Nota da equipe de tradução
Traduzido por Bérnie Dias e Angelo Ardonde a partir do texto em francês, “L’empirisme absolu d’Antonio Gramsci”, de Louis Althusser, cotejado com a tradução em inglês. Trata-se do segundo capítulo de um manuscrito inacabado, redigido em 1978 e publicado pela primeira vez em 2018, com o título Que faire? [Que fazer?], pela editora Presses Universitaires de France (Paris). Advertimos que há períodos que se encontram incompletos no original, sendo assim identificados no texto editado pelo sinal de reticências. Alguns trechos lacunares são identificados pelo seguinte sinal sublinhado: __________. As notas de rodapé e a divisão do texto em capítulos, assim como o título destes, são de autoria dos editores franceses.
Certamente, a vantagem dessa concepção [a concepção historicista da teoria marxista](*) consiste em escapar do perigo gravíssimo de se conceber o conhecimento do concreto como a simples “aplicação” de uma “teoria” filosófica, adquirida antes mesmo do conhecimento – ou do princípio do conhecimento – do concreto. É claro que, ao se referir abertamente a Gramsci e “trabalhando” com seu pensamento como um “historicismo absoluto”, o Partido Comunista Italiano [PCI], sob a liderança de Togliatti(1), soube se distanciar bem de uma concepção da verdade do concreto como a aplicação de uma teoria absoluta, que define justamente uma das formas do desvio stalinista, tanto na teoria como na política mais “concreta”. Sem esse recurso oficial a Gramsci – uma oportunidade de dispor do pensamento de um dirigente político nacional que, nos anos de sua prisão, mesmo antes da guerra e praticamente sozinho, soube lutar contra as tendências da direção de seu próprio partido, para propor uma concepção da teoria marxista que rompesse com o dogmatismo da verdade e de sua “aplicação” – não se pode compreender a história do Partido Comunista Italiano desde a guerra nem sua profunda originalidade em um mundo que, por um bom tempo, continuaria dominado pela ideologia e práticas stalinistas. Podemos dizer que, em Gramsci, o historicismo é uma forma indeterminada de anti-dogmatismo.
Digo “uma forma indeterminada”, pois há diversos opostos possíveis ao dogmatismo, sendo o historicismo apenas um entre outros; além disso, ser “indeterminado” significa que o historicismo é sólido apenas com o que se nega, mas fraco com o que se afirma. Isso serve para que se perceba, junto com seus méritos ideológicos e políticos, o ponto de fraqueza teórica (e, portanto, também eventualmente ideológica e política) da interpretação historicista da teoria marxista. Pois, quando se diz que o concreto está sempre mudando e se identifica a mudança com a história, para dizer que o concreto é histórico, histórico de ponta a ponta, caímos em uma ideia muito estéril de história, concebida simplesmente como mudança. Não é verdade que a história consista apenas em mudanças: há na história estruturas relativamente estáveis, que perduram por longos períodos sob as mudanças que as afetam. Indo ainda mais longe, podemos considerar que não se tratam apenas de mudanças dessas estruturas estáveis, mas de mudanças produzidas por essas estruturas estáveis, não como suas expressões gratuitas, mas como diversas formas de se produzir e reproduzir sua estabilidade.
Foi assim que Marx nos mostrou que o modo de produção capitalista – o mesmo que “revoluciona”(2) sem cessar e cada vez mais rapidamente suas forças produtivas, produzindo a velocidade impressionante e cada mais mais acelerada – só pode ser compreendido com base em uma estrutura relativamente estável: a relação de produção capitalista(3). Eis um paradoxo: essa estrutura estável é antagônica, trata-se do antagonismo que divide as classes e permite compreender que todas as mudanças na história das formações sociais capitalistas – não nos detalhes, que no limite também podem ser frutos do acaso, mas em sua essência – consistem em diversas formas de se perpetuar a estrutura estável da relação de classe da exploração capitalista, a estrutura estável da divisão conflituosa do conjunto da sociedade em duas classes fundamentais, em que uma detém os meios de produção e a outra vende sua força de trabalho. Na visão que devemos à Marx, é muito notável a ideia de que essa estrutura antagônica não pode se manter estável e permanecer a mesma, a menos que se produza a mudança de seus próprios termos antagônicos, como meio de perpetuar sua estabilidade.
É assim que há uma história do modo de produção capitalista(4); acima de tudo, essa é a história dos meios e formas de exploração, da luta de classes e, ao mesmo tempo, da transformação (mudança) das classes envolvidas na relação antagônica fundamental. É assim que a burguesia se transforma: uma vez “concorrencial”, torna-se monopolista e imperialista, provocando uma série de mudanças sucessivas nas frações de classe dependentes dela. É assim que a classe operária se transforma, modificada por meios incessantes e cada vez maiores de extração de mais-valor. Nas zonas intermediárias entre as duas classes antagônicas (na pequena-burguesia urbana e rural), é assim que as fronteiras se movimentam: setores inteiros das classes médias caem nas fileiras de assalariados ou da classe operária. É assim que a luta de classes da burguesia altera suas estratégias, meios e formas em função da resistência e luta da classe operária.
Quando chegamos nesse ponto de vista, que é o de Marx (e quem nos ofereceu um melhor, que efetivamente dê conta desse conjunto de fenômenos, senão Marx?), não estamos mais no terreno do historicismo. Não definimos mais a história pela simples mudança, ou a fortiori pela mudança dos pontos de vista sobre a história, ou menos ainda pela totalidade dos pontos de vista sobre a história (pois, na lógica interna do historicismo, o que nos permite somá-las e falar dessa somatória?). De fato, a história é definida pela mudança, mas no sentido das condições e meios, produzidos por uma estrutura estável, de reprodução dessa mesma estrutura estável. Por isso, a mudança aparece apenas como a própria forma por meio da qual a estrutura relativamente estável (a do modo de produção) se reproduz.
Nessas condições, para que se compreenda “concretamente” a mudança “concreta”, em primeiro lugar devemos compreender e definir essa estrutura estável, pois apenas as condições de estabilidade dessa estrutura possibilitam compreender a mudança como aquilo que permite com que essa estrutura se perpetue à sombra, dentro e por meio da própria mudança.
Não é algo tão complicado de se compreender. Se a extorsão de mais-valor (que é o cerne da exploração) localiza-se em uma relação antagônica de luta de classes, todas as pessoas entenderão que, para manter essa exploração e, portanto, para perpetuar a estabilidade da relação de produção capitalista no interior do confronto da luta de classes, é necessário encarar as consequências desse confronto, e que haja uma mudança nas formas da luta de classes e, portanto, também nas classes envolvidas na luta. É por isso que há uma história do modo de produção capitalista, embora a estrutura antagônica desse modo de produção mantenha-se a mesma, de forma relativamente estável, sob as formas transformadas da exploração e da luta de classes, que nunca cessam de se modificar, perpetuando a estabilidade do modo de produção.
Sabe-se que Marx(5) chega a falar da “eternidade” do modo de produção para enfatizar essa estabilidade . No entanto, sabemos que o mesmo Marx que falava dessa “eternidade” do modo de produção capitalista não deixou de expor as transformações históricas exigidas ou produzidas pela luta de classes, quer se trate da história da jornada de trabalho ou da transformação da força de trabalho (de mulheres, crianças etc). Dessa forma, Marx fala do “concreto”, esboçando uma “análise concreta” das condições de trabalho, da duração da jornada de trabalho, das razões para essa duração, das lutas para limitá-la e do porquê a própria burguesia acabou mudando sua estratégia, aprovando a lei das dez horas para melhor explorar seus trabalhadores, visando o "mais-valor relativo", ou seja, a mecanização da produção que, injetando no mercado mais produtos a preços mais baixos, possibilitou a redução dos salários na mesma proporção, ou em uma ainda maior. Porém, Marx somente pôde esboçar essa “análise concreta” das mudanças “concretas” ao relacioná-las à estrutura relativamente estável que as produz, como condição para a perpetuação de sua estabilidade.
Menciono apenas esse argumento, pois não quero embarcar em uma discussão propriamente filosófica do historicismo, que envolveria o marxismo em problemas absurdos, como o de se questionar, sendo tudo histórico, se a própria proposição “tudo é histórico”(6) também o seria, ou qual seria de fato o significado da palavra “histórico”; caso seu único sentido seja “histórico”, então estamos andando em círculos(7). Em termos simples, isso quer dizer que o historicismo reduz todo o real ao histórico, de modo que apenas o histórico existe, reduzindo não só todo o conhecimento, mas também toda significação e toda palavra ao histórico, que nenhuma palavra é capaz de explicar ou mesmo dizer, pois toda palavra e todo significado são históricos de antemão. Você conhece as bicicletas comuns: elas têm duas rodas, pedalamos e elas avançam. Também há bicicletas ergométricas, mas estas não têm rodas e pedalamos sem sair do lugar. O historicismo é uma bicicleta sem rodas. Você pode montar nela e pedalar, mas continuará no mesmo lugar. É isso o que acontece quando proclamamos que tudo muda, que a história é mudança e que tudo é história.
Não se pode pensar que essa interpretação filosófica do marxismo não tenha consequências. A partir do momento em que a filosofia deixa de ser individual para inspirar a teoria, a prática e a ideologia de um partido político e, em maior medida, para ser difundida entre as massas populares, por meio do partido e suas ações, toda filosofia têm consequências: teóricas, práticas, ideológicas e, por fim, políticas. Não pretendo sugerir com isso, de forma alguma, que a filosofia seja o motor da história, mesmo que por intermédio de um partido comunista. São sempre as grandes massas que “fazem a história”(8), mas sua experiência é reunida, analisada e sintetizada pelo partido, que devolve às massas – na forma de uma linha política, palavras de ordem e formas de ação e organização – o que havia recebido delas. É nesse momento de análise e síntese dessas experiências – precisamente, no momento de análise dessas experiências coletivamente reunidas por todo o partido, ao nível de sua direção – que intervém a filosofia, que nesse caso diz respeito à interpretação dada e recebida do marxismo. É dessa forma muito precisa que o historicismo pode ter consequências teóricas e práticas.
Como tudo é histórico para o historicismo, este tende a reduzir entre si todas as diferenças realmente existentes e reconhecidas na tradição marxista, de modo a se encontrar, no fim das contas, diante de uma única “história”. Isso é muito notável em Gramsci, que tem uma tendência a reduzir a teoria marxista (“o materialismo histórico”) à filosofia, a filosofia à política e a política à história(9). Por meio dessa série de reduções sucessivas, que tendem a apagar diferenças reconhecidas e importantes, o marxismo é reduzido não exatamente à história (que é real), mas a uma filosofia da história, a uma filosofia do histórico como a única verdade de todas as diferenças, ou seja, ao “historicismo absoluto”. Disso resultam, certamente, consequências muito importantes e sintomáticas.
Por exemplo, o materialismo histórico tende a ser “limado” em Gramsci – isto é, reduzido à filosofia marxista, à dita “filosofia da práxis”. De fato, isso não significa que Gramsci abandone todo o materialismo histórico, mas que, para dar um exemplo esclarecedor, ele manifestamente não tem uma ideia muito precisa do que seria uma teoria da “infraestrutura”, praticamente ausente em seus escritos, com exceção de algumas alusões. Se a infraestrutura desaparece, então resta a “superestrutura”; não é por acaso que Gramsci seja o primeiro teórico com um interesse real pelos fenômenos da superestrutura, pelo Estado e pelas ideologias. Porém, se apenas a superestrutura permanece em cena, enquanto a infraestrutura é relegada aos bastidores, os laços orgânicos que explicam a existência e a função da superestrutura em suas relações com a infraestrutura – que explicam como a superestrutura tem um papel decisivo na reprodução da infraestrutura e, portanto, na reprodução da relação de produção – não são verdadeiramente levadas em conta e pensadas em sua plena realidade.
Portanto, em Gramsci, a superestrutura tem uma existência fantasmagórica: as coisas são assim, o Estado existe, o direito existe e as ideologias existem. Não sabemos, ou ficamos sabendo muito pouco, por que a superestrutura existe. Tudo o que se pode fazer com essa superestrutura é descrevê-la e analisar seu funcionamento ao nível de sua própria manifestação, como se esta não fosse comandada por laços ocultos que a ligam à infraestrutura.
Aliás, é por isso que, ao discutir o assunto, Gramsci(10) manifestamente não gosta desta distinção entre infraestrutura e superestrutura. Ele diz isso com suas próprias palavras. Ele considera essa distinção como mecanicista e “metafísica”, isto é, como uma separação artificial de realidades que não estão separadas. Em sua crítica(11) ao Manual mecanicista de Bukharin(12), foi fácil para ele criticar essa distinção como mecanicista; não há nada mais fácil. Porém, ao fazer isso, tomando como pretexto as distorções grosseiras do Manual, no fundo Gramsci fez aquilo que desejava: ele pôde jogar fora o bebê com a água do banho, livrando-se da distinção entre infraestrutura e superestrutura, que não não lhe convinha, livrando-se das interpretações mecanicistas de Bukharin. Depois de se livrar dessa distinção, Gramsci pôde se entregar, por conta própria, às delícias da superestrutura.
Portanto, não é de se admirar que essa superestrutura tenha em Gramsci uma existência fantasmagórica. Foi absolutamente crucial ele ter enfatizado a importância da superestrutura, sugerindo (embora timidamente) que a superestrutura penetrasse na infraestrutura, mas a unidade dessa “penetração”, embora descrita, não é verdadeiramente pensada e, além disso, essa própria penetração é pensada do ponto de vista da superestrutura; sem que se saiba realmente em que mais essa superestrutura penetra. Em um tempo no qual a linha política stalinista era conduzida em nome do “desenvolvimento das forças produtivas”, entendidas como instrumentos e meios de produção, sendo as pessoas declaradas como “o capital (!) mais valioso”(13) (economicismo = humanismo) e, portanto, um elemento da infraestrutura, foi crucial a insistência na superestrutura, no papel do Estado e sobretudo da política, de uma política antípoda à política stalinista. Havia motivo o bastante para a fundação de uma crítica do economicismo, que Gramsci identificou corretamente com o desvio teórico e político de Stalin. Portanto, havia motivos o bastante para a abertura de novos caminhos para o movimento operário. Mas…
Mas é preciso dizer que essa superestrutura – que Gramsci teve o mérito histórico e político de destacar como a questão número um, em oposição ao economicismo stalinista – tem uma existência singular no universo teórico de Gramsci. De fato, a partir do momento em que a infraestrutura é negligenciada, a superestrutura permanece isolada, sozinha em si mesma. Como mais nada do que foi verdadeiramente pensado liga a superestrutura a uma infraestrutura evanescente, Gramsci se vê obrigado a pensá-la por ela mesma. E pensar algo por si mesmo é descrevê-lo; é procurar, com maior ou menor sucesso, mas ao acaso, as aproximações entre os elementos descritos. Veja bem: o Estado existe, o direito existe e as ideologias existem. Por que essas coisas estão aí? Mistério. Do que elas são feitas? De tais e quais elementos. Que relações podemos observar e descrever entre essas realidades? Tais ou quais relações. Por que especificamente essas relações? Mistério. As coisas são assim, ponto final. Trata-se de descrevê-las e tentar compreendê-las a partir de sua descrição e enumeração, enumerando e relacionando seus elementos. Assim, o historicismo é uma forma de empirismo. Isso se expressa claramente em Gramsci.
Isso se expressa, por exemplo, na medida em que Gramsci, que tanto insiste na superestrutura, não apresenta um ponto de partida para uma teoria das ideologias. Ele se contenta em dizer que a ideologia é um “cimento” social, mas não vai muito além disso. Ele se contenta em repetir a famosa frase do Prefácio de Marx (1859)(14), em que “é na ideologia que as pessoas tomam consciência da sua luta e a conduzem até o final”(15), uma frase bastante contestável. No caso da ideologia, é evidente que o empirismo não produz nada. As coisas são assim.
O mesmo ocorre, de modo contrário, no caso dos intelectuais. Aqui, Gramsci foi capaz de estabelecer uma conexão significativa entre os elementos observados. Ele não se contenta em repetir o que já foi dito por Marx, mas pensa no que Marx disse e anuncia coisas novas: que os intelectuais são geralmente “orgânicos”(16), isto é, que a função dos intelectuais de uma determinada sociedade não é, como muitas vezes se supõe, a de pensar por pensar, mas a de organizar e servir de autoconsciência de uma cultura que eles disseminam entre as massas; que os tipos de intelectuais variam de acordo com as formas das sociedades etc. Essas noções são muito ricas, mas ao mesmo tempo um tanto isoladas de seu conjunto, no interior do campo diverso do pensamento de Gramsci: é como se aqui, por um feliz acaso, diferentemente do caso das ideologias, o empirismo tivesse produzido um resultado acertado.
Seriam noções isoladas no interior de um pensamento? Não exatamente, pois a ideia que Gramsci tem dos “intelectuais” depende de outra, profundamente enraizada nele, sobre o tipo de unidade histórica normal que se deve apresentar, segundo ele, em toda “época” histórica verdadeira. Tudo se passa como se a história, para Gramsci, só se realizasse verdadeiramente ao atingir o estado de uma “bela totalidade”, não tanto quando um modo de produção atinge seu apogeu, mas quando se constitui um verdadeiro “bloco histórico”, capaz de unir todas as pessoas na unidade de uma prática e de uma ética; em suma, de uma cultura.
É por esse motivo que o papel dos “intelectuais orgânicos” é tão importante para Gramsci, e que ele “descobriu” sua existência. Pois essa unidade de uma cultura só é realizada quando a cultura não se mantém como propriedade dos “doutos”, mas penetra na imensa massa dos “humildes”, do povo. Essa extensão só é possível quando os valores dominantes, da cultura dos “grandes”, são capazes de serem recebidos, aceitos e reconhecidos pelos “humildes”. Isso nem sempre acontece. Quando isso não acontece, não temos o caso de uma verdadeira “época histórica”, um verdadeiro “bloco histórico” capaz de garantir sua hegemonia, de dominar pelo convencimento, persuasão e popularização das suas próprias ideias. Quando isso acontece, então temos o caso de uma verdadeira “época histórica”, um “bloco histórico” normal, como deveria ser; nesse caso, a classe no poder pode dominar e persuadir o povo, obtendo seu acordo, seu livre consenso, levando-o a aceitar livremente suas próprias ideias, sua exploração e, portanto, sua opressão.
É aqui que intervêm os “intelectuais orgânicos”. Pois essa instauração da hegemonia, da dominação livremente aceita pelos dominados, essa difusão das ideias dominantes entre o povo é impossível sem o que Gramsci chama de papel educador do Estado. Para que essas ideias e valores sejam aceitos livremente pelo povo, é preciso ensiná-los, de formas adequadas a sua inteligência. Portanto, a classe dominante e o povo precisam de educadores, professores no sentido forte da palavra, para ensinar ao povo as ideias que forjam a unidade do “bloco histórico” sob a classe dominante, para fazer com que essas ideias penetrem no povo, até mesmo infligindo uma certa violência (todo ato de educação pressupõe uma certa violência), para que o povo se deixe formar e moldar por essas ideias. Essa é a tarefa dos “intelectuais orgânicos”, com a condição certa de não supormos que os “valores” que cimentam o “bloco histórico” se reduzem a ideias. Trata-se de um conjunto de práticas, desde as práticas de produção até às práticas políticas, morais e religiosas. É uma verdadeira ética universal concreta.
Conhecemos o exemplo do qual Gramsci extrai suas reflexões sobre os intelectuais orgânicos: paradoxalmente, da Igreja(17). Ele analisa cuidadosamente o recrutamento desses “intelectuais” (entre o campesinato pobre, por excelência, em que se tornar padre é uma forma de ascensão social) e a preocupação constante da Igreja em evitar, a todo custo, a produção de uma lacuna entre os “doutos” e os “humildes”, a criação de ordens monásticas para evitar essa lacuna etc. É um exemplo surpreendente, afinal a Igreja não é um “bloco histórico”, mas um aparelho ideológico que é sempre, em maior ou menor grau, um aparelho de Estado.
No entanto, Gramsci estende suas reflexões sobre a Igreja(18) em reflexões comparativas sobre a história da França e da Itália, contrastando a França – que, na revolução, constituiu com sucesso um “bloco histórico”, dotando-se de um verdadeiro Estado educador e formando um corpo de intelectuais orgânicos completo para todas as tarefas de hegemonia – com a Itália, que foi incapaz de realizar sua revolução burguesa, fundar um verdadeiro “bloco histórico” e, consequentemente, dotar-se de um verdadeiro corpo de intelectuais orgânicos. Conhecemos os lamentos de Gramsci sobre os intelectuais italianos, estranhos a sua nação desde a Renascença, prontos a vender seus serviços ao estrangeiro com a maior oferta, a fim de prosseguirem brilhantes carreiras políticas ou de quaisquer tipos. Quando um Estado não consegue realizar uma verdadeira unidade ética universal em seu povo, ele não tem qualquer necessidade de seus intelectuais, que já não são mais seus intelectuais, fazendo com que estes de se tornarem “intelectuais cosmopolitas”: eles partem para servir senhores estrangeiros.
Quando refletimos, mesmo dessa forma esquemática, sobre a unidade de todos esses temas em Gramsci (muitas vezes, são apresentados mais temas que conceitos), notamos diversas coisas surpreendentes.
Em primeiro lugar, descobrimos que Gramsci não só negligencia a infraestrutura para tratar apenas da superestrutura, mas também tende a substituir o conceito marxista de modo de produção pelo conceito de “bloco histórico”. Isso está certamente de acordo com a lógica de seu historicismo, se é certo que o modo de produção é definido por uma relação sócio-material relativamente estável, a relação de produção, em que se desenrola o antagonismo entre duas classes básicas. Já o “bloco histórico” evoca algo completamente diferente: o mero acontecimento de uma unidade histórica ética, claramente histórica de ponta a ponta, na medida em que esta pode ser realizada (como no caso da França) ou não (como na Itália). A redução do conceito marxista de “modo de produção” em prol do conceito de “bloco histórico” realiza assim a tendência subjacente ao historicismo: tudo é história, tudo muda e a unidade ideal pode ou não ser realizada. Contatamos que essa é uma questão histórica e, se observamos os fatos e procuramos as causas, somos lançados no infinito da história, sem ponto fixo algum.
Em seguida, também descobrimos que não é por acaso que Gramsci parte da Igreja para chegar na França e na Itália, uma vez que ele encontra seu conceito de “intelectuais orgânicos” na Igreja e em sua história. Afinal, a que “esfera” pertence a Igreja, senão à das ideologias, dos aparelhos ideológicos que podem ser aparelhos de Estado (sem dúvida, era o caso da Igreja) e, portanto, à superestrutura? De onde Gramsci tomou seu modelo de unidade ética perfeita e universal, senão da Igreja Católica (universal), que tão bem conseguiu nunca se separar dos “humildes”, esforçando-se ao máximo para colocar os melhores de seus intelectuais orgânicos para incutir neles suas verdades, pregando, ensinando e educando os “humildes” no amor de Deus e na submissão à Igreja?… É mais do que claro que tudo isso se passa na ideologia e, portanto, em todos os gestos e escolhas da vida prática (pois sabemos que a ideologia não são “ideias”).
Mas é prodigiosamente surpreendente que Gramsci, que descreveu tão bem a política da Igreja, não tenha esboçado nem por um momento uma teoria da Igreja (para não mencionar a religião, uma área cinzenta do pensamento marxista(19)); isso ocorreu porque ele não tinha nenhuma teoria das ideologias – não porque ele estivesse desinteressado pelas ideologias, mas porque seu historicismo o impediu de pôr isso questão, privando-o dos meios para sua formulação (já que ele negligenciou a infraestrutura). É espantosa a razão pela qual Gramsci procura na Igreja não um exemplo, mas a própria essência realizada da “bela totalidade ética”, que ele teve de projetar no Estado do “bloco histórico”. Acontece que ele descobre uma identidade profunda entre a unidade de um aparelho ideológico do Estado e a unidade do Estado ético: a unidade ideológica da Igreja, assegurada por seus “intelectuais orgânicos”, que lhe dá a chave teórica para a unidade do Estado ético. Como resultado, ele pensa o próprio Estado a partir da ideologia. Mais uma redução “historicista”.
Para concluir, o que choca em Gramsci é certamente essa concepção do Estado do “bloco histórico” ideal, concebido como uma totalidade ética unificada pela hegemonia exercida sobre “o povo” por meio de seus “intelectuais orgânicos”. Esse consenso universal é assegurado pela ação educativa do Estado e de seus intelectuais, o que não se desenvolve sem uma certa violência, infligida às pessoas de modo a inculcar nelas ideias e práticas que provocarão uma profunda transformação ética, transformando-as em “cidadãs” desse Estado ético.
Nessa figura ideal (quero dizer: nesse nível de abstração), procuraríamos em vão por aquilo que resta das classes e da luta de classes. Não somente a infraestrutura é negligenciada e praticamente tudo é reduzido à superestrutura, mas também na superestrutura o Estado é reduzido à ideologia. Aliás, como Gramsci não gosta de falar da ideologia ao tratar do Estado, o Estado é reduzido, por um lado, a essa unidade ética e, por outro, ao fato de que essa unidade é ao mesmo tempo imposta e consentida, ou seja, [o Estado é reduzido] àquilo que Gramsci chama de hegemonia.
Não podemos deixar de concluir que o historicismo “absoluto”, que é filosoficamente impensável, confessa aqui sua própria impotência filosófica, ao produzir – em um domínio diferente, a respeito da Igreja, do Estado e assim por diante – o pensamento filosófico que o subentende: um pensamento normativo e, portanto, idealista. Assim como há, para Gramsci, o “modelo” da Igreja, também há para ele o “modelo” da França, ambos perfeitos e bem-sucedidos a sua maneira e homogêneos entre si. Há também o “contramodelo” da Itália: um país anormal, que anormalmente nem sequer conseguiu se tornar uma nação, fazer “sua Revolução Francesa” e dotar-se de um verdadeiro Estado. Em suma, há na história o normal e o patológico. Por que? Gramsci naturalmente nos remete à história, isto é(20), à infinidade dos fatos históricos, sem __________, sem modos de produção, sem lutas de classes (__________ não era exatamente comunista), sem Estado material nem aparatos ideológicos de Estado: indefinidamente, fatos históricos __________ estável, tornando possível pensar a mudança, _________ fato.
Eis o cúmulo do paradoxo(21): quando esse pensamento historicista, mas normativo, se vê diante da __________, que não corresponde nem a seu ___________ ideal nem às condições ideais de sua __________ de um Estado ainda assim real, que realiza a unidade __________ reformas econômicas, políticas e “morais”, educando também os __________ de um Estado que é verdadeiramente funcional, mas não é __________ de uma “Revolução Francesa” (por exemplo, o Estado italiano), então Gramsci fala de uma “revolução passiva”.
Isso significa que, nesse caso, a história não foi feita como __________. Em vez de vir de baixo, de um movimento popular unificador, a revolução veio de cima, tendo sido realizada na __________ pela burguesia aliada à monarquia, e o povo permaneceu __________ nela. Não é nada certo que as pessoas foram __________, mas simplesmente o curso da história, inteiramente histórico __________, não foi o que deveria ter sido. Isso significa que existem a história boa e a má. Com isso, o historicismo rompe-se em dois, mas as duas partes __________ subsumidas a uma única norma, que as __________, não está claro por que, a menos que se pense em __________.
Esse conceito de “revolução passiva” ganha uma extensão imensa em Gramsci. Ele não o emprega apenas para pensar o __________ do Risorgimento popular(22) e a usurpação das suas tarefas históricas pela aliança celebrada entre Cavour e a monarquia. Ele também o emprega para o fascismo e o nazismo(23); além disso, nas entrelinhas, ele o emprega para a URSS de Stalin. É verdade que ele vislumbra algo correto com essa designação: a ausência da iniciativa popular nessas “revoluções” singulares; que tudo nelas vem de cima e, portanto, a separação prevalece entre o Estado, cada vez mais fortalecido e arbitrário, e as massas populares, cada vez mais “estranhas” a seu destino histórico; e que, em vez do reinado da bela unidade de um Estado ético, vemos o Estado penetrar de fora nas massas e na “sociedade civil”, a fim de lhes impor suas reformas e organizar as pessoas na unidade forçada e artificial dos sindicatos e do partido do Estado. Já que a revolução “passiva” e anormal sempre se opõe a uma revolução ativa e normal, Gramsci não está longe de opor a todos esses Estados, não-éticos e não-universais em sua unidade, a imagem de outro tipo de revolução, que por sua vez é ativa e, portanto, normal, uma revolução que se desenrola ao mesmo tempo para além dos mares, na América de Roosevelt: a revolução do New Deal.
Não há como negar que, com essa terminologia e esses exemplos, Gramsci vislumbra algo da realidade. Porém, a questão é saber o que e como ele o vislumbra. Não podemos deixar de fazer duas observações a esse respeito.
Em primeiro lugar, podemos notar que Gramsci quase nunca usa um termo que certamente é aberto à crítica, mas que ainda assim foi consagrado por seu uso na teoria marxista: o termo contrarrevolução. Na mesma linha, podemos notar que Gramsci, que pensa o curso da história em termos de “revoluções” ativas e passivas, parece insensível aos fenômenos da regressão, ou mesmo do atraso ou da estagnação. Essas duas observações apontam no mesmo sentido: para Gramsci, que pensa no interior de uma boa e velha filosofia idealista da história, o curso da história está orientado de antemão; a história tem um sentido, portanto uma finalidade. Toda sua crítica ao Manual de Bukharin distanciou-o claramente do mecanicismo, mas apenas para aproximá-lo do finalismo. Há um indício notável disso: a razão pela qual Gramsci(24) remete constantemente a duas frases absurdas (e idealistas) de Marx no Prefácio à Contribuição(25): “um modo de produção nunca desaparece antes de ter esgotado todos os recursos de suas forças produtivas” e “a humanidade impõe a si mesma apenas as tarefas que é capaz de realizar”. Nessas duas frases, que literalmente não significam nada, e cuja ocorrência em Marx é explicada apenas pela sobrevivência de uma filosofia da história, Gramsci detecta a pedra angular e o fundamento teórico do pensamento de Marx sobre a história!...
Então, podemos compreender por que Gramsci pensa toda a história dentro de uma única categoria, a da revolução, e por que, em sua perspectiva normativa, ele não tem outro recurso senão pensar a história, seja na forma da revolução ativa, que carrega em si as premissas e a promessa de um verdadeiro Estado ético, seja na forma da “revolução passiva”, realizada por um Estado mau, não ético e incapaz de produzir uma verdadeira unidade cultural entre seus cidadãos.
Porém, essa noção de “revolução passiva”, que certamente evoca como contraponto a noção de revolução ativa que a acompanha (uma expressão que Gramsci não usa como tal), revela que, para Gramsci, a essência da história, através de formas normais ou anormais de revolução, é a atividade: seja a presença ou a ausência de atividade. Na verdade, em última instância, trata-se da atividade (ou inatividade) das massas populares – isso confere ao pensamento de Gramsci um aspecto progressista, ou mesmo populista – mas certamente se trata da atividade.
Ora, para expressar, nesse nível de imediatismo, ou seja, de abstração, a “essência” da história, Marx nunca fala de atividade, exceto em seus textos de juventude, de inspiração crítica fichteana, e na filosofia materialista-empirista da história, que ele defende em A ideologia alemã. Se, ainda nesse nível, tivéssemos que indicar o termo que convém a Marx, para designar a “essência” da história, sem dúvida esse termo seria prática. Mas a atividade, que tanto interessa a Gramsci, é para a prática como sua verdade interior. A atividade está oculta em toda prática. Atividade de quem? Dos indivíduos, dos “homens”, obviamente. É por isso que o idealismo da atividade nos remete de forma bastante natural e direta ao idealismo dos “homens que fazem a história”(26), ao idealismo da atividade dos indivíduos, que vemos “partir de si mesmos” n’A ideologia alemã(27), atuando (em todos os sentidos do termo), produzindo bens de consumo, atuando na política, na moral e assim por diante. Nessas condições, não nos surpreendemos ao encontrar em Gramsci os grandes temas do humanismo e a identidade formalmente afirmada entre o “historicismo absoluto” e o “humanismo absoluto”(28). Devemos reconhecer em Gramsci, se não o mérito de pensar corretamente, pelo menos o de pensar consistentemente o que ele pensa errado. Isso é algo de grande valor para quem sabe ler.
No entanto, ainda podemos fazer outra observação sobre essa “revolução passiva” e as consequências da introdução desse conceito como um conceito essencial na visão de Gramsci. Se Gramsci vislumbra algo real, como ele o faz? É nesse ponto que nos espera a maior decepção. Pois Gramsci fornece, sob a cobertura de uma filosofia normativa da história, nada além de puras descrições superficiais. Não se deve interpretar mal: não se deve menosprezar o superficial, pois este pode conter certos elementos de conhecimento e, sobretudo, indícios e sintomas que podem, desde que analisados verdadeiramente, conduzir ao limiar do conhecimento real. Porém, tal como o superficial se apresenta, ele é apenas superficialidade. O que ganhamos ao observar que há revoluções que partem das massas populares e outras que, paradoxalmente, são feitas pela classe dominante? A menos que seja necessário unificar de antemão toda a história sob o conceito de revolução, o que autoriza esse jogo de palavras que consiste em falar de “revolução”, ao mesmo tempo, para a Revolução Francesa, Roosevelt, Cavour, Mussolini e Hitler, e Stalin? De que forma o emprego do termo “revolução” na expressão “revolução passiva” nos proporciona o mínimo de conhecimento? O uso abusivo desse termo não nos mergulha em confusão? E o que ganhamos ao descrever, como faz Gramsci, as características gerais da “revolução passiva” em oposição à revolução ativa ou verdadeira?
Bem, aprendemos certas coisas. Acima de tudo, aprendemos que a classe dominante pode realizar tarefas que normalmente deveriam ter sido realizadas pelas massas populares. Grande coisa! Quem pode dizer que as mesmas tarefas estariam envolvidas se o movimento popular existisse? Isso só pode ser afirmado em virtude de uma concepção finalista da história, que estabelece as mesmas tarefas de antemão. Melhor seria as massas populares as realizasseem. Se, no entanto, aquelas forem incapazes de o fazer, então a classe dominante irá realizá-las, e isso “não será bom”, porque as coisas irão, mais cedo ou mais tarde, correr mal…
Para tocar no ponto mais delicado dessa pseudoteoria da história: como é que Gramsci explica o fato de que, quando certas tarefas estão historicamente na “ordem do dia” da história (constituir um Estado nacional, realizar uma revolução etc), as massas populares podem estar ora presentes, ora ausentes? Como ele explica o fato de que, quando certas tarefas estão historicamente na ordem do dia da história e as massas populares não as realizam, acontece (que coincidência!) que as classes dominantes estão disponíveis para realizá-las, onde, durante séculos, ninguém (como no caso da própria Itália) esteve presente para realizá-las?
Gramsci, ou um filósofo gramsciano, poderia sempre responder citando uma série de dados históricos, mas como estes são tão superficiais e empíricos quanto o fato a ser explicado, ele nunca conseguirá ultrapassar a dificuldade que ele mesmo criou para si, artificialmente, a partir de sua filosofia. Pois, assim como não podemos explicar a água em um copo como referência para todos os cursos de água do mundo, não podemos explicar um dado histórico (no sentido de um dado histórico imediato) pela sucessão, por mais longa e múltipla que seja, de todos os dados históricos do mundo. É por isso que, mesmo no que elas têm de novo, as “análises” de Gramsci – que não são análises, mas a descrição de um dado histórico, a decomposição desse dado em certos elementos que são arbitrariamente isolados, e a comparação desses elementos com outros elementos extraídos de outros dados históricos – não produzem conhecimentos reais, mas ilusões de conhecimento, certamente acompanhadas do aspecto “positivo” contido em todas as ilusões, que não são erros.
A razão disso é bem clara. Sendo Gramsci coerente com si mesmo, e tendo demonstrado essa “consciência filosófica de si” com sua declaração de “historicismo absoluto”, ele tem naturalmente uma tendência a crer que há no dado histórico imediato, como tal, uma luz inerente sobre si mesmo e sua própria verdade. Por isso, ele se agarra estritamente ao dado histórico, nunca ultrapassando seus limites. Por isso, ele se contenta em descrevê-lo, extraindo de elementos arbitrariamente “abstraídos”, comparados com outros elementos extraídos (também arbitrariamente) de outros dados históricos, a verdade interior do dado histórico em questão, assim esclarecido por sua luz própria. Marx escreve que, “se a essência das coisas fosse imediatamente visível, a ciência não seria necessária”(29).
Para Gramsci, a essência do que é histórico (e tudo é histórico) é imediatamente visível, à custa de algumas abstrações empíricas e algumas aproximações empíricas. Spinoza diz que o conceito de “cachorro” não late(30). Para mencionar um exemplo “histórico” que teria sido caro a Gramsci, podemos falar dos gansos do Capitólio Romano. Poderíamos levá-lo a admitir que o conceito de “ganso” não grasna, não porque este seja um conceito, mas porque o conceito não existe. Ele poderia dizer que o conceito de “história” não é histórico, não porque a história não seja histórica (ela nada mais é do que isso), mas porque não há um conceito da “história”. Na verdade, se não há um conceito de “história”, já sabemos o porquê: pois Gramsci tem uma Ideia da história, ou ainda, a história é a Ideia, ou seja, ela segue rumo a um Fim.
No limite, se o que é histórico contém em si mesmo, imediatamente (isto é, empiricamente), sua própria essência, basta se atentar à sequência dos eventos históricos tal como estes estão dados, em sua empiricidade. É precisamente isso o que Gramsci faz, tomando descrições arbitrárias por análises verdadeiras. Gramsci não é um teórico da história, mas um leitor da história: para ele, a história é como um texto que entrega seu sentido, imediatamente, a quem o lê. Seu sentido… Exatamente, toda a ilusão está aí. Pois um texto não entrega ao leitor o seu sentido, mas um sentido, que nasce do encontro da imposição ou afloramento de um sentido no texto em relação a todos os textos que satisfazem ou assombram a mente do leitor, pois eles estão "no ar". Isso equivale a dizer que Gramsci “lê” a história com a ilusão do empirismo absoluto (idêntico ao historicismo absoluto), que insiste em acreditar – por razões que nada têm a ver com a história, que ele isola para lê-la – que o sentido da história aflora imediatamente de sua leitura.
É aqui que as coisas poderiam se inverter, sendo necessário colocar a questão de fato: por que Gramsci viveu nessa ilusão? Ou melhor: por que ele precisava dessa ilusão? A resposta para essa questão nos levaria a toda uma obra sobre a história das lutas de classes na Itália, sobre a formação filosófica e política dos intelectuais italianos, na qual Gramsci, em sua singularidade, é apenas o caso de mais uma figura histórica.
Mas essa seria obviamente uma concepção histórica de todo diferente da reivindicada por Gramsci. Isso pode sugerir as razões pelas quais ele evitou falar tão bem, sobretudo reconhecendo a infraestrutura, do modo e da relação de produção e reprodução, até mesmo da luta de classes e de tudo o que se possa assemelhar a uma análise teórica, nesta “região” em que ele se refugiou: na superestrutura e, no interior da superestrutura, na política.
Afinal, é para lá que precisamos nos voltar. Pois Gramsci é um político, um grande político. O dirigente dos conselhos de Turim, o grande leninista das lutas de 1921, o fundador do Partido Comunista Italiano com Togliatti, o inimigo incansável do fascismo, que o aprisionou até sua morte, o crítico politicamente lúcido do dogmatismo teórico de uma tradição econômica que vai de Bukharin a Stalin, o homem que, do fundo das grades e contra seu próprio partido, soube se engajar contra as políticas do PCUS e da Comintern; esse homem foi um político excepcional, e todos que o conheceram exaltam sua inteligência, sua força e sua projeção no debate e na ação.
Nada poderia ser mais normal – dirão – que um homem tão imerso na política se interessasse, em seus escritos teóricos, pela política. De fato, basta ler os Cadernos do cárcere para reconhecer que Gramsci trata, sobretudo, da política. Mas é preciso ir infinitamente além. Pois uma coisa é se interessar pela política, outra é sustentar a tese filosófica de que “tudo é política”. Obviamente, estou me referindo à filosofia e, tratando de filosofia, refiro-me precisamente àquela reivindicada por Gramsci: o historicismo absoluto, idêntico ao humanismo absoluto.
Como devemos compreender esses novos desenvolvimentos? Acontece que o termo-chave ainda não foi dito, mas só agora será mencionado. Para ouvi-lo, pediremos um pouco de atenção.
Gramsci refere-se ao marxismo como a “filosofia da práxis”. Dessa forma, ele nega uma distinção tradicional, que tem sido naturalmente explorada e traída, mas não sem motivo: a distinção entre o "materialismo histórico", ou os princípios do conhecimento das condições e formas da luta de classes, e (para não empregar a expressão detestável “materialismo dialético”) a “filosofia marxista”. Mesmo que esta última expressão, que não tomo como minha, deva ser substituída, essa distinção tem suas razões e pode ser defendida. Ora, Gramsci(31) a recusa, a fim de trazer o “materialismo histórico” para dentro da “filosofia da práxis”. Para ele, trata-se da mesma coisa. Para ser claro, em sua visão – tal como na de Mach, que ele leu e aprovou, o mesmo Mach que Lênin(32) criticou tão brutalmente – não há distinção entre o conhecimento das características científicas e uma tese filosófica; a primeira se reduz, em sua essência, à segunda. Portanto, tudo é filosofia (as ciências, a religião, as artes, a política etc). Em todo o mundo, a “filosofia da práxis” é a única consciente de que tudo é filosofia, que toda pessoa é filósofa(33): se fosse assim, no fundo, se tudo fosse desde sempre filosofia, então em que consistiria a atividade filosófica? Em uma simples crítica das ideias falsas sobre o que existe, as ciências, a política, as artes, a religião etc. Ao mostrar o que é falso, revela-se a verdade que as pessoas carregam no fundo de si, mesmo sem o saberem. Eis a primeira e última verdade: que tudo é filosofia.
Todos devem reconhecer, nessa ideia de “crítica”, a velha ideia idealista que pressupõe a existência da verdade, e o poder da verdade, capaz de se libertar necessariamente do erro, desde que a consciência ordinária (a dos “humildes”) reconheça a luz da Verdade que habita na consciência dos doutos. O filósofo, sem se reconhecer filósofo, só pode sê-lo porque existem filósofos que se reconhecem como tal, e entendem que todos são filósofos sem sabê-lo e que tudo é filosofia. Eis o velho idealismo, ligado ao tema da educação (pelo Estado e pelo partido, tão caro a Gramsci).
Que a Verdade habita em cada pessoa sem que se saiba é uma coisa. Mas o que surpreende, no caso de Gramsci, é que essa Verdade filosófica, que habita em cada pessoa, seja enunciada desta forma: tudo é filosofia. Nesse ponto reside o enigma, mas também sua solução. Porque Gramsci, falando de Marx e de filosofia (a filosofia marxista é a única verdadeira, a única que habita, sem que se saiba, no fundo de todas as filosofias), não fala simplesmente de filosofia: ele fala da “filosofia da práxis". Hoje ninguém mais pode afirmar seriamente que esse termo apenas serviu a Gramsci para mascarar seus pensamentos, escapando à censura dos carcereiros, já que eles se colocariam em estado de alerta com o nome de Marx ou o adjetivo marxista.”Filosofia da práxis" exprime incontestavelmente seu próprio pensamento. “Práxis”: Gramsci poderia ter usado a palavra italiana “prático", como diríamos "filosofia da prática", mas ele tomou esse termo emprestado das Teses de Marx sobre Feuerbach, nas quais não consta a expressão "filosofia da práxis", mas "filosofia" e "práxis" separadamente. Seria essa uma distinção insignificante? Creio que não. Pois, ao recusar o emprego do termo”prática” – que pode vir sozinho (a prática), mas facilmente costuma ser determinado (a prática política, social, estética, filosófica ou religiosa) – e, ao preferir o termo “práxis”, Gramsci coloca o acento, assim como Marx nas teses sobre Feuerbach, na “subjetividade” da “práxis”, na interioridade de toda prática, isto é, na atividade como já a conhecemos.
Essa predileção filosófica pelo tema da atividade, que está entre os temas associados ao termo “práxis”, não é de todo desprovida de sentido no pensamento de Gramsci. Se tudo é filosofia, e se a atividade constitui a essência da filosofia, então essa proposição aparentemente enigmática, “a filosofia da práxis”, assume um sentido preciso. A filosofia da práxis teria motivos para sustentar a tese de que tudo é filosofia, se a essência da filosofia fosse de fato a atividade. Aqui estaríamos muito próximos de um pensamento aparentemente fichteano ("no princípio era a ação") se, ao contrário do transcendentalismo de Fichte, não estivéssemos no campo do empirismo historicista. "Tudo é atividade" não designa a atividade transcendental a priori do Ato (Fichte) nem a atividade transcendental concreta da “práxis” que retoma, em qualquer prática predicativa, a síntese passiva de uma práxis antepredicativa (ao final da vida, Husserl também desenvolveu em Erfahrung und Urteil [Experiência e julgamento](34) uma “filosofia da práxis”, mas de tipo constitutiva-concreta), mas sim, de forma muito simples e categórica, o fato empírico de que "as pessoas", isto é, os indivíduos concretos, são naturalmente – basta observá-los – “ativos” por essência, seja na solidão ou na vida social (por excelência), e que sua atividade é o que “faz a história”.
Analisemos este ponto: tudo é filosofia. A verdade de toda filosofia está na “filosofia da práxis”. A práxis é, em sua essência, atividade. Então tudo é atividade. Sem dúvida, essa tese vale para todo o universo. Gramsci não se interessa por ela, mas também não a exclui. De qualquer forma, tudo é atividade no mundo humano. Isso significa que os indivíduos são ativos e sua atividade é o que faz a história.
Eis o ponto final: se os indivíduos são ativos, como se pode notar, também notamos que suas atividades são diferentes. Aparentemente, pouco há em comum entre a atividade de produção dos meios de consumo e a atividade de orar a Deus, ou a atividade de filosofar, a atividade política e a atividade de jogar futebol. Bem, é aí que você se engana: existe uma essência comum a todas essas atividades, ou mais precisamente, entre essas atividades diferentes, existe uma que é ao mesmo tempo a essência de outras atividades e sua própria essência: a política. Depois de ter afirmado que tudo é filosofia, Gramsci(35) declara: toda filosofia é política. Como sabemos que a essência de toda filosofia está na atividade, podemos dar à palavra "política" um significado preciso: a atividade política(36). Isso se encaixa muito bem.
Nesse ponto, Gramsci entra em um assunto que realmente lhe é caro, no ponto arquimediano de toda a verdade e toda ação possível, o que inclui toda ação política; quando Gramsci pensa em ação política, sem qualquer sombra de dúvida e por excelência, ele quer dizer a ação política revolucionária das massas orientadas pelo “Príncipe Moderno”, o partido comunista, para a tomada do poder do Estado.
Demarcamos esquematicamente as etapas desse imenso desvio de pensamento para chegar até aqui, precisamente neste ponto, entre os muros de uma prisão sórdida, onde o grande líder político conduz o filósofo pela mão: à verdade de todas as verdades, àquela que permitirá às massas populares – se um dia puderem ler suas notas manuscritas, mergulhando em sua verdade – não alavancar o mundo(37), mas mudá-lo, fazendo finalmente a revolução. Isso foi pensado na solidão pessoal e política, nos anos em que as Frentes Populares ainda estavam de pé, mas o fascismo triunfava do Oriente ao Ocidente, ao redor do globo, sem que um único raio de esperança iluminasse o futuro do movimento dos trabalhadores, sem que nada pudesse vir realmente da URSS, aprisionada pelo stalinismo, portanto na noite mais opaca e desesperadora da história moderna; isso só pode encher de emoção e fazer tremer de admiração os leitores, cheios das mesmas ilusões que ainda alimentamos sobre nosso próprio futuro.
Porém, isso não nos isenta de examinar atentamente os pensamentos de Gramsci sobre a política, não pelo prazer filosófico de apreciá-los (por seu valor ou seus erros), mas porque esses pensamentos efetivamente penetraram, como desejava seu autor, nas grandes massas do mundo, não apenas na Itália, onde Gramsci é tratado, a partir de Togliatti, como o teórico oficial do Partido Comunista Italiano, amplamente adotado muito além do Partido Comunista e dos sindicatos de esquerda, mas seu pensamento está se tornando hegemônico dentro de círculos comunistas e ao seu redor na Espanha, na Inglaterra, no Japão, nos Estados Unidos e em muitos países capitalistas. De fato, o pensamento de Gramsci vem se tornando reconhecidamente o pensamento daquilo que chamamos de eurocomunismo. É por isso que gostaria de examinar aqui os temas gramscianos sobre a política: por razões políticas. Foram apenas essas razões que me compeliram ao longo desvio anterior, para que possamos ver claramente este local onde tudo se determina: a política.
Mas antes de compreender a concepção de política em Gramsci, é preciso fazer mais um desvio. Primeiro, é preciso entender que Gramsci pensa de uma forma tão original que nos perguntamos até que ponto ainda podemos ligá-lo a Marx. Por exemplo, vimos que Gramsci realmente não levou em conta, ou mesmo negligenciou (e, não dispondo d'O capital na prisão, talvez ignorou certos pontos?) da teoria marxista do “modo de produção”, da infraestrutura e da relação de produção. A essa lista de negligências, deve-se acrescentar aquela que, ao lado da teoria da relação de produção, ordena tudo, especialmente toda a teoria marxista da superestrutura (embora Marx nunca tenha se expressado explicitamente sobre este ponto): a teoria da reprodução.
Encontramos esse conjunto de conceitos em Marx, com todas as letras, alguns desenvolvidos extensamente (infraestrutura, relação de produção capitalista e reprodução; de fato, este último conceito foi desenvolvido apenas em termos de reprodução do capital constante e da força de trabalho) e outros desenvolvidos mais brevemente (modo de produção, superestrutura e todos seus “elementos”: o Estado, o direito e as ideologias).
Dito isso, negligenciando ou abandonando todas essas noções decisivas, e tendo demonstrado (aliás, de forma imprecisa) que algo da superestrutura penetra na infraestrutura – isto é, um esboço da demonstração de que se pode "ler" a infraestrutura a partir da superestrutura, portanto com um convite a essa “leitura” – Gramsci construiu à sua maneira, muito distante de Marx, sua própria teoria.
Em vez da distinção entre infraestrutura e superestrutura, criticada como mecanicista e metafísica, Gramsci(38) nos apresenta outra distinção, aparentemente conhecida há muito tempo: a distinção entre o Estado e a sociedade civil. Digo "aparentemente" porque, na tradição filosófica, econômica e política do idealismo burguês, essa distinção aparece explicitamente no século XVII, tendo sido registrada e precisamente descrita na filosofia do direito de Hegel(39), para quem o Estado é a realização da Ideia, portanto do universal concreto, e a sociedade civil é o “sistema de necessidades” privadas – isto é, as necessidades de trabalho, da produção econômica e do consumo – na qual se apresentam os aparelhos (os tribunais, a polícia) e as organizações “civis” (corporações). Na realidade, Gramsci não retoma ao pé da letra essa velha distinção, mas ele ressignifica a “sociedade civil”. Pensando no interior da distinção jurídica burguesa entre público e privado, Gramsci(40) apresenta a sociedade civil como o conjunto de associações privadas que existem fora do Estado. O Estado é público, mas elas são privadas. Gramsci enumera entre elas as igrejas, as escolas, os partidos políticos, os sindicatos etc.
O que chama atenção é sua natureza privada. Logo, elas não são públicas e não têm relação jurídica com o Estado. Porém, ao mesmo tempo, Gramsci qualifica as mesmas associações como “aparelhos hegemônicos”, tomando o termo “aparelho” da teoria marxista do Estado, e o termo “hegemonia” da tradição leninista. Nada mais nos será dito sobre esses "aparelhos hegemônicos", sobre sua distinção, sua estrutura ou seu motor de funcionamento. Sabemos apenas que se tratam de “aparelhos”, mas esse termo, que serviu de “solução” provisória quando Marx e Lênin falam do Estado, não é explicado. Sabemos que esses aparelhos são “hegemônicos”, ou seja, produzem um efeito de consenso entre as massas populares. De maneira completamente aristotélica, ao declarar esses aparelhos como “hegemônicos”, Gramsci os define pelo fim perseguido, idêntico ao efeito que produzem. Caso contrário, não seriam o que são.
É ridículo dizer que “um guarda-chuva é quando chove”, mas não soa ridículo dizer que “um guarda-chuva protege da chuva”, o que é uma pena, pois isso não diz nada sobre os guarda-chuvas. Ora, a causa da hegemonia nos aparelhos hegemônicos permanece como uma questão não resolvida, pois Gramsci nunca nos diz nada sobre isso. Se dissermos que "hegemonia é quando se diz sim", não avançamos em nada. Podemos dizer "sim" porque concordamos livremente, ou podemos dizer "sim" sob coação. Rousseau já sabia disso quando falou do ladrão que faz alguém dizer "sim" apontando um revólver em sua cara(41). Para ser mais claro: a força também pode ser um meio de hegemonia. E a força pode ser exercida de diversas maneiras, seja pela violência física, seja pela ameaça da sua presença, mas sem violência (a política de Lyautey(42): mostrar força para não ter que usá-la, ou não mostrar força para usá-la), ou ainda, de forma mais sutil, utiliza-se a força por meio de sua ausência (as tropas de choque confinadas em seus quartéis, ou os tanques sob os grandes bosques de Rambouillet: todos sabem que eles existem e que interviriam se... Portanto, a ordem reina por meio de sua própria ausência, tal como a ausência de um estoque de ouro e de valores invisíveis e imóveis faz reinar a ordem necessária no mercado de capitais, moedas e valores). Em suma, não se diz nada sobre a hegemonia quando não se diz como ela é mantida e como ela é aceita, mas se mantém sempre no nível da descrição.
Se insisto nessa noção, é porque ela será utilizada inúmeras vezes por Gramsci, não mais em sua teoria da “sociedade civil”, mas em sua teoria do Estado. Aqui as coisas tornam-se muito confusas, por uma razão muito simples: Gramsci, que é um revolucionário, sabe bem que a tomada do poder do Estado é a questão central de toda revolução, o que ele aprendeu com Marx, Lênin e toda a tradição marxista. Ora, o problema que se coloca é como ele consegue ligar os fundamentos da teoria marxista sobre o Estado a sua teoria da “sociedade civil” – portanto, sua própria descoberta, a saber, que a "sociedade civil" não diz respeito à infraestrutura, nem apenas “[ao sistema] de necessidades” (Hegel) ou à economia pura, mas ao conjunto de “aparelhos hegemônicos”.
Mais uma vez, negligenciando tanto a infraestrutura como a reprodução da relação de produção, ele aplica seu método fundamental: a descrição dos dados; e seu principal pressuposto filosófico: todos os dados são históricos, portanto todos os dados políticos carregam em si sua própria luz. Bastam uma descrição exata e comparações bem escolhidas. Em suma, basta ver bem, ler bem. Agora, o que Gramsci “vê”? Ele vê, inaugurando assim uma verdadeira “teoria política” no sentido burguês, que todos os Estados têm dois “momentos”: por um lado, o momento da força, da coerção, da violência ou da ditadura; por outro lado, o momento da hegemonia, do consenso e do acordo. É claro que reconheceremos no primeiro “momento” o que Marx e Lênin chamam de aparelho repressivo do Estado. Mas e no segundo?
Pois bem, Gramsci nos revela que aí se esconde a “sociedade civil”! Isso é normal, pois sendo composta por aparelhos hegemônicos, sua função é a hegemonia e a obtenção de consensos. Mas isso também é anormal, pois o segundo momento do Estado, como nos foi bem explicado, seria distinto do Estado, por ser “privado”. Então já não entendemos mais nada: como pode o que foi explicitamente pensado fora do estado constituir o segundo “momento” do Estado? Teria o Estado assim um dos seus “momentos”, uma das suas funções decisivas, “fora de si”?
Parece extremamente interessante que um “momento” essencial do Estado, o segundo, assuma uma forma de existência exterior ao Estado. Então, talvez seja necessário pensar nessa relação paradoxal, para se chegar a um conceito relativamente correto. Foi isso que tentei realizar por conta própria, propondo falar sobre os aparatos ideológicos do Estado(43), uma fórmula que tem uma dupla vantagem: por um lado, encerra-se a contradição entre “dentro" e "fora do Estado”; por outro lado, inscreve-se em seu conceito a indicação formal do modo de funcionamento dos aparelhos hegemônicos, a ideologia, o que também tem como consequência obrigar-nos a começar a pensar na materialidade das ideologias.
Porém, é evidente que Gramsci não está nem um pouco interessado em confrontar sua própria contradição. Pelo contrário, ele quer sobretudo mantê-la como está. Não só porque ele se contenta em descrever o que vê, sem chegar ao ponto de pensá-lo – no mínimo, ele desiste de pensar nisso quando se depara com essa contradição –, mas porque ele precisa dessa contradição. Esta é uma necessidade, veremos em breve, por motivos políticos.
Portanto, vamos colocar essa contradição provisoriamente entre parênteses, seguindo Gramsci em suas reflexões sobre suas descrições. Pois é extremamente pobre dizer que há dois momentos no Estado, o da força e o da hegemonia. Como podemos enriquecer esse pensamento? Imaginaríamos que Gramsci se empenharia, pelo menos, na análise de cada um desses dois “momentos”, o que nos faria descobrir algo novo no Estado. Mas não. Nem uma palavra. Tudo o que há de novo e importante a dizer foi dito sobre a “sociedade civil”. Não teremos mais nada.
Ou melhor, sim, teremos uma espécie de variação imaginária (correspondendo sempre a dados históricos empíricos) para ver que relações podem existir entre os dois “momentos” do Estado. “É óbvio” para qualquer um que, dependendo da “dosagem” de força e de hegemonia (note que ainda não sabemos como se exerce essa hegemonia), estaremos perante tipos de Estado diferentes. Apresento agora os dois extremos da gama de variações: em um extremo, temos um Estado onde a força prevalece de forma esmagadora e a hegemonia é quase nula, por exemplo na Rússia czarista, onde a força era esmagadora e "a sociedade civil... gelatinosa"; no outro, temos um extremo onde a força é a menor possível e a hegemonia, a maior possível, por exemplo... mas vejamos nosso famoso Estado ético bem equilibrado, para o qual, ou para seus semelhantes, Gramsci encontra belas fórmulas aristotélicas como: “um equilíbrio justo”...
Porém, Gramsci não terminou de tratar de Marx e Lênin, e da dificuldade de pensar seus pensamentos por conta própria. Porque ele sabe bem que o Estado também é (ele não gosta nem um pouco desta palavra) um “instrumento” nas mãos da classe dominante, de modo que, por trás dessa descrição de doses variáveis de força e hegemonia, surge outra questão bastante grave: a da dominação de classe exercida por meio do Estado, a dominação de classe que tradicionalmente, no marxismo, leva o nome de ditadura de classe. O que significa que o Estado está em segundo lugar em relação a essa dominação ou ditadura de classe (deve ficar claro que a ditadura de classe não designa formas políticas variáveis, que vão da ditadura política à democracia parlamentar ou de massas, mas o conjunto de formas de dominação da classe dominante: econômicas, políticas e ideológicas). Isso deve colocar um problema gravíssimo diante de Gramsci: como encontrar, com seus próprios conceitos, aos quais ele insiste em se limitar, recursos para se pensar essa primazia da dominação de classe como um todo sobre seu meio por excelência, que é o Estado?
Neste momento decisivo, Gramsci se recusa a falar de ditadura de classe, e mesmo da dominação de classe. Ele insiste em se ater apenas aos seus próprios conceitos de força e hegemonia. O que ele faz? “Infla” excessivamente o conceito de hegemonia para fazê-lo desempenhar praticamente o papel de substituto do conceito de classe dominante ou de ditadura de classe. É preciso dizer que se trata de uma proeza verbal e teórica! Pois ele localiza inequivocamente a hegemonia nesses “aparelhos hegemônicos” que constituem a sociedade civil. Mesmo sem saber como essa hegemonia foi produzida, pelo menos sabíamos a que domínio “privado” e limitado ela pertencia. Agora, ela não só está ligada ao Estado, permanecendo externa a ele, mas acabará por englobar todo o Estado. E, para ser marxista e leninista, Gramsci acabará pensando o Estado como hegemonia, ou ainda, o Estado como fenômeno de uma hegemonia que o abraça e o domina, mas sem que nunca se tenha questionado, em todas essas “análises”, nem a dominação de classe, nem a ditadura de classe.
Mas ainda não terminamos de tratar da hegemonia. Pois, como marxista e leninista, mesmo pouco se referindo como tal, Gramsci afirma que a luta de classes existe e o que está em questão é o Estado. Mas, como Gramsci acabou pensando no Estado em termos de hegemonia (certamente notamos uma classe por trás dessa hegemonia superior ao próprio Estado), como ele pôde representar adequadamente a luta de classes na qual o Estado está em jogo? Ele encontrou esta fórmula: não falar da luta pela hegemonia, mas de “luta entre hegemonias"(44), como se a luta de classes não fosse também uma luta de forças contra forças, e sobretudo como se as coisas acontecessem entre "hegemonias", como se a "hegemonia" das classes dominadas pudesse realmente "lutar" contra a "hegemonia" da classe dominante.
O que "salta aos olhos" nesse raciocínio, muito conscientemente conduzido por Gramsci, é que, ao nível das palavras, dos conceitos e, portanto, do pensamento, assistimos a uma verdadeira operação de substituição, com a qual Gramsci está tão familiarizado. Partimos da distinção entre força e hegemonia, mas no final a força desaparece. Não há dúvida de que o termo hegemonia toma, portanto, o lugar do conceito de dominação ou ditadura de classe, mas nos encontramos novamente diante de dados empíricos: dessa forma, a dominação de classe é exercida de formas em que a força existe de fato, mas a força é absorvida pela hegemonia, ou seja, pelo consentimento obtido pela classe dominante, assim como o policial é absorvido tanto por sua função (regular o tráfego) quanto pelo trânsito (que ele regula). Em suma, há força em um Estado bem regulamentado, mas ela faz parte de todos e passa despercebida.
Lembre-se que considerei este caso: a força invisível que não intervém, para dizer que foi através da sua ausência (ou, se preferir, de sua quase dissolução nas pessoas), que é concretamente o caso de certos aparatos ideológicos que funcionam assim, com uma força invisível, cuja simples existência possibilita seus efeitos visíveis, que são de todo agradáveis (veja a “psicologia gentil”, a educação etc).
Mas se nos perguntarmos então o que resta, uma vez alcançado esse fim do Estado, percebemos que não é por acaso que Gramsci disse tão pouco sobre a ideologia, calando-se sobre a causa dos efeitos hegemônicos dos “aparelhos hegemônicos”. Ao contrário do que se acredita, essa “hegemonia”, que acaba por resumir todo o Estado, não tem nada a ver com a ideologia. Tal hegemonia não é o reinado pacífico e universal de valores e ideias impostas a todos e aceita por todos. Não. Essa hegemonia é totalmente política, no sentido gramsciano do termo, que ele nunca definiu. Essa política é tanto a “experiência vivida” por todas as pessoas, quanto o fato de que essa “experiência” constitui sua essência, a essência de sua atividade, que, recordemos, é a essência de toda a filosofia (lembre-se de que tudo é filosofia). Essa política é ao mesmo tempo – e essa segunda determinação é a causa da primeira – “a política no posto de comando”; antes de mais nada, ela está na consciência daqueles que fazem política, ou seja, em graus variados, todas as pessoas. Que se trate sempre de política no sentido gramsciano, ou seja, em um sentido empirista, é essencial para compreender seu destino, mas esse pensamento vem verdadeiramente de um político e marxista, que sabe muito bem que uma bela unidade ética não é produzida por si só, mas que se deve produzi-la em termos de um longo processo de luta (de atividade política), na qual a intervenção do partido é essencial; ele sabe muito bem que os valores ideológicos não são o motor da história, e que estes só serão impostos às pessoas do “Estado regulado” através da “política”.
Então se coloca a seguinte questão: por que foi necessário deduzir esse resultado final – tão clássico, e que não nos traz nada de novo em relação a Marx e Lênin, e que em última análise é muito pobre – de um sistema de pensamento e de conceitos estranho a Marx e Lênin? Por que foi necessário passar por todas essas “descobertas” que se apagam à medida que as descobrimos e avançamos? Por que foi necessário passar por todas essas acrobacias sobre a hegemonia, para alcançar resultados tão simples e conhecidos? A razão disso tudo está em outro lugar.
Mais uma vez, está na hegemonia (em seu terceiro sentido)! De fato, Gramsci é o primeiro teórico marxista a colocar uma ênfase muito forte na necessidade de que a classe dominada assegure “sua hegemonia” antes da tomada do poder. Todos os clássicos do marxismo disseram abertamente estas duas coisas: 1) a vanguarda da classe operária deve ampliar sua influência ao máximo, conquistando “para suas ideias” o maior número de adeptos, não apenas entre a classe operária, mas entre a pequena burguesia e a intelectualidade; 2) o partido da classe operária deve ampliar sua influência, sua “hegemonia”, sobre as organizações de massas que lhes são próximas, com as quais o estabelecimento de alianças é essencial para a tomada do poder, e sem as quais o canto do proletariado corre o risco de não ser mais que um “solo fúnebre”. Gramsci adere a essas duas teses, mas acrescenta uma terceira: a classe operária deve se tornar hegemônica na sociedade, como um todo, “antes da tomada do poder”.
Então, o que vem a significar “hegemonia”? A resposta de Gramsci, como bom político marxista, é clara: não se trata apenas de ampliar a influência e a audiência das ideias do partido a toda a sociedade, que assim se tornaria, milagrosamente, marxista antes de se tornar socialista. Também não se trata da tomada do Estado, pois apenas nos preparamos para sua conquista. Trata-se de nos apoderarmos dos centros de poder na sociedade civil, trata-se de nos apoderarmos da própria sociedade civil.
Isto só pode ser compreendido na posição da sociedade civil em relação ao Estado. De fato, segundo Gramsci(45), podemos representar a disposição dos dois “momentos” do Estado segundo uma metáfora espacial: o Estado está ao centro, como um reduto ou uma fortaleza; a força está em seus muros e por trás deles. Ao redor de todo esse Estado-fortaleza, ao largo, nos campos, estende-se uma profunda rede de trincheiras e casamatas: essa rede consiste na sociedade civil. Entendemos que essa rede é “gelatinosa” quando o Estado é apenas força, então a única forma de tomá-la é através de um ataque frontal: o Palácio de Inverno. Mas “vemos” que, em nossos Estados, a rede é densa e profunda. Pois bem, devemos apoderar-nos dessa rede, passo a passo, uma trincheira por vez, tomando toda a sociedade civil: então o Estado ficará sem defesa e podemos adentrá-lo.
Vemos aqui as bases do pensamento de Gramsci(46): trata-se de uma estratégia – alternativa, como gostam de dizer nossos amigos italianos – para a tomada do poder nos países capitalistas “desenvolvidos”, com uma forte rede de casamatas, ou seja, com uma sociedade civil forte. Trata-se de uma “guerra de posições”. Hoje, essa estratégia da “guerra de posição” de inspiração gramsciana inspira todos os partidos comunistas que se declaram “eurocomunistas”, como Paul Laurent defendeu publicamente em seu artigo(47) publicado no L'Humanité [em 13 de maio de 1978]. Entendemos que tal estratégia merece nosso interesse e “reflexão”(48).
Por minha conta, gostaria de apresentar as seguintes observações.
De fato, quando Gramsci trata da “sociedade civil”, ele a define de duas formas. Não enfatizei a segunda, de modo a dar todas as chances à coerência problemática de seu pensamento. Porém, Gramsci não limita a definição de sociedade civil ao conjunto dos “aparelhos hegemônicos”. Porque, se tirarmos o Estado, assim como os aparelhos hegemônicos, não restaria mais nada? Resta justamente a infraestrutura, a respeito da qual Gramsci é tão discreto; ou, se preferirmos, resta a economia, os negócios de todos os tipos, o consumo e a vida familiar. Essas “organizações” também integram a sociedade civil? Gramsci não afirma isso, mas poderíamos afirmar, rigorosamente, que as empresas, as famílias etc. são “aparelhos hegemônicos”. Gramsci percebe, confusamente, que isso não funcionaria muito bem: isso vale para as famílias (digo por minha conta(49)), mas nas empresas ocorre ainda uma coisinha que, mesmo havendo hegemonia, também deve ser levada em conta: a extração de mais-valor. Gramsci sabe o bastante de infraestrutura para não falar dela, evitando colocá-la na sociedade civil. Portanto, há uma enorme lacuna no sistema de Gramsci: tudo que diz respeito à relação de produção e exploração, assim como tudo que constitui sua condição material; o capital, o imperialismo (sobre o qual não há uma palavra em Gramsci), a força de trabalho, sua reprodução etc. Quando Gramsci evoca a “sociedade civil”, em seu sentido amplo, portanto clássico (tudo que não é o Estado), e portanto burguês, ele se contenta em pronunciar essa palavra, pois precisa dela de passagem, dada a necessidade de um raciocínio – mas ele nunca entra na realidade, no detalhe, no mecanismo e no papel (“determinante, em última instância”) dessa imensa lacuna.