Sociologia ou apologética?

Astrojildo Pereira

1.º de maio de 1929


Escrito: nos fins de março de 1929, a bordo do navio para a União Soviética.

Primeira edição: A Classe Operária, 1º de maio de 1929.

Fonte: PEREIRA, Astrojildo. Sociologia ou apologética. In: PEREIRA, Astrojildo. Ensaios históricos e políticos. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979, p. 163-174.

Transcrição: Vinícius Azevedo.

HTML: Lucas Schweppenstette.


I – O SOLDADO VERMELHO DE JOHN REED

Só agora tivemos ocasião de ler o livro famoso do Sr. Oliveira Vianna, Populações meridionais do Brasil, cuja segunda edição data já de 1922. E compreendemos facilmente a fama do livro: todo ele visa justificar, histórica, política e socialmente, o domínio dos fazendeiros, dos grandes proprietários de terras, daquilo que o autor chama, com admiração, a “aristocracia rural”. É antes obra de apologética, vasada em estilo colorido e cantante, com um vistoso verniz científico, do que de sociologia, de análise objetiva, de estudo realista.

“Para a perfeita compreensão do passado”, escreve o autor, no prefácio, “a investigação cientifica arma hoje os estudiosos com um sistema de métodos e uma variedade de instrumentos que lhes dão meios para dele fazerem uma reconstituição, tanto quanto possível, vigorosa e exata”. Isto é verdade pura. Mas como foi ela praticada pelo autor? De que instrumentos lançou mão? Quais os métodos de que usou na investigação do passado brasileiro? Ele mesmo os aponta: 1) os textos e documentos escritos; 2) a antropogeografia; 3) aantropo-sociologia; 4) a psicofisiologia; 5) a psicologia coletiva; 6) a “admirável ciência social” de Le Play... Eis tudo. E há de tudo, com efeito, nesse bazar de instrumentos e métodos científicos, com os nomes “gloriosos” dos seus inventores ou criadores – Ratzel, Gobineau, Lapouge, Ammon, Ribot, Serge, Lange, James, Le Bon, Sighele, Tarde, o referido Le Play, H. de Tourville, Demolins, etc., isto é, os Oliveiras Viannas da Alemanha, da França, da Itália, da Inglaterra, dos Estados Unidos.

Como diria aquele rude guarda-vermelho do livro de John Reed: nós não somos sábios e confessamos lisamente a nossa ignorância de todos esses ilustríssimos sujeitos; mas o que sabemos, firmemente, é que este mundo está dividido em duas classes – a classe dos exploradores e a classe dos explorados – e que tais eminentes sábios estão do lado da classe dos exploradores, a cujo serviço colocam a sua ciência. Como acontece entre nós com o sábio Oliveira Vianna.

Ora, depois daquela nomenclatura de ciências e sábios, logo assaltou-nos a desconfiança: com certeza não aparecem aqui nem o Marx nem o Engels, nem tampouco se aponta o método marxista de investigação, o de interpretação materialista, o de luta de classes... Desconfiança justificadíssima. Marx e Engels parece que jamais existiram para o sociólogo rural das Populações meridionais. Em todo o volume só existe uma referência direta à luta de classes. Mas, estranha coisa! para negar a sua importância – “entre nós, na história do Brasil”.

Eis o que se lê à página 180: “Toda a evolução grega, toda a evolução romana, toda a evolução medieval, toda a evolução moderna se fazem sob a influência fecunda (!) das lutas de classes. Em nossa história, tais conflitos são raríssimos. Quando surgem, apresentam invariavelmente um caráter efêmero, ocasional, descontinuo, local”. E quais são esses “conflitos raríssimos”? O próprio autor responde: “É a luta dos fazendeiros paulistas contra os jesuítas, na questão dos índios. E a luta dos oligarcas maranhenses contra os comerciantes monopolistas, na revolução de Beckman. É a luta dos nobres da terra contra os”mascates”, em Pernambuco. E a formidável coligação paulista contra os reinóis de Nunes Viana, na “guerra dos emboabas”. São as pequenas e ardentes lutas locais, no Rio, entre os proprietários de terra, ciosos dos seus privilégios políticos, e a peonagem enriquecida, refugada do poder e da administração”. Mesmo essas lutas, que não podiam ser ocultadas, são diminuídas “nos seus efeitos” e qualificadas de “inteiramente negativas em relação à evolução política e social da nacionalidade” (página 181).

II – UMA REGRA SEM EXCEÇÃO

É anticientífico, e além disso inútil, querer pôr o Brasil fora da regra universal da luta de classes. Não há exceção nesta regra. E anticientífico porque não é verdadeiro. E é inútil porque vãos aparecem todos os esforços por ocultar a realidade. Vamos servir-nos do próprio livro do Sr. Oliveira Vianna para comprovar o que dizemos. Veremos que a luta das classes e subclasses enche todos os períodos históricos estudados nas Populações meridionais. Certo, nem sempre as classes e subclasses mostram contornos definitivos e inconfundíveis, em suas lutas mútuas. Quando, porém, isso não acontece, é no desenvolvimento mesmo dessas lutas que tais contornos se precisam e definem.

Em primeiro termo há que apontar a luta fundamental e genérica, que se inicia com a descoberta cabralina: entre os representantes da metrópole, donatários, sesmeiros, capitães-mores, latifundiários, bandeirantes, mineradores, senhores de engenho, fazendeiros, de um lado, e os silvícolas do outro lado. Que foi esta luta secular, obstinada, feroz, cruel, travada desde os primórdios da nacionalidade? A que objetivos visava ela? Um único: a posse da terra e das riquezas nela contidas. Objetivos puramente econômicos. Luta de classes da boa, evidente, caracterizada, autêntica.

Na página 20 do volume em apreço encontra-se esta observação interessantíssima: “Dissemos que no IV século a população brasileira está completamente ruralizada. Realmente, essa necessidade forçada da presença permanente no latifúndio agrícola acaba gerando, no seio da sociedade colonial, um estado de espírito, em que o viver rural não é mais uma sorte de provação ou de exílio para a alta classe, como senhora; mas um sinal mesmo de existência nobre, uma prova até de distinção e importância”.

Que significa tudo isso sendo a consolidação da luta contra o silvícola, a consolidação da posse da terra pelos “senhores” vindos de além-mar ou seus descendentes? E esse “estado

de espírito”, decorrente de um fato econômico, nada mais é que a consagração moral (“moral” de latifundiários, bem entendido) daquela consolidação da posse sobre a terra conquistada, a ferro e a fogo, aos índios dizimados em nome de S. M. Cristianíssima.

Naqueles tempos, escreve o autor, “Cada curral avançando no deserto é uma vedeta contra a selvageria. Cada sesmaria, um futuro campo de luta. Cada engenho, uma fortaleza improvisada. Dentro dos solares as flechas ervadas dos índios e os mosquetes dos mamelucos e dos cabras estão sempre prontos, na previsão dos assaltos” (página 193).

Porém, continua, “Dissipado o perigo aborígene, e à medida que a civilização avança para o interior, começa a surgir um novo perigo. São os quilombolas” (página 194). Isto é, são os bandos de negros escravos fugidos, que lutam, a seu modo e segundo as possibilidades da época, contra a classe opressora dos “senhores”.

O perigo aborígene estava conjurado, a propriedade dos latifúndios estava consolidada, a “aristocracia rural” organizava a grande exploração da terra na base do braço escravo importado da África. Ora, a opressão gera a luta, inevitavelmente. Os negros lutaram. Luta, aqui também, cruel, feroz, obstinada e secular. Variando de meios, de processos, de armas, ela durou desde a chegada às terras brasileiras da primeira leva de escravos até 1888. Autêntica luta de classes, que encheu séculos da nossa história, e teve o seu episódio culminante de heroísmo e grandeza na organização da República dos Palmares, tendo sua frente a figura épica de Zumbi, o nosso Spartacus negro.

A República dos Palmares forma uma das mais belas páginas da história do Brasil, e Zumbi é o tipo magnifico, que os historiadores do futuro (nesse tempo, que não vem longe, os Oliveiras Viannas terão desaparecido) hão de colocar muito acima dos Vieiras de Melo, Domingos Jorges e os outros “heróis” da “aristocracia rural”, como aquela gloriosa fera chamada Bartolomeu Bueno do Prado, enviado pelo governador Gomes Freire para destruir o “terrível quilombo” do rio das Mortes. Compare-se a figura de Zumbi com a desse “nobre” e, além de “nobre”, “Bueno”, cuja proeza foi assim descrita pelo velho Pedro Taques, descendente e historiador da Nobiliarquia paulistana: “Bueno desempenhou tanto o conceito que se formou no seu valor e disciplina de guerra contra os índios e pretos fugidos, que, depois de organizar a sua força e atacar o quilombo, voltou em poucos meses apresentando 3.900 pares de orelhas dos negros que destruiu” (transcrição das Populações meridionais, página 194).

Notemos, de passagem, que é desse “nobre” e “bravo” Bartolomeu que descendem os Buenos e Prados de hoje, os grandes fazendeiros e potentados da “aristocracia rural” que ainda domina em São Paulo e Minas.

Índios e escravos contra os Prados e Buenos de ontem. Colonos e proletários contra os Buenos e Prados de hoje. Sempre, desdobrando-se de etapa em etapa, a mesma luta de classes fundamental.

III – “URBANOS” CONTRA “RURAIS”

Temos também a luta da burguesia nascente contra a aristocracia rural. A leitura do livro do Sr. Oliveira Vianna não deixa a menor dúvida a este respeito, refutando, de tal sorte, a sua própria teoria da inexistência da luta de classes no Brasil. Vejamos.

Página 105: “Em certos pontos, como no Rio ou em São Vicente, esses aristocratas territoriais revelam tendências sensivelmente oligárquicas. Nada mais curioso do que acompanhá-los nos seus esforços para limitar e concentrar nas suas mãos opulentas os privilégios políticos, de modo a fazê-los uma consequência da propriedade da terra. No Rio, de 1630 em diante, são excluídos do direito de voto os que moram no sertão, os mestres de açúcar, feitores e pessoas que vivem nos engenhos; os regulares; os taverneiros e os vendeiros. Só a fidalguia territorial pode exercer o direito eleitoral”.

Os taverneiros e os vendeiros da cidade não se conformam com esse privilégio, que os exclui da administração. Protestam contra ele. Lutam encarniçadamente. “Excluídos da representação política da câmara, os mercadores lusitanos protestam. Não vêem motivo, dizem, para essa exclusão”. (Página 105).

Em Santos é a mesma coisa. Excluem-se do Senado e da Câmara os “negociantes de vara e côvado”. Todos “os elementos populares são excluídos do governo: a capacidade política vai prender-se diretamente ao domínio rural”. (Página 106).

Que visa a nobreza nessa luta contra a burguesia nascente? “Em tudo isso o que se sente”, explica o autor, “é um vigoroso trabalho de depuração e filtragem, tendente a eliminar do corpo político os que não são proprietários de terra”. (Página 106).

Isto é o que se passa nas cidades mais importantes, onde aparece, e vai pouco a pouco aumentando de força econômica, uma burguesia comercial típica. No interior do país, ela é logo esmagada, no nascedouro. “Com a sua onímoda capacidade produtora(1), o grande domínio impede a emersão, nos campos, de uma poderosa burguesia comercial, capaz de contrabalançar a hegemonia natural dos grandes feudatários territoriais”. (Página 134).

A luta se prolonga, século em fora, entre “urbanos” e “rurais”. Com a chegada de Dom João VI ao Brasil, a burguesia urbana tomou grande impulso, com “os altos lucros do comércio estrangeiro” estabelecido por efeito da lei de abertura dos portos. “Essa classe, de origem e caráter puramente urbanos, contrasta vivamente, nos salões e corredores do pago, com os orgulhosos e austeros senhores territoriais, descidos, há pouco, do planalto paulista e das montanhas mineiras, e intangíveis nos seus pundonores de independência e hombridade(2). De 1808 a 1831 ela se faz uma das grandes forças determinantes da nossa história geral. Nela é que se vão recrutar os”recolonizadores” mais insolentes e virulentos. No fundo, a luta entre os partidários da “recolonização” e os “liberais” brasileiros não sendo uma luta entre “burgueses” e rurais”, isto é, entre essa nova nobreza das fazendas, medularmente brasileira”. (Página 31).

Entre essas duas classes rivais uma outra se intromete, igualmente cobiçosa de poder. “E a classe dos fidalgos e parasitas lusos, formigantes nos recessos do pago, em redor do rei, e, como ele, foragidos aos soldados de Junot”. (Páginas 31-32). Continua o autor, na mesma página: “Essas três classes, de 1808 a 1822, buscam preponderar no país e na corte. Encaram-se, por isso, no pago, cheias de prevenções reciprocas e animosidades indissimuláveis. Os primeiros conflitos coriscam, rápidos, naquele ambiente de hipocrisias e cortezanismos”.

IV – DIFERENCIAÇÕES E ACERCAMENTOS

A luta de classes manifesta-se por formas diversíssimas. Ela provoca diferenciações e contradições internas, dentro de uma mesma classe, de onde surgem subclasses, subdivisões, categorias e grupos antagônicos; assim como, em sentido contrário, propicia acercamentos, alianças, acordos entre subclasses e categorias sociais diferentes. São movimentos táticos, conscientes ou não, sempre ditados pelo jogo dos interesses em causa.

Numerosos exemplos dessa natureza encontram-se nas páginas das Populações meridionais. Citaremos alguns.

Entre os latifundiários de origem fidalga e os de origem plebeia o conflito dura “todo o período colonial” (página 13). Conflito “vivace”, conflito “interessantíssimo”, assim o qualifica o autor, e que se pronuncia, do III século em diante, pela “ascensão dessa camada (a de origem plebeia), que acaba, por fim, por submergir a primeira (a de origem fidalga) – e absorvê-la”. (Página 14).

Não tem outra significação o antagonismo de poder – isto é, de interesse – entre a “aristocracia territorial” e os “delegados políticos da metrópole”, durante os dois primeiros séculos de colonização. Eis como se expressa o autor a este respeito: “Durante o I e II séculos, essa vigorosa aristocracia territorial, que vimos florescer em São Vicente e São Paulo, mostra-se senhora de um prestígio, que contrabalança e supera o dos próprios delegados políticos da metrópole. Estes, mesmo os mais graduados, armados embora de poderes amplíssimos, sentem-se diante desses magnatas como que amesquinhados. São quase sempre forçados a contemporizar e a transigir, para evitar desautorações dolorosas”. (Página 57).

Também esse conflito dura séculos, decaindo a preponderância dos “caudilhos rurais” em seguida à guerra dos “emboabas”. Causas econômicas determinaram a sua origem, o seu desenvolvimento e o seu desfecho. O Sr. Oliveira Vianna, naturalmente sem dar nome aos bois, é no entanto preciso neste ponto. Eis o que ele escreve: “O poder colonial, que até então se havia mostrado transigente, longânime e mesmo pusilânime, muda subitamente de atitude e toma, daí por diante, para com eles [os”caudilhos rurais”], nos seus centros de maior influência, uma conduta inteiramente oposta: ataca-os de frente, rijamente, com intrepidez e decisão, no intuito óbvio de dominá-los, esmagá-los, triturá-los”. “São dois séculos quase de combate tenaz e vigoroso, de luta árdua e brilhante entre a caudilhagem territorial e o poder público”. (Páginas 225-226).

O formidável e crescente poder econômico dos latifundiários dera-lhe a preponderância nos primeiros tempos. Mas depois descobrem-se as minas de ouro e diamantes, e é nelas que a metrópole se firma para derrubar o poderio arrogante dos “caudilhos rurais”. E o que se lê na mesma página (226): “Essa reação contra o caudilhismo rural somente se inicia no III século. O motivo desse retardamento é que só nos fins do II século e nos começos do III se descobrem as minas de ouro e de diamantes – a velha aspiração da coroa portuguesa”.

Repete-se aqui, na terra americana, dentro do ambiente americano, luta semelhante à luta secular da realeza contra os senhores feudais, em terras europeias. O Sr. Oliveira Vianna vê mesmo, nos potentados rurais do Brasil literalmente, certos “pendores feudalizantes” (página 305). E diz: “Enquanto não se opera a expansão para as minas, o governo metropolitano os acaricia e festeja; depois, descobertas as minas e abertos que foram os grandes vieiros auríferos e diamantíferos, o conflito deflagra, violento e fatal, entre os caudilhos e a autoridade colonial. Esta defende os privilégios do rei, que os caudilhos ameaçam”. (Página 306).

Ainda depois da Independência, em meados do século passado, essa luta continua, se bem que noutro plano. Aqui o poder da realeza, poder central, ataca por meios diversos, diretos e indiretos, o poder local dos latifundiários. Mas, no fundo, a luta é sempre a mesma. “Na reação do poder central, operada em 41, contra a oligarquia provincial, o que o poder central tem realmente em vista é, em última análise, o caudilho local, isto é, o potentado das matas e dos sertões, o senhor de grandes domínios, o grande chefe de aldeia. E a ele, com o seu clã político de eleitores ou o seu ad marcial de capangas, que o poder central visa, na sua reação; como visa ao poder provincial, durante o período regencial, de 35 a 40; como visa à metrópole, na sua reação do III século”. (Página 247).

V – CIÊNCIA “PERIGOSA”... PORQUE VERDADEIRA

Em todos esses conflitos entre classes, subclasses e categorias sociais, registrados, apesar de tudo, nas páginas das Populações meridionais, o que se vê, com objetivo final, é sempre a luta contra o poder ou pelo poder – o que significa, precisamente, a forma aguda da luta de classes. Já a existência do poder, por si mesma, é uma prova da coexistência de classes antagônicas, seja em que estágio for da sociedade. Ora, a coexistência de classes antagônicas quer dizer luta entre essas classes no sentido de resolver os antagonismos de interesses que as separam.

Tarefa, portanto, completamente frustrada foi a do autor, pretendendo, no seu estudo sobre a formação das Populações meridionais do Brasil, negar que a história do Brasil seja também, toda ela, uma história de luta de classes. Negado embora, ou apoucado, o fato reponta, incoercível, a cada capítulo da obra.

Plena razão – ditada pelo instinto profundo de classe – tinha o soldadinho vermelho de John Reed:

— Sim, senhor; o senhor é um grande sábio e eu sou um simples ignorante; mas... neste mundo existem duas classes…

O Sr. Oliveira Vianna, “grande sábio” brasileiro, apoiado por “iminentes sábios” universais, todos desdenhosos, como ele, da “ciência perigosa” de Marx e Engels, enceta a publicação de vasta obra de sociologia, toda ela destinada a provar que no Brasil não “existe” a luta de classes – nunca “existiu” no passado e, por conseguinte, não deve “existir” no presente… Aparece o primeiro volume: Populações meridionais, Sim, senhor; mas... o que ele prova, no fim de contas, é a exatidão da teoria de Marx e Engels, é a verdade científica do marxismo e a falsa, ou pelo menos falha, ciência de Ammon, Ribot, Sighele, Le Play & Cia., e dele próprio, Sr. Oliveira Vianna, inclusive.

VI – FILOSOFIA DE CLASSE

A segunda edição de Populações meridionais – é a que temos em mão – data de 1922. Seu prefácio, porém, está datado de novembro de 1918, o que faz supor tenha o livro saído dos prelos, em primeira edição, nos primeiros meses de 1919. Teria sido escrito, pois, provavelmente, durante os últimos anos da guerra e primeiros da Revolução Russa, 1916, 1917, 1918…

Período de agudíssima luta de classes no mundo inteiro. No Brasil também – desde o movimento de massas, caótico, mas avassalador, que em São Paulo, no mês de setembro de 1917, abalara os alicerces em que assenta o seu poder a velha “aristocracia rural” descendente do “nobre” Bartolomeu Bueno do Prado.

Não é crível que a coincidência dessas datas seja pura obra do acaso. Porque ela explica, visivelmente, a filosofia do livro do Sr. Oliveira Vianna. Filosofia reacionária, antirrevolucionária, antiproletária da primeira à última linha. Que conclusões, com efeito, resultam da exposição e da argumentação de Populações meridionais? Elas são fundamentalmente três, encadeadas entre si, e aparecem com uma finalidade eminentemente política. Vejamos.

1) O postulado da não-existência da luta de classes na formação histórica e social do Brasil. Que significa isto? Significa o seguinte: que o Brasil é um país “diferente” dos outros; que a luta entre as classes em nada contribuiu para a formação do povo brasileiro; que não há, entre nós, a tradição da luta de classes; que a luta de classes, portanto, é um fenômeno social antibrasileiro; que, finalmente, aqueles que no Brasil estudam e pretendem resolver os problemas sociais colocando-se no ponto de vista da filosofia marxista – esses tais não têm nenhuma razão de ser em “nossa” terra, são estrangeiros todos, senão de nascimento, pelo menos de espírito, e devem ser exterminados do “nosso” convívio, como loucos e visionários, e demais disso perturbadores da “brandura” de métodos com que a história vai construindo, nesta parte do mundo, uma grande nação…

2) Da negação da luta de classes decorre, naturalmente, a teoria do Estado. E o que o autor chama a “intelectualização do conceito do Estado”, isto é, “o conceito do Estado na sua

forma abstrata e impessoal” (página 313). Estado fora das classes, acima das classes, superior às classes... Mas o mais curioso é mostrar o autor que o povo brasileiro não possui essa noção “intelectual” do Estado. “Temos da autoridade pública”, escreve ele, na mesma página, “uma visão ainda grosseira, concreta, material – a visão que as suas encarnações transitórias nos dão. Não lhe elaboramos uma visão intelectual, genérica, já sem a marca das impressões sensoriais”. E como não possuímos essa noção, o Sr. Oliveira Vianna a erige em ideal supremo da nacionalidade. É preciso, doutrina ele, “fundir moralmente o povo na consciência perfeita e clara da sua unidade nacional e no sentimento profético de um alto destino histórico” (página 315). Ora, conclui, “esse alto sentimento e essa clara e perfeita consciência só serão realizados pela ação lenta e contínua do Estado – um Estado soberano, incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional” (mesma página).

3) Estado, porém, que deve estar nas mãos dos fazendeiros de café, descendentes e herdeiros da velha “aristocracia rural”, que tem felizmente presidido à formação histórica e social do Brasil...

Tal a ideia dominante, insistente.

Página 61: “... o grande domínio agrícola se erige, na sociedade vicentista, como a causa e o fundamento do poder social. Nele descansa o seu prestígio a nobreza da terra. É o único vieiro da fortuna. E a condição principal da autoridade e do mando”.

Página 24: “Este possante senhor de latifúndios e escravos, obscurecido longamente... no interior dos sertões, entregue aos seus pacíficos labores agrícolas e à vida estreita das nossas pequenas municipalidades coloniais – somente depois da transmigração da família imperial, ou melhor, somente depois da independência nacional, desce das suas solidões rurais para, expulso o luso dominador, dirigir o país”.

Página 35, onde se diz tudo, em síntese clara: “Depois de três séculos de paciente elaboração, a nossa poderosa nobreza rural atinge, assim, a sua culminância: nas suas mãos está agora o governo do país. Ela é quem vai daqui por diante dirigi-lo. – É esta a sua última função em nossa história. – Dela parte o movimento pastoril e agrícola do I século. Dela parte o movimento sertanista do II século. Dela parte o movimento minerador do III século. Nela se apoia o movimento político da independência e da fundação do império. Centro de polarização de todas as classes sociais do país, a sua entrada no cenário da alta política nacional é o maior acontecimento do IV século”.

Tal a filosofia política do livro.

Filosofia a serviço dos latifundiários e fazendeiros que ainda dominam o Brasil.