssimo. Não contém senão vestígios da sua origem heleno-estoica. Só as formas de atividade baseadas no instinto — como a união conjugal e a procriação — são ainda consideradas como parte do direito natural. Reconhecia-se, entretanto, que todos os homens nascem livres e que, logicamente, a escravidão é contrária às leis naturais. Nada se diz claramente sobre as formas econômicas e as relações de propriedade. Declara-se apenas que a segunda parte do direito — o direito privado ou direito das pessoas — criou a escravidão e as relações comerciais e políticas entre os povos (os juristas romanos pensavam que o direito criava as condições sociais). Como se vê, as instituições do direito das pessoas estavam em contradição com as do direito natural. Finalmente, o direito civil compreendia a legislação criada em cada país, seja pelos povos, seja pelos seus governos.
As sobrevivências do direito natural na teologia cristã da Idade Média são muito mais nítidas. As influências do Cristianismo primitivo e do comunismo helênico eram tão fortes que os padres da Igreja não conseguiram escapar-lhe aos efeitos. Eis como formulavam este direito natural:
No estado de natureza (estado natural, isto é, a Idade de Ouro, o Jardim do Éden antes do pecado original), os homens viviam de acordo com as leis naturais e divinas. Possuiam tudo em comum. Eram livres. Viviam em absoluta igualdade, sem nenhuma forma de opressão exterior, sem leis, sem Estado. Tal foi a primeira fase da moral humana.
Veio, em seguida, o segundo período. Surge a ambição. O homem sofre notável transformação intelectual. O desejo de lucro faz desaparecer, pouco a pouco, o estado de natureza (mito do pecado original). A Idade de Ouro desaparece, assim como o comunismo, a igualdade e a liberdade primitivas. (Adão e Eva são expulsos do Jardim do Eden). Desde então, o homem se sentiu só, abandonado, sem direção, e imergiu no caos e na anarquia. A Humanidade sai desta primeira crise moral graças à razão, que mostra aos homens o caminho a seguir, impõe mandamentos (o Decálogo) e regras de moral geral. Estas regras, embora menos simples que as do direito natural primitivo, permitem que o homem continue vivendo em liberdade, e que haja ainda igualdade relativa. Estas regras subjugam os apetites, estabelecem limites à sede de lucro e de posse e impedem a matança e a guerra de todos contra todos. Tal foi o segundo estado: o estado do direito racional.
Mas este estado tende a modificar-se. Possui também um caráter transitório. Com o aumento da população e com as dificuldades de subsistência consequentes desse aumento, os mandamentos da razão se vão tornando impotentes para refrear os apetites materiais, que ressurgem e que, finalmente, vencem a razão. A sede de domínio, a rapina, as carnificinas, abalam o direito racional até os alicerces. Desencadeia-se a luta de todos contra todos (Caim mata o irmão, funda uma cidade e um Estado, e implanta o regime da propriedade privada). Os fortes perseguem os fracos com violência tirânica e apropriam-se das melhores terras, A sociedade divide-se em dois campos antagônicos: de um lado, um reduzido número de ricos; de outro, uma formidável massa de pobres. A violência e a rapina abrangem toda a superfície da Terra.
Para acabar com semelhante estado de coisas, para tornar possível a existência de uma vida social ordenada e para proteger os pobres e os fracos contra a violência dos fortes, foi criado um direito positivo, o direito humano. É um direito rigoroso e severo, que já não contém o menor vestígio do direito natural e que só encerra uma insignificante parcela do direito racional. Ele cria um fundamento legal para a propriedade privada e o domínio dos poderosos, mas, simultaneamente, protege os fracos e os oprimidos. Esse direito impede a guerra de todos contra todos. Protege oS frutos do trabalho contra o roubo e a mistificação. Este direito afirma que o Estado e a propriedade foram instituídos para corrigir as consequências nefastas do pecado original e para atenuar as diferenças provenientes da desigualdade econômica. Ninguém poderá possuir nada de supérfluo, para que, ao seu lado, não apareçam indivíduos sem o necessário para viver. Enfim: a religião poderá influir no sentido de atenuar o rigor do direito positivo, amenizando a sorte dos oprimidos, por meio da disciplina e da caridade cristãs.
Esta concepção da evolução histórica do direito natural cristão, que parece muito mais elevada que a dos juristas romanos, revela, entretanto, nitidamente, a preocupação de justificar o direito positivo, isto é, o regime baseado na propriedade privada, na existência do Estado e na divisão da sociedade em classes.
Eis porque os partidários do comunismo não se mostraram dispostos a aceitar esta concepção e a reconhecer o direito positivo, a necessidade do Estado e da propriedade privada. Nela viram, pelo contrário, unicamente uma tentativa no sentido de adaptar os ensinamentos do Cristianismo aos interesses das classes dominantes.
Inclusão | 15/06/2015 |