República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada

Alexandre Babo


O Campo de Concentração de Sachsenhausen


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Para nós, ocidentais, que pela primeira vez contactamos com o mundo socialista, há constantemente a presença com o inesperado, com o diferente do «pensado» teoricamente nos longos anos de informação lida, dispersa, afastada da realidade humana que é uma sociedade. Há sobretudo o risco de uma apreciação incorrecta se desligarmos a visão de cada país do seu recente contexto histórico e, principalmente, do conjunto que é o «mundo socialista», o mundo que resultou, se expandiu, se unificou, na experiência base da Grande Revolução Russa de 1917, na edificação da União Soviética e do primeiro estado de operários e camponeses.

Ao contrário da propaganda do capitalismo e do anti-socialismo, nas suas variadas metamorfoses ocidentais (e não só), o mundo socialista não assenta em hegemonias de tipo imperialista, de exploração de povos por outros, mas exactamente no internacionalismo proletário, na solidariedade para com as classes trabalhadoras de todo o mundo e na ajuda mútua, origem dum novo mundo e, efectivamente, de um novo homem que forçosamente se está a forjar, conjuntamente com a alteração profunda das sociedades humanas.

A expansão e a forma de nascimento e crescimento do socialismo nesses diversos países são profundamente diferenciadas. Feitas de acordo com as realidades históricas, sociais, políticas, geográficas, étnicas, até económicas de cada um, não ignorando nunca essas realidades e as etapas certas de desenvolvimento e de escolha da via socialista. A Polónia, a Hungria, a Bulgária ou a RDA, embora integradas num todo, cujo eixo, não dominador mas dinamizador e catalizador, é a União Soviética, seguiram caminhos e formas completamente diferentes para atingir um objectivo comum — o socialismo. E se nos debruçarmos nas razões fundas dessas diversidades encontramos a verdadeira superioridade do marxismo-leninismo e da dialéctica materialista.

Julgo, pelo que vi na RDA, que nada há de mais infamemente calunioso que a mentira propagandeada pela reacção (num sentido muito lato) acerca da «exploração» e da «interferência imperialista» da União Soviética nos outros países socialistas.

E também seria profundamente injusto valorizar os êxitos espectaculares da República Democrática Alemã, em quase todos os sectores da vida política, social, económica, cultural e científica, esquecendo a ajuda e a solidariedade da União Soviética, isolar esses êxitos do «todo socialista» —, da integração socialista. Como também seria profundamente injusto considerar e valorizar apenas este aspecto, esquecendo a justiça, a inteligência, o sentido das realidades demonstrado, através de vinte e cinco anos, pelos dirigentes da República Democrática Alemã, pelo Partido Socialista Unificado, e todo o esforço heróico e de espantoso poder criativo do povo alemão, liberto da doença endémica do militarismo e da autocracia, disciplinadamente, organizadamente criador da sua nova e magnífica sociedade.

Através de todo o país, em contactos com dirigentes dos mais diversos sectores, com simples homens de trabalho, ouvi sempre a referência ao papel da União Soviética na fundação e desenvolvimento do seu país e encontrei os sinais da sua solidariedade em toda a parte.

E não encontrei e juro que ninguém encontrará, percorrendo a RDA, o mínimo sinal de interferência forçada da URSS sobre aquele país, o mínimo sintoma de um domínio extra-nacional, de uma vaga ofensa à soberania e independência da República Democrática Alemã.

Jamais serão esquecidos os milhares de vítimas do barbarismo nazi, que morreram nos campos de concentração fascistas. Na fotografia: o ex-campo de concentração de Sachsenhausen, hoje um lugar de comemoração e de recordação
Jamais serão esquecidos os milhares de vítimas do barbarismo nazi,
que morreram nos campos de concentração fascistas.
Na fotografia: o ex-campo de concentração de Sachsenhausen,
hoje um lugar de comemoração e de recordação

Num dos dias em que me encontrava em Berlim, fui com o meu grande amigo Karlheinz Bark visitar o campo de concentração de Sachsenhausen, situado nos arredores da pequena cidade de Oranienburgo, ao Norte de Berlim.

Karlheinz Bark fez parte da primeira delegação da RDA que, em Agosto de 1974, nos visitou em Lisboa, para lançamento das bases da Associação Portugal-RDA. Ele e Werner Manneberg, vice-presidente da Liga para a Amizade com os povos estrangeiros de Berlim, foram os grandes obreiros, não só da Associação, mas do estreitamento de relações fraternas entre os nossos povos. Foram eles, sobretudo, que pela sua simpatia, a sua compreensão, o seu espantoso amor ao nosso país, a sua cultura, a sua verdadeira formação socialista, conquistaram todos os que com eles contactaram e nos insuflaram a todos o desejo de bem conhecer o seu novo país, o estudar, o mostrar ao nosso. Foram eles que permitiram a nossa descoberta de tantos e tantos pontos comuns no nosso processo revolucionário, os que chamaram a atenção para caminhos e soluções de situações idênticas.

Que nós podemos e devemos mostrar na nossa terra.

Desde a primeira hora, conquistaram não só camaradas, mas verdadeiros amigos. Depois deles, muitos outros amigos fomos criando na RDA, mas estes dois são uma espécie de primeira pedra num edifício.

Karlheinz Bark é romanista, fala português correntemente, conhece a nossa história, a nossa literatura, a nossa cultura e julgo que, depois da sua terra, é Portugal a terra da sua verdadeira afeição. Trabalha na Academia das Ciências, em Berlim, e, como a maioria dos académicos que ali vive, faz parte dessa nova geração que o socialismo criou e nada tem a ver com a cristalização «cultural» dos areopagos académicos do mundo ocidental.

Werner Manneberg, aos dezassete ou dezoito anos, conheceu os horrores de Buchenwald, sobreviveu e colaborou desde os primeiros dias na construção do socialismo no seu país. Aos vinte e dois anos foi governador do distrito Cottbus, andou na campanha para a colectivização das terras. Um pioneiro tão jovem agora, à beira dos cinquenta, como nos anos duros de 45 e por aí adiante.

Dois homens com letra grande que vale a pena ter nascido para conhecer.

Não resisti a este parêntese, mas isto é também a RDA.

Foi Karlheinz quem me aconselhou a visitar o campo. Não basta ler, ouvir histórias, nem ver fotografias. Convém ir e dar, por momentos, vida e morte, horror e crueldade, sofrimento inenarrável, àquela terra, àquelas casas, àqueles fornos, àqueles sinais agora, felizmente, inertes da barbárie, da vergonha nazi. Por tudo e até porque é fundamental armazenar o ódio e o desprezo que qualquer ser humano tem que sentir pelo sistema que aquilo pariu e pelos seus executores.

À entrada do campo esperava-nos outro amigo que já visitou Lisboa em Novembro passado — Höffer. Ainda não tem sessenta anos. É um dos dirigentes do Comité anti-fascista da RDA Em 1933 foi preso e internado num campo de concentração. Depois aproveitou a liberdade, não para construir ou aumentar o seu quintal, mas para nas Brigadas Internacionais, na coluna Thàlmann, combater em Espanha contra o nazi-fascismo ao lado do sacrificado povo espanhol.

Perdida a batalha, seguiu a via dolorosa dos que conseguiam viver. Campo de concentração em França, entregue às autoridades nazis, ingresso num campo de concentração — justamente aquele — o de Sachsenhausen. la ser ele o meu cicerone. Ele que ali viveu (?!) durante cinco anos. Vive ali perto. Estive na casa dele com a mulher, o filho, a nora, uma neta, a conversar. Foi igualmente pioneiro, depois da libertação. Não está na inactividade, mas goza a serenidade calma de quem na vida cumpriu bem mais que o seu dever.

Tenho a impressão de que a proximidade do «campo» lhe é necessária. Da recordação, do objectivo quase visceral de não deixar esquecer. E a lembrança de tantos e tantos companheiros que viu matar, quando a vida valia menos que um fósforo aceso. O campo está como era — apenas não estão lá todas as casernas dos presos e nas torres de vigia, acima dos dois ou três metros da cerca de arame farpado, não estão os carrascos de metralhadora aperrada, prontos a matar ao primeiro gesto insólito. No grande largo onde começam as casernas, frente ao portão de entrada, encontram-se o que podemos chamar os «canteiros da morte».

São uma espécie de dois grandes canteiros, de cem metros por dez, mais ou menos, e em vez de terra vulgar há uma mistura de terra e de pez, para que se agarre bem às solas das botas, para que tornem o andar difícil, doloroso. Era ali que os nazis praticavam uma espécie requintada de jogo da vida e da morte. Os prisioneiros eram obrigados a correr naquela argamassa negra, de lá para cá, de cá para lá, uma, duas horas, três horas. O jogo era a resistência física, o teste de aptidão ao trabalho, de justificação do naco de pão e do caldo. Os que eram vencidos, morriam por si ou... eram abatidos.

Os outros iam para o trabalho. O campo tinha sido edificado ali, porque ali se instalara uma indústria de material pesado de guerra. Os nazis tinham o senso económico. Os campos eram de extermínio, mas também de aproveitamento de mão-de-obra gratuita. Enquanto o corpo resistia, eles contribuíam para o esforço guerreiro do «Grande Reich».

A disposição das casernas era de forma a que a entrada ou saída de cada uma delas fosse detectada sempre pelas torres de vigia. Um grande, um imenso leque, onde estiveram centenas de milhares de seres humanos. Onde os nazis, por este ou aquele processo, mataram 200 mil homens, 100 mil dos quais eram prisioneiros de guerra russos, a quem negavam o mínimo de protecção das leis internacionais.

Ali está também a «enfermaria». O Höffer contava-me que alguns presos morriam de doença, escondendo-a até ao último momento, porque ir à enfermaria e mostrar uma doença era a condenação imediata. A doença era anti-económica nos campos nazis.

Depois, vêm os restos dos fornos onde os corpos eram queimados, os locais das câmaras de gás, as salas de tortura e os objectos mais usados para ela. Não requintadamente modernos e técnicos — as vidas não «valiam tanto». Eram grosseiros e brutais como os da Inquisição.

Havia também os locais de assassinato «simpático», mais humano, para que o desgraçado não soubesse que era o fim. Numa sala — um local vulgar para medir o paciente. Um pouco diferente, no entanto, do habitual. Há a base e há uma paleta móvel que corre numa calha onde estão indicados os metros e os centímetros. Mas essa calha é aberta. O paciente encostava o corpo à parede onde se abria a calha, colocavam-lhe a paleta junto à cabeça. Mas não liam a medição indicada e o paciente não chegava a saber quanto media, o último olhar de espanto esfumado no barulho do tiro certeiro que lhe perfurava o crânio — bala entrada pela nuca e saída em pasta de sangue e o azul dos olhos.

Não estão lá os carrascos, os assassinos que ordenavam a morte ou a executavam. Apenas os seus retratos, as pistolas usadas, os sítios, as recordações, a raiva de todos nós a escorrer pelos retratos, a cuspir-lhes na memória ou nos sítios onde se acolhem, onde vivem como gente, como se realmente fossem gente.

Junto ao campo há um museu, um memorial da criminologia nazi-fascista por esse mundo fora.

Saio aos gritos cá por dentro. Não é vingança, é justiça. E mais, mais que justiça, mais que até vingança legítima. É a necessidade imperiosa de que ninguém ignore, ninguém esqueça. Que o veneno fascista para sempre seja exterminado da terra onde flor dê fruto, onde homem se procrie.

E é necessário ver isto, lembrar isto e outras coisas para compreender a RDA — o seu nascimento, crescimento e a esplendorosa sociedade humana que já é o fruto que se lhe adivinha.


Inclusão 16/02/2015