A senilidade do capitalismo
(entrevista à Revista Princípios)

Samir Amin

Fevereiro de 2002


Primeira Edição: ....

Fonte: CITAR A FONTE

Transcrição: COLOCARNOME

HTML: Fernando Araújo.

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Samir Amin é um dos mais prestigiados pensadores marxistas da atualidade. Intelectual e economista egípcio, diretor do Fórum do Terceiro Mundo em Dakar (Senegal) e do Fórum Mundial das Alternativas, tem suas teses nos campos da teoria do desenvolvimento econômico, história, sociologia, cultura e ciências sociais em estudo e debate por todo o mundo. 

Amin expressa uma crítica fundamentada à globalização neoliberal. Defende que se contraponha à utopia reacionária da globalização neoliberal o projeto de um sistema mundial policêntrico. Afirma que as políticas neoliberais fracassaram tanto no terreno social quanto econômico. As políticas neoliberais, identificadas com o seu projeto de globalização, estimularam a criação de blocos regionais sob a égide do grande capital financeiro. Essa prática tem demonstrado que os problemas dos povos, em vez de se resolverem, agravam-se – porque as políticas neoliberais fomentam o divisionismo e ampliam as divergências entre os países periféricos. 

Por outro lado, essa estratégia contribuiu para tornar mais evidente a necessidade de uma globalização da unidade, da solidariedade. 

As obras de Samir Amin estão traduzidas em muitos idiomas. Dentre elas destacam-se: O desenvolvimento desigual: ensaio sobre as formações sociais do capitalismo periférico;   O Intercambio Desigual e a Lei do Valor;   A acumulação em escala mundial;    Classes e nações no materialismo histórico. 

Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2002, durante o 2 ° Fórum Social Mundial em Porto Alegre (RS), pela revista Príncipios. Manteve-se o tom coloquial a fim de não prejudicar a autenticidade do discurso de Samir Amin, um intelectual revolucionário habituado a expressar conceitos e idéias profundos em linguagem muito simples. 
Por Pedro de Oliveira

O neoliberalismo – a atual fase do capitalismo 

Samir Amin – O capitalismo entrou em uma nova fase do seu desenvolvimento – e o imperialismo (o estado supremo do capitalismo) também. O caráter permanente do capitalismo desde as suas origens e em sua expansão mundial é dividido em fases sucessivas, com suas características próprias. Esse processo inclui as relações entre o conteúdo universal e a periferia, com suas funções específicas em cada uma das etapas do desenvolvimento capitalista. Em todas as fases anteriores dos imperialismos (pois o imperialismo sempre esteve no plural) havia conflitos violentos que ocuparam, em grande medida, todo o cenário histórico. 

Atualmente há algo novo: há um imperialismo coletivo – dos EUA, da Europa e do Japão. Esse processo se dá de tal forma que – no entanto – nem o capital nem a burguesia se tornam transnacionais, pois o capital transnacional e a burguesia transnacional sempre tiveram raízes em um país do centro. Não há nem mesmo um capital transnacional europeu – há um capital transnacional britânico, francês, alemão, mas não europeu. E, no entanto, há suficientes interesses comuns para governar o mundo, no conjunto do sistema mundial, a tal ponto suas contradições e seus conflitos se apresentam como secundários. 

Defendo a tese de que entramos numa fase de um imperialismo coletivo . E por que existe esse imperialismo coletivo ? A hipótese que levanto para provocar a discussão é a seguinte: até há uns 30 anos, o grau de centralização do capital era tamanho que uma grande empresa, para se firmar como tal, deveria ser capaz de levar vantagem sobre a concorrência oligopólica. Não estou falando da concorrência que consta nos manuais do capitalismo imaginário e do discurso dos líderes, mas num grande mercado nacional – quer seja o mercado dos EUA, o maior, ou então os mercados da Alemanha, da França, da Grã-Bretanha, talvez até do Mercado Comum Europeu. O tamanho do mercado para o qual as grandes empresas devem-se direcionar para entrar no jogo é um mercado de centenas de milhões de compradores solventes potenciais. Seja isso para uma nova marca de carro ou de outra mercadoria, com exceção dos produtos de consumo mais banais, mais comuns. E para que essas empresas consegam impor-se num mercado desse tamanho passam por uma espécie de “torneio”. Primeiro há o “torneio” nacional, do qual sai um vencedor, que irá enfrentar o mercado internacional. 

O capitalismo procedeu dessa forma durante séculos, até há uns 30 ou 40 anos. Agora há uma fonte de informações ditadas pelas escolas norte-americanas. É preciso, de vez em quando, verificar o que preconizar para a gestão dos negócios – não para se deixar impressionar pela inteligência ou pela profundidade da análise, mas pelo tipo de raciocínio e de informação que desenvolvem. E o que se descobriu? Uma grande empresa deve ganhar a batalha num mercado constituído de “n” compradores eventuais: mil milhões – mais do que a população dos EUA e da Europa somadas. São todos juntos que participam do Mercado Mundial. Dito de outra forma, a multiplicação da centralização do capital deu um salto qualitativo e o “primeiro torneio” – o das eliminatórias nacionais – não existe mais. 

Agora tudo acontece pela Internet. As grandes empresas que surgem com novos produtos lançam-se diretamente no mercado mundial pela Internet. Há a consciência de uma guerra de negócios. Assim, sabe-se que a tarefa do capital e da burguesia transnacionais, agora, é administrar coletivamente esse Mercado Mundial, o que não os impede de se destruírem entre si. Mas é a regra do capitalismo, seja no mercado nacional ou em qualquer outro mercado. Essa é a novidade. Vivemos sob esse imperialismo coletivo

A senilidade do capitalismo e a nova direita 

O que chamamos de uma nova direita compreende os social-democratas e os socialistas que se formaram com o neoliberalismo e a atual “globalização”. Defino essa nova direita como a adesão coletiva ao Mercado Mundial, regida por dois princípios: o neoliberalismo e o imperialismo. 

Como se pode gerir coletivamente esse Mercado Mundial? Nessa questão surgem dois aspectos: o caráter senil do capitalismo e a necessidade de gerir o Mercado Mundial com uma violência inédita e cada vez maior – devido à característica senil do imperialismo coletivo. 

Primeiramente, analisemos esse sistema, senilizado. Em torno disso surgiram estudos, há uns 30 anos, a respeito do capitalismo que apresentava características novas, e tardias. Foram feitas boas análises, por exemplo, a respeito da crítica à globalização atual, ou a leitura crítica da atual revolução científica e tecnológica. 

Há também um discurso dominante, do poder, a respeito da revolução tecnológica, que se proporia a resolver todos os problemas da humanidade, etc. Essa revolução tecnológica decompõe de forma atual a organização do trabalho. Ela não aboliu as classes, mas decompôs as formas internas da organização das classes e as recompõe. Estamos num período impreciso, de onde decorre a fraqueza, porque as classes decompostas ainda não foram recompostas. Portanto, é um momento favorável a uma ofensiva do capital. Houve o financiamento (etc) com várias nuances. Acrescento as características de senilidade, principalmente em dois níveis mais importantes. Um relaciona-se a essa revolução científica e tecnológica, pois todas as revoluções científicas e tecnológicas internas, desde a primeira Revolução Industrial e Têxtil, a construção de estradas de ferro, o petróleo, o automóvel, o avião, a eletricidade, tudo deslocava o trabalho direto e indireto da produção e da média da produção, o que significa que tudo reduzia o emprego a uma posição relativa à produção final, mas exigia maior relação informativa e do emprego no setor forte, o que dava ao capital um meio de tomar consciência da realidade. 

O capital é a propriedade do capital , e a propriedade dos meios de produção segue cada etapa da Revolução Industrial e têxtil. O controle tornava-se cada vez mais forte e definido pelos pedidos desse sistema de produção. A atual revolução tecnológica e científica tem uma natureza nova, por se apoiar em dois ramos novos: a informática e a genética. As duas permitem um aumento gigantesco da produtividade. Deve-se examinar essa revolução com todos os perigos que comporta, pois suscita uma questão: produzir o quê? para fazer o quê? Não podemos comemorar essa característica nova, que levou a uma fase com um grau de conhecimento científico, que permitiria estabelecer outras relações sociais, desenvolver valores e riquezas, que permitiria pelo menos resolver todos os problemas materiais da humanidade de uma forma bastante conveniente. Não é o caso, porque permanecemos nas relações da produção capitalista, o que, em princípio, leva a perguntar quem é o dono desses meios. Mas o capital vale menos. Aquele que controla para ter o controle de tudo significa pouca coisa, pois pode ser um novo software, o que significa que entramos na seriedade e na duração da crise. 

O desemprego está se alastrando. O trabalho direto não é deslocado para um trabalho indireto, mas para o desemprego. Ou seja, o capitalismo, como um sistema em expansão – da exploração, é claro – se expande de forma que seja aí que a capacidade de produção se desenvolva. É o primeiro ponto da senilidade. Eles trabalham como se toda a revolução industrial tivesse ocorrido num mundo ideal, sem classes. O mundo poderia trabalhar como num manual, mas não é o que acontece. 

A segunda característica da senilidade : em todos os Estados considerados inferiores os imperialistas eram agressivos, numa posição de conquistadores, e o capital arrebanhado era exportado para fazer coisas que não fazia nos países de origem: lançava as estruturas do centro para a periferia. etc. Vieram construir estradas de ferro no Brasil, portos marítimos etc. Exportar para lançar a estrutura material da exploração do capitalismo-imperialismo. Se observarmos como funciona o sistema imperialista de hoje, verificaremos que é uma caricatura. O centro de tudo – os EUA – não exporta capitais, só importa. É o único país do mundo que vive muito acima de suas capacidades – o que leva à definição de parasita, de um indivíduo senil –, que vive graças à pensão que recebe do trabalho dos outros. Perante tamanha exploração ninguém reclama. É a segunda marca da senilidade . Como há um imperialismo coletivo , os outros parceiros o alimentam – caso dos europeus e dos japoneses. Com essa sistemática, cada país paga para manter esse cadáver ambulante. 

Terceira característica de senilidade : no nível ideológico, a burguesia, a cultura burguesa é portadora dos valores universais de conquista, valores universais terrivelmente corrosivos da relação de exploração, a relação de classes, de trabalho, baseada na cultura das Luzes, com seu racionalismo. O terceiro aspecto dessa senilidade é o abandono dessa cultura universal. Se mantivermos a ideologia dominante, o discurso dominante de hoje, teremos uma fonte norte-americana, fabricada pelos norte-americanos. É uma ideologia pobre, não é universalista, é uma mistura de comunidade, de especificidade, de não sei mais o quê. O capitalismo sempre exerceu a prática política fragmentada, mas não ousou criar uma legislação ideológica e cultural para colonizar, para senilizar, para universalizar a cultura. Colonizar, na verdade, é explorar por explorar, mas a legislação existe aí para nada. 

Estamos sob essa ideologia, que eu classificaria de magra, de uma magreza terrível, com um discurso vazio a respeito da adversidade, da especificidade religiosa, cultural etc, um traço incrível, um substituto dos valores universais, com um empobrecimento da democracia, que chegou ao nível de palhaçada com as eleições dos norte-americanos. 

Quarto aspecto da senilidade : nós, que sofremos tudo isso, parecemos uma excrescência da própria natureza, porque eles acham que somos diferentes porque somos muçulmanos, hindus, negros, porque somos não sei o quê. Ou seja, é o abandono da referência universalista o quarto elemento da senilidade. E foi Pablo Casanova quem percebeu isso primeiro, há alguns anos, levando-nos a refletir a respeito de seu estudo da nítida transformação do tipo de ser que é o burguês. Mas as classes dominantes, na história do capitalismo, quer seja o burguês empreendedor, industrial, da Provence, da Alemanha, da Inglaterra ou da velha aristocracia luso-brasileira do Nordeste, o conjunto dessas classes constituem as classes exploradoras, as classes dominantes, claro, mas elas tinham um quadro de referência, que na ideologia burguesa se chamava de direito burguês, de Estado de Direito. Eles tinham também uma hegemonia cultural, que proporcionava uma espécie de legitimidade ao seu poder. Eram ladrões, usurpadores, concordo, mas não tinham a ousadia observada junto a todas as classes dirigentes dos EUA, do México, de qualquer país da Europa ou da África. A burguesia sempre teve seu domínio na política, com seus bandidos, mas dominava os acontecimentos e, eventualmente, punia. Mas, agora, é o que se chama de degradação da democracia, de escândalo permanente. Não estou falando apenas do pequeno escândalo, da pequena corrupção de ordem política, mas, do comportamento mafioso, sem respeito pelo Estado de Direito. Isso vem dos grandes capitalistas. Provavelmente, espero, vão estourar em alguns dias os escândalos dos grandes banqueiros, dos grandes financistas. E o presidente dos EUA está incluído. Bush está envolvido na trapaça que as classes médias detectaram. É ótimo. Mas é também o caso da máfia na Rússia. A burguesia americana tornou-se mafiosa, isso generalizou-se. Quando se examinam até mesmo suas teses de classes dirigentes, atualmente, em relação às gerações anteriores da burguesia, pode-se verificar a sua pobreza, com o abandono das referências e isso quer dizer também que é uma crise hereditária, que passa de uma geração a outra. São bandidos, como os da Máfia, de forma que o seu momento de glória desapareceu. Portanto, o que pode esse capitalismo senil oferecer ao mundo? Vocês percebem o caso de Tony Blair, que abriu a Grã-Bretanha à “concorrência” a tal ponto que agora há firmas coreanas que se instalaram na Escócia, porque encontram ali um mercado melhor do que na Coréia. Isso significa que a social-democracia, que remonta à aristocracia de ontem, defende uma classe operária num quadro imperialista. É aí que entram os defensores da aristocracia operária britânica. E como gerir as periferias industrializadas, como no Brasil, em Duque de Caxias (RJ), por exemplo? O que o capitalismo tenta fazer é simplesmente subalternizar a indústria, por meio de uma política que não é qualificada, pois o discurso é legitimador de uma abertura à concorrência, de proteção do monopólio pelo reforço da propriedade intelectual e industrial, etc. E é assim, pela subalternização completa das indústrias da periferia. Portanto, quanto mais morta for a região, mais marginalizada, isto é, não tem mais a função de se integrar, não tem mais utilidade para o sistema de exploração capitalista, o que significa que o sistema capitalista não pode mais atender – nem falo das necessidades, mas da expectativa – a enorme massa de pessoas. É por esse motivo que passaram a usar, cada vez mais, os meios violentos. Mas essa também é uma característica de senilidade do sistema, que passa a produzir, seguindo sua lógica interna, de forma massificada, relativizando, isto é, tendo uma hegemonia política suficiente para as coisas se reproduzam por si mesmas e, assim, prolifera cada vez mais a violência. Quem é o responsável por essa reviravolta? O candidato de direito é os EUA, pois desde 1945 a vantagem comparativa absoluta se acentuou em relação a todos os outros, não militarmente, não tomando como referência a tradição militar dos exércitos europeus – mas numa nova tradição de como matar, de como massacrar. E eles são eficientes nisso. Portanto, estão na liderança da violência, do imperialismo coletivo. Quando se examinam as séries de Guerras – como a do Golfo e outras. – verifica-se que são guerras sem fim, que são guerras para instalar uma relação de força contra os povos, com a escolha de planos estratégicos, de controle militar. Eles não bombardearam a França ou o Canadá, mas utilizam de uma maneira diferente e mais ampla os meios policiais – mesmo entre eles – recorrendo ao novo macartismo. A novidade no discurso de Bush e dos outros, ultimamente, é que acabaram convencendo os cidadãos norte-americanos de que os terroristas estão entre eles. Quem se manifestasse contrariamente aos neoliberais, às economias mundiais, seria um terrorista. Acabou se instalando uma super-direita, cujo programa é demagógico, próprio de uma super-direita, e seus alvos principais são o aborto, os homossexuais e não sei mais o quê. E o resto pode ser bombardeado, pois o que importa são os aspectos de ordem moral. E, assim, os EUA adquiriram uma força enorme com essa superdireita, que é a base policial do novo macartismo. Quando se toma como referência um país como a Itália, onde sobe ao poder um primeiro ministro como Berlusconi, dizem que é necessário tomar medidas mais rígidas, por causa do terrorismo. Bem, esse é o plano, a estratégia, a lógica do funcionamento. 

Com a necessidade de o sistema aplicar a violência não há o perigo de que se instale algum tipo de neofascismo? 

Samir Amin – Talvez, não sei, depende da luta. Apesar de estar preocupado – eu não sou um especialista na perspectiva da cultura – não creio que mesmo nos EUA, com todas as limitações deles, se chegue a esse ponto. Quanto à Europa, sou mais otimista, pois há tradições político-culturais do partido, da esquerda, que não permitiriam que as coisas resvalassem assim. 

A democracia quase se torna uma piada com as eleições, e pode gerar uma ditadura odiosa, que as pessoas receberiam com prazer, pensando: “vamos massacrar”. Mas, ao mesmo tempo, essa democracia da tradição radical inscreve-se totalmente no neoliberalismo. O resultado: a Argentina de hoje. Qual é a saída? Há duas: uma ruim e outra boa. A ruim é o restabelecimento de uma ditadura violenta, para chegar à mesma coisa: ao neoliberalismo. Na verdade, é o que os americanos e os europeus querem. E, provavelmente, é o que quer a classe dirigente argentina, seja ela ex-peronista ou ex-radical. Percebe-se, assim, que todos os discursos sobre o mercado, sobre a democracia, podem levar a uma ditadura, não necessariamente militar, mas policial. Essa é uma saída possível. A segunda saída, à esquerda, passaria pela convergência muito ampla de forças políticas e sociais, englobando as classes populares – o principal setor – e as classes médias usadas pelo neoliberalismo. Elas poderiam impor a democracia, com uma conotação social – não diria socialista. Ou seja, com a redistribuição, a retomada da produção, com a proteção ao mercado interno, aspectos necessários na Argentina. Isso seria remar contra a maré, porque as forças políticas argentinas foram tão massacradas e assassinadas pela ditadura, que para as forças democráticas que emergiram dela não será fácil construir um futuro diferente, humanizado. Não digo que seja impossível. É difícil, e desejo que consigam. Isso significa que chegamos a um ponto em que a democracia burguesa, sem conflitos sociais, ou se torna social – com o socialismo –, atendendo às necessidades reais das pessoas, de forma objetiva, o que não significa que será construída em dois tempos – mas há gestões burguesas possíveis – ou, de outra forma, será construída pela violência. 

Talvez fosse bom destacar a cumplicidade europeia. 

Samir Amin – Sim, até agora é um fato, e se acentuará se o projeto europeu for tomado ao pé da letra, pois as burguesias européias vivem desse projeto de construir a grande Europa, a maior potência econômica, sobre uma base de tradição democrática, etc e tal. Eu uso o termo retraimento do projeto europeu. Atualmente, eu chamo o projeto europeu de vôo europeu com um projeto americano. Não existe mais distinção, seja no nível econômico, com o controle de todas as instituições econômicas, e agora o principal é o Mercado Comum Europeu. Eu chamo o Banco Mundial de Ministério da Propaganda, pois se encarrega de fazer discursos do tipo: “vamos cuidar dos pobres, da pobreza, da saúde”. O fomentador, como não administra a relação dólar, euro, marco e iene, é uma autoridade monetária colonial exercida sobre os outros. O outro fato é o Clube de Capital Transnacional, com um único Estado por trás: os EUA. A gestão econômica agrada aos europeus, como vimos no episódio do Comitê Europeu, que convocou os fundos europeus, e associou-se aos americanos para pressionar o Terceiro Mundo. E agiu de forma européia. Os governos europeus, incluindo-se aí os governos socialistas, preocupam-se com a política da gestão econômica, sob o comando americano, o que é uma posição que pode lhes proporcionar um capital transnacional europeu. No domínio político-comunitário temos a OTAN, que se tornou a expressão da comunidade internacional. E o que é a OTAN? É uma aliança assimétrica de governo. Não se concebe a OTAN intervindo sem a bênção americana. É inconcebível! No entanto, aceita-se o pacto. Será durável? Eu, que sou otimista, acho que não. Não porque o capital transnacional europeu entre em conflito com o americano. Essa é uma ilusão, mas uma ilusão alimentada pelo nacionalismo europeu, que quer fazer valer o euro e a futura força armada européia. E a diferença entre o euro e o dólar é a fragilidade do projeto europeu. Atrás do dólar há um Estado: o Estado americano. Há um Tesouro, que é o Tesouro americano. Há um presidente, que é o presidente dos EUA, que toma as decisões. E o que há por trás do euro? Um conglomerado de banqueiros irresponsáveis, mesmo perante seus próprios governantes, mesmo diante do governo europeu, que não existe. Portanto, não é nada. Parece piada. Mesmo as pessoas de esquerda da Europa, mais precisamente da França, defenderam idéias européias e não francesas. É claro que os europeus podem constituir-se numa força militar comum européia, pois eles têm a tradição militar, mas não é preciso aprender o francês ou o alemão quando se entra numa guerra. Nisso, eles podem ser melhores do que os americanos e fabricar uma força militar européia. Mas a questão não é essa. A quem obedeceria esse exercito europeu? Um general pode ser francês ou alemão, pois eles têm uma boa tradição, mas não é esse o problema, e sim o comando político: o vôo europeu dos americanos. Na minha opinião, uma mudança não pode ocorrer a partir de um credo ingênuo e, infelizmente, ele se manifesta até na esquerda na Europa. O capital transnacional europeu tem seus interesses próprios. Eles têm interesses comuns com o capital transnacional americano e sabem disso. Eu havia dado o exemplo de Tony Blair, que fez de sua aristocracia operária o que antes haviam feito com os hindus. O francês não caminha com os americanos na mídia, reivindica a exceção cultural, assumindo interesses intelectuais que não entram em contradição frontal com o capital. Mas a Europa não é só o capital europeu. Na minha opinião, o sucesso do Attac como movimento social assinala a diferença. O partido socialista e o governo socialista fazem uma política neoliberal hegemonista, em sentido único, e neste momento em que o partido comunista aceita o governo socialista e mesmo se teoricamente, na retórica, há alguma reticência verbal, ele está no governo, aceitando a mesma política neoliberal hegemônica americana. Attac atua politicamente fora do partido de esquerda, das forças da esquerda e, em alguns meses, recebeu o apoio de milhões de militantes reais, mais do que os do partido comunista ou de outro partido qualquer, a tal ponto que são os outros que lhe vão fazer a corte, com todo o perigo que isso comporta. É só um exemplo, pois sabemos que eles não farão uma revolução. Mas nós sabemos que na Europa há um potencial de rejeição real ao neoliberalismo americano. Na minha opinião, vai acontecer algo. Como e quando, não sei. A priori não quero dizer que serão os partidos comunistas que irão se regenerar e salvar a sociedade, ou se serão os outros. Não quero dizer nada nessa linha, porque não tenho uma bola de cristal, mas talvez nem um lado nem o outro faça nada, o que seria uma catástrofe. E isso pode acontecer na nossa história, mas acho que há um potencial real na Europa, que conserva a esperança. 

Qual é o papel da China? 

Samir Amin – Faz um ano que não disponho de muita informação nova a respeito da China. Li um artigo, em várias línguas, com um ponto de interrogação a respeito do “socialismo de mercado”, que é a expressão oficial e as alternativas não são finais, mas são como etapas ou uma transição. Li a colocação das condições que poderiam ser aceitáveis ou não uma solução definitiva, uma última etapa como o momento atual, com a condição de que o socialismo de mercado seja uma combinação da produção capitalista e de regulamentação social – não socialista, social – e natural, isto é, assegurar pelo menos o direito da regulamentação da distribuição da renda em grande escala, com 

  1. Uma redistribuição das redes de abastecimento de água, para atender as populações desfalcadas pela história e pela geografia; 
  2. Assegurar a solidariedade nacional; 
  3. Um grau de controle das relações com o exterior, que permitiria impedir ser subalternizado pelo capital internacional dominante. 

Quando examinamos esses três elementos, na realidade chinesa nos últimos vinte anos, o efeito é discutível, pois não é nem zero nem 100, fica nos 50, isto é, há uma dimensão desse peso político de regulamentação real e forte. É o motivo pelo qual há quem não esteja satisfeito com a China. Os americanos estão berrando a troco do quê? Se não estivesse acontecendo nada, não se incomodariam, mas muitos chineses dizem – com todo o direito e com razão – que é muito pouco, principalmente em nome da democracia comunista. É uma democracia que não renunciou ao utopismo comunista. Quem pensa dessa maneira? A classe dirigente, o establishment chinês pensa poder concretizar esse sonho sem necessidade de falar. 


Inclusão: 02/10/2020