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Fonte: Fundação Maurício Grabois. Revista Princípios, edição 5, Mar, 1983, Pág. 6-10.
HTML: Fernando A. S. Araújo
Ao sr. Kardeck do Nascimento
Peço desculpas pela demora em responder a sua carta. Antes de mais nada devo dizer que a considero oportuna e sincera. Não importa que o signatário, como diz, seja um ardoroso espírita. O importante é que levanta algumas questões que preocupam muita gente e cujas dúvidas precisam ser esclarecidas.
Sem pretender possuir o monopólio da verdade, tentarei expor nossa opinião relativamente ao assunto tratado na carta.
1- O problema central de suas indagações refere-se ao tratamento político que se deve dar ao revisionismo e à União Soviética. Você admite que a União Soviética é revisionista, "desviou-se da rota". Acredita, no entanto, que "apesar desse retrocesso" continua sendo uma aliada das forças antiimperialistas e revolucionárias. Segundo suas opiniões, seria um erro combatê-la duramente, pois "ainda leva seu tijolinho na edificação do edifício do socialismo no mundo”.
Pensamos diferente. A União Soviética da época de Lênin e de Stalin estabeleceu e construiu o socialismo numa luta gigantesca de vida ou morte, transformou-se na esperança dos explorados e oprimidos de todo o Globo. Porém, desde a metade da década de 1950, com a traição de seus dirigentes aos ideais do proletariado, deixou de ser socialista, voltou ao capitalismo, um capitalismo distinto na forma dos demais países capitalistas, mas idêntico no conteúdo. À primeira vista parece que a União Soviética continua socialista. Ali as fábricas e usinas, como também os bancos, o transporte, o comércio etc. não foram devolvidos a proprietários privados.
No campo, se bem que se liquidaram muitos sovkhoses (empresa inteiramente estatal) prosseguem existindo os antigos kolkhoses (propriedade coletiva). Assim, visto de maneira superficial, tem-se a impressão que funciona uma economia coletivizada, socialista, como a de outrora. Na realidade, tal não sucede. Coletivizada, sim. Mas nas mãos de quem? Do proletariado? Não. Nas mãos de usurpadores do poder que o utilizam em benefício próprio e de uma camada de burocratas, tecnocratas, militares, aproveitadores de todo tipo. Esta camada apossa-se de boa parte dos valores criados pelos trabalhadores, o que lhe assegura um alto nível de vida.
Num regime autenticamente socialista, a classe operária, os produtores em geral devem ser os principais beneficiários do sistema socialista. Todavia, na União Soviética da atualidade, esses beneficiários são os dirigentes do Estado e do Partido, os administradores das empresas e kolkhoses, os oficiais de elevada graduação, os técnicos, os funcionários destacados do aparelho partidário etc. Todos eles ganham salários muitas vezes maiores do que o salário médio do operariado. Sem dúvida, na primeira fase, a sociedade socialista admite diferenças salariais, não há igualitarismo. Mas essas diferenças tendem sempre a reduzir-se à medida que se eleva a qualificação geral da mão-de-obra e o padrão tecnológico da produção. Dirigir o Estado, o Partido, as Forças Armadas, não dá direito, no socialismo, a privilégios de qualquer natureza. Não podemos esquecer que Marx e Engels apoiaram e elevaram em nível de princípios, as medidas da Comuna de Paris que atribuíam aos funcionários do Estado um salário igual ao da média do salário dos operários. E uma função social à qual se devem integrar as amplas massas de trabalhadores. Lênin dizia que uma cozinheira precisa saber dirigir o Estado.
As vantagens que aquela camada de beneficiários do regime desfruta provêm, como no capitalismo, do trabalho de outrem, da mais-valia tirada dos operários e dos camponeses. Além de salários altíssimos em relação à média da remuneração dos trabalhadores, esses elementos dispõem de verdadeiras mordomias: casas de campo, automóveis de luxo, clínicas especializadas, facilidades para viagens de recreio ao exterior, armazéns especiais de produtos de consumo de boa qualidade a preços reduzidos, acesso fácil aos melhores espetáculos de arte, ampla utilização dos meios de comunicação etc. São os burgueses da Rússia.
No campo, acelerou-se igualmente a marcha para o capitalismo. Os kolkhoses, que pouco a pouco deviam passar de propriedade de grupo a propriedade de todo o povo (como são as empresas), converteram-se em cooperativas de tipo capitalista. Extinguiram-se praticamente todos os meios que asseguravam essa passagem, entre os quais as Estações de Máquinas e Tratores em poder do Estado. Os kolkhoses tornaram-se proprietários de meios de produção.
No que se refere às relações da URSS com outros países, sua política tem cunho capitalista-imperialista. Participa do comércio desigual, vendendo às nações atrasadas (e também aos aliados próximos) seus produtos por altos preços e comprando matérias-primas e produtos manufaturados por baixos preços. Enquadra no seu sistema de opressão e exploração os países nos quais tem influência, acobertada com a capa de "ajuda internacionalista" ou sob o pretexto de integração na chamada comunidade socialista. Quando tais países reagem à espoliação, Moscou recorre à força armada, à pressão econômica e militar. Foi assim na Tchecoslováquia, na Polônia, no Afeganistão etc. Pode-se alegar que, se não fosse a União Soviética, a Tchecoslováquia teria caído nas garras do imperialismo ocidental. O que é verdade, pois aí também o revisionismo havia liquidado o socialismo. Mas a intervenção militar soviética só teve um móvel: garantir o domínio imperialista da URSS naquele país. O fato se repete na Polônia. Ao contrário do que você afirma ("a União Soviética salvou a Polônia de retomar ao capitalismo, foi uma vitória dos comunistas") – o que a URSS fez foi "salvá-la" do capitalismo ocidental, se é que a salvou, para manter ali o seu exclusivo domínio. Se o movimento intitulado Solidarsnoc vencesse, o povo polonês iria viver sob o jugo da reação e da exploração imperialista ocidental, de braços dados com o Vaticano. Em decorrência da proclamação do estado de sítio do general Jaruzelski, a Polônia, onde o socialismo já não existe há quase três décadas, continuará atada de pés e mãos à União Soviética.
2- Você diz que a Rússia "apesar de ser revisionista tem colaborado para o enfraquecimento do capitalismo". Será? Pensamos de outra maneira. Até a metade da década de 1950, a URSS desfrutava de imenso prestígio, plenamente justificado pela sua posição socialista, internacionalista. Era um poderoso baluarte da revolução proletária mundial. Junto com a URSS criara-se todo um campo socialista que ia da Europa ao Oriente, englobando metade da população do Planeta. Nos países capitalistas existiam fortes Partidos Comunistas, revolucionários, marxistas-leninistas, fundados na época da III Internacional. Se essa situação tivesse perdurado (e certamente progredido), hoje estaríamos ajustando definitivamente as contas com o sistema capitalista-imperialista em todo o mundo. Atravessaríamos uma fase de profundas transformações radicais na sociedade, apoiadas no processo objetivo do desenvolvimento social. Que ocorreu, no entanto? A URSS enveredou pelo caminho revisionista, abandonou a senda revolucionária, desmantelou a construção do socialismo. E influiu decisivamente na conversão dos partidos proletário-revolucionários em partidos revisionistas, agentes da burguesia, defensores da colaboração de classes, do caminho pacífico etc. O campo socialista sofreu um golpe esmagador. É claro que isto representou o maior serviço já prestado ao capitalismo, salvou-o da derrocada próxima. Vê-se, assim, que o que a União Soviética fez (e faz) não foi enfraquecer o capitalismo, mas, ao contrário, tentar fortalecê-lo, alimentar por mais algum tempo a já longa agonia de sua existência final. É certo que o capitalismo vive uma fase de enfraquecimento contínuo, como sistema econômico-social. Isto é devido não à posição da Rússia e sim à atuação de leis objetivas que corroem inevitavelmente os seus fundamentos.
3- Em tais condições, pode-se admitir a União Soviética revisionista como aliada das forças revolucionárias? Você afirma que sim. Também nesta questão divergimos. O revisionismo é o perigo principal no movimento operário mundial. Semeia a confusão ideológica, desvia os trabalhadores da luta consequente. Aliando-nos ao revisionismo soviético contribuiríamos para sustentar a corrente que minou e continua minando as forças revolucionárias, colaboraríamos para fomentar ilusões na União Soviética social-imperialista, ainda insuficientemente desmascarada. Se somos partidários da revolução e do socialismo devemos denunciar firmemente os que procuram confundir e enganar a classe operária e as massas populares, principalmente aqueles que se disfarçam de marxistas-leninistas invocando o passado da Revolução Russa a fim de camuflar melhor sua traição aos ideais socialistas.
Há ainda outras razões. Em que pese a demagogia pacifista e a propaganda de uma pretensa solidariedade internacionalista, a União Soviética realiza uma política expansionista e belicista. Faz a guerra no Afeganistão, usando diretamente tropas e armamentos russos; faz a guerra na Etiópia contra a Eritréia, aliada aos nacionalistas etíopes; faz a guerra ao Irã através do farto material bélico vendido ao Iraque; em certo sentido, faz também a guerra na Polônia contra os trabalhadores. Está por trás dos chauvinistas sérvios que atacam brutalmente os albaneses de Kosovo. Acaso semelhante conduta pode ser denominada de política de paz, como repetem frequentemente os dirigentes de Moscou? A cada dia observa-se que uma nova guerra mundial está em preparação. Quem a prepara? Evidentemente, as duas superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética, envolvidas na maior e mais dispendiosa corrida armamentista de todos os tempos. O motivo da guerra reside na disputa exasperada entre esses dois competidores pela dominação mundial. Os Estados Unidos são adversários de morte dos povos, com eles não pode haver a mínima complacência. Mas a União Soviética não se mostra muito diferente: mais sofisticada, porém tão exploradora e opressora quanto os imperialistas norte-americanos. Justo, portanto, declarar que esses dois países, no mesmo grau, são inimigos dos povos e da paz. Se apoiarmos um deles contra o outro, estaremos traindo os interesses fundamentais dos trabalhadores. Porque fortaleceremos a política imperialista e de hegemonia mundial de um deles, em prejuízo da luta revolucionária emancipadora do proletariado e das massas populares.
4- Você diz que os comunistas fazem alianças com o capitalismo ("quando chegam à conclusão que estas ajudam a causa da revolução"), e pergunta por que então não fazer também aliança com a União Soviética? Você argumenta que "Lênin fazia alianças com o capitalismo". Ainda aqui nossos pontos de vista não coincidem.
É verdade que os comunistas fazem alianças, as mais variadas, com países e forças de natureza capitalista e mesmo imperialista. Durante a Segunda Grande Guerra, Stalin fez aliança com os Estados Unidos e a Inglaterra, por exemplo. Essa aliança tinha objetivo claro e justificado, era, nas condições em que se efetuou, obrigatória. Visava a derrotar o principal inimigo da revolução, que constituía grave e imediata ameaça à URSS socialista e à liberdade e independência de todos os povos. Embora os Estados Unidos e a Inglaterra fossem também inimigos da revolução, o principal inimigo, naquele momento, era a Alemanha nazista. Hoje, como se apresenta semelhante questão? Acaso, como colocam os chineses, alegando que a União Soviética é o inimigo principal? Ou como os soviéticos e seus seguidores, afirmando que esse inimigo são os Estados Unidos? Com tais afirmativas os chineses pretendem que se faça aliança com os imperialistas norte-americanos contra a URSS; e os soviéticos querem que se concerte tal aliança com eles contra os Estados Unidos. Nem uma coisa, nem outra. Na situação atual são dois (e não apenas um) os inimigos principais da revolução, do socialismo, dos povos – os Estados Unidos e a União Soviética. Ambos perseguem os mesmos fins – o domínio do mundo. E são numerosos os exemplos do que significa viver sob a bota dos imperialistas norte-americanos ou sob o tacão dos revisionistas soviéticos. Lênin, em caso assemelhado, antes e durante a Primeira Grande Guerra, não ficou do lado da Rússia czarista e seus aliados (França, Inglaterra), nem do lado da Alemanha e seus parceiros. Atacou os dois blocos, tomou posição contra uns e outros, inimigos na mesma medida da revolução e dos povos. Somente desse modo pôde aproveitar as contradições no campo imperialista e levar a cabo a tomada do poder pelo proletariado russo.
Haverá o perigo de, atacando a União Soviética e seu revisionismo, levar água ao moinho dos monopolistas norte-americanos e dos reacionários em geral? Não. Os marxistas-leninistas têm posição independente e atacam no mesmo nível e ao mesmo tempo as duas superpotências e os reacionários. É o que fazemos no caso da Polônia e, em certa medida, no do Afeganistão. Nisto nos distinguimos também dos pseudo-socialistas, do tipo do Partido dos Trabalhadores (PT), que não fazem mais do que bater palmas aos agentes do Vaticano e do imperialismo, empenhados em utilizar o proletariado polonês colocando-o a serviço de seus objetivos:
5- Você considera que combatendo duramente a União Soviética "jogaremos esse país no inferno juntamente com os verdadeiros comunistas que ali devem existir", o que seria, no seu entender, negação do internacionalismo proletário. E aduz: "a nossa tarefa devia ser ganhar esse país para a rota da qual se afastou".
Um país como a União Soviética que abandonou, renegou, espezinhou o socialismo, não será recuperado através da conciliação e de táticas hábeis. Sua volta ao socialismo depende de uma nova revolução, pois nenhum país capitalista cede posições de mando pacificamente. Por acaso estaríamos ajudando a revolução na Rússia se marchássemos de braços dados com os traidores do socialismo? Desse modo não faríamos senão ajudar os revisionistas e continuar enganando os trabalhadores soviéticos e, o pior, concorreríamos para facilitar a execução dos seus planos de domínio do mundo. Somente há um meio para mudar essa situação: desmascarar decididamente e com argumentos convincentes o caráter social-imperialista do atual sistema dominante na URSS, impedir dessa forma que as ilusões no falso socialismo soviético adormeçam a vontade de luta das massas pela revolução. Que os operários soviéticos saibam que estamos do seu lado contra os revisionistas, que apoiamos o seu combate para pôr abaixo os opressores e burgueses soviéticos de hoje a fim de reimplantar a ditadura do proletariado e avançar no rumo do comunismo. Esse o verdadeiro internacionalismo. O argumento que você invoca (atacar a União Soviética é jogar no inferno os comunistas que lá existem) não é justo. Se o aceitássemos, então tampouco poderíamos atacar duramente os Estados Unidos porque lá também há comunistas.
6- Por fim, manifestamo-nos inteiramente de acordo com você quando diz que "nossa luta será vitoriosa, porque os ventos sopram a nosso favor, mas não tenhamos dúvidas de que será árdua e que ainda vai exigir muitos sacrifícios". Estamos persuadidos de que assim será. A falta de experiência e de vigilância revolucionária permitiu, em boa parte, que os revisionistas desviassem da rota revolucionária o primeiro país a edificar o socialismo. Atualmente nossa luta é mais difícil, contamos porém com fatores favoráveis. Mais difícil porque perdemos um poderoso reduto revolucionário e porque há ainda muita ilusão na União Soviética revisionista, bem como certo desânimo entre determinadas camadas do povo devido ao que ali sucedeu. Todavia, atua a nosso favor a situação em que se encontra o capitalismo, engolfado na maior crise da sua história, mais parasitário do que antes, mais vulnerável, incapaz de resolver os problemas graves que engendrou para a maioria da população do Planeta. Contudo, a fim de que triunfe a nossa causa, devemos ser inflexíveis na defesa dos princípios revolucionários, no combate obstinado a tudo o que entrava a marcha da revolução.
Não sei se fui suficientemente claro na exposição de nossas idéias e em que medida esta carta poderá ajudá-lo. De qualquer modo, essa foi a nossa intenção.
Fonte |
Inclusão | 26/02/2012 |