História da Revolução Russa

Léon Trotsky


Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro?


Os advogados e os jornalistas pertencendo às classes atingidas pela revolução tiveram, no seguimento, despendido bastante tinta para demonstrar que em Fevereiro não houve em suma senão um motim de mulheres, reforçada por uma revolta de soldados; foi precisamente assim que alguns nos apresentaram a revolução. Luís XVI, no seu tempo, quis ele também imaginar que a tomada da Bastilha foi de facto uma revolta, mas explicaram-lhe com deferência que era na verdade uma revolução! Os que perdem numa revolução estão raramente inclinados em lhe reconhecer o seu verdadeiro nome, porque este, a despeito de todos os esforços dos reaccionários exasperados, toma na memória histórica da humanidade a aureola de uma libertação em relação às velhas correntes e preconceitos. Sempre os privilégios e os seus lacaios experimentaram infalivelmente apresentar a revolução que os tinha derrubado como diferentes das revoluções precedentes, como uma insubordinação, como sarilhos ou motins da ralé. As classes que sobrevivem não se distinguem pelo espírito inventivo.

Logo após o dia 27 de Fevereiro, tentaram estabelecer analogias entre a revolução russa e o golpe de Estado militar dos Jovens Turcos, que, como se sabe, as camadas superiores da burguesia russa tinham sonhado bastante. Essa aproximação foi, contudo, tão pouco convincente que ela reencontrou uma serie de refutações num jornal burguês. Tougan Baranovsky, economista que, na sua juventude, tinha passado pela escola de Marx, e que era na Rússia uma especie de Sombart, escreveu em 10 de Março no Birjevye Viedomosti:

“A revolução turca consistiu num pronunciamento vitorioso do exército, preparado e realizado pelos chefes deste. Os soldados eram somente executantes dóceis dos projectos dos seus oficiais. Em contrapartida, os do regimento da Guarda que, no dia 27 de Fevereiro derrubaram o trono da Rússia, marcharam sem os seus oficiais... Não foi o exército quem desencadeou a insurreição, foram os operários. Não foram os generais, mas soldados que se dirigiram à Duma do Império. E os soldados apoiaram os operários não por obtemperar dócilmente às ordens dos seus oficiais, mas... porque eles sentiam-se aparentados pelo sangue aos operários, como classe trabalhadora, como eles próprios. Os camponeses e os operários constituem as duas classes sociais que fizeram a revolução russa.”

Não há nada a rectificar ou a completar nesses termos. O desenvolvimento ulterior da revolução confirmou suficientemente o seu significado.

O último dia de Fevereiro, em Petrogrado, foi o primeiro dia que seguiu a vitória: dia de entusiasmo, de abraços, de lágrimas de alegria, de desabafos prolixos, mas também o dia onde se disparavam os últimos tiros sobre o inimigo. Nas ruas rebentavam ainda disparos de espingarda. Contava-se que os faraós de Protopopov, ainda inadvertido da vitória do povo, continuavam a disparar do alto dos telhados. Em baixo, disparava-se sobre os granadeiros, as lucarnes e o sinos, onde se imaginava ver fantasmas armados do czarismo. Pelas quatro horas da tarde foi ocupado o almirantado, onde se escondiam os últimos resistentes do que outrora fora o poder de Estado. Organizações revolucionárias e grupos improvisados procediam a prisões na cidade. A fortaleza presídio de Schlusselburgo foi tomada sem resistência. Em todo o momento, novos regimentos aderiam à revolução: na capital e nos arredores.

O queda do regime em Moscovo foi somente um eco da insurreição de Petrogrado. Os mesmos estados de opinião nos operários e soldados, ainda que menos vivamente exprimidos. As posições um pouco mais à esquerda na burguesia. A fraqueza das organizações revolucionárias ainda mais marcada que em Petrogrado. Quando começaram os acontecimentos sobre o Neva, os intelectuais radicais de Moscovo consultaram-se entre eles sobre o que havia a fazer e não encontraram solução. Foi somente a 27 de Fevereiro que nas fábricas de Moscovo rebentaram as greves, seguidas de manifestações. Os oficiais diziam aos soldados, nos quartéis, que a canalha se amotinava nas ruas que era necessário reprimir.” Mas, a partir desse momento, conta o soldado Chichiline, os nossos davam à palavra “canalha” um sentido totalmente oposto!” Pelas duas da tarde, numerosos soldados, pertencendo a diversos regimentos, apresentaram-se diante da Duma municipal, procurando meio de aderir à revolução. No dia seguinte, as greves estenderam-se. As massas avançavam com bandeira em direcção à Duma. Moralov, soldado da companhia automóvel, velho bolchevique, agrónomo, gigante magnânimo, e valente, conduziu à Duma o primeiro destacamento de tropas sólido e disciplinado que ocupou a estação de TSF e outros postos. Oito meses mais tarde, Moralov devia comandar a região militar de Moscovo.

As prisões abriram-se. O mesmo Moralov levou um camião de prisioneiros políticos libertados. Saudando, a mão na viseira, um subcomissário da polícia pediu ao revolucionário se deviam também libertar os judeus. Dzerjinski, mal tinha saído da casa de reclusão e sem ainda se ter desembaraçado da vestimenta de prisioneiro, tomava a palavra no interior da Duma onde o soviete estava já em formação. Dorofeiv, artilheiro, devia contar mais tarde como os operários da doçaria Siou apresentaram-se, no primeiro de Março, com bandeiras, no quartel de brigada de artilharia, confraternizaram com os soldados e de que maneira, no excesso da alegria, vários desses homens não deixaram de chorar. Houve na cidade alguns tiros emboscados, mas no conjunto, não se produziram afrontamentos armados e não houve vítimas: foi em Petrogrado que aguentava por Moscovo.

Num certo número de cidades da província, o movimento só se desencadeou no primeiro de Março, quando a revolução estava já realizada em Moscovo. Em Tver, os operários, abandonando o trabalho, foram manifestar diante dos quartéis e, misturados aos soldados, desfilaram nas ruas da cidade. Nesta época, cantava-se ainda a Marselhesa e não a Internacional. Em Nijni-Novgorod, milhares de pessoas juntaram-se diante do edifício da Câmara municipal que, como a maior parte das cidades, fazia de “palácio de Tauride”. Após um arengue do presidente da Câmara, os operários, com as suas bandeiras vermelhas, foram libertar os detidos políticos. Sobre os vinte e um contingentes que formavam a guarnição, dezoito vieram, antes de anoitecer, aderir espontaneamente à revolução. Em Samara e em Saratov, houve comícios, e os sovietes de deputados operários foram constituidos. Em Kharkov, o chefe da polícia, tendo tido tempo de se informar na estação sobre os acontecimentos, subiu no carro diante da multidão excitada, e, tirando o boné, gritou: “Viva a revolução ! Hurra !” Ekaterinoslav recebeu de Kharkov a notícia. À cabeça da manifestação caminhava o ajudante do chefe da polícia, apoiando com a mão o forre do seu grande sabre, numa atitude regulamentar com a parada, nos dias de festa imperial. Quando foi definitivamente demonstrada que a monarquia estava perdida, houve quem retirasse com precaução, nos edifícios públicos, os retratos do czar que foram enviados para os sótãos. As anedotas desse genero, verdadeiras ou inventadas, circulavam em quantidade nos círculos liberais que ainda não tinham perdido o gosto pelos gracejos a propósito da revolução. Os operários como os soldados das guarnições viviam os acontecimentos de outra maneira.

Sobre o que se passou num certo número de cidades (Pskov, Orel, Rybinsk, Penza, Kazan, Tsaritsyne, etc.), a crónica, ainda que sumária, traduziu exactamente o que se passou.

No campo, as notícias da revolução vinham das cidades vizinhas, parcialmente das autoridades, mas principalmente dos mercados, dos trabalhadores, dos soldados de licença. A aldeia acolhia o acontecimento com uma reacção mais lenta e menos entusiasta que a da cidade, mas não menos profunda: a aldeia vivia a relação da revolução com a guerra e a questão da terra.

Não é exagerado dizer que só Petrogrado cumpriu a Revolução de Fevereiro. O resto do país limitou-se a se juntar a ele. Só houve batalhas em Petrogrado. Em todo o país não existiam grupos populares, partidos, instituições ou efectivos militares que fossem erguidos para a defesa do antigo regime. O que mostra a que ponto eram pouco fundadas as informações tardias de reaccionários, dizendo que se a cavalaria da Guarda se encontrava em Petrogrado, ou se Ivanov tivesse levado da frente uma brigada segura, a sorte da monarquia teria sido diferente. Nem na retaguarda, nem na frente, não se encontrou brigada ou regimento pronto a bater-se por Nicolau II.

A queda do poder teve lugar sob a iniciativa e pelas forças de uma cidade constituida por cerca de soixante-quinze partie da população do país. Pode-se dizer que os maiores actos democráticos foram realizados de uma maneira não democrática. O país inteiro encontrou-se colocados diante do facto consumido. Se havia em perspectiva uma Assembleia constituinte, esta circunstância não mudava nada a nada, porque os prazos e as modalidades da convocação de uma representação nacional deveria ser determinada por órgãos que emanassem da vitoriosa insurreição de Petrogrado. Isso projectou uma luz crua sobre a questão da função das formas democráticas em geral, e, em particular, em período revolucionário. Ao feitichismo jurídico da “vontade popular” as revoluções infligiram constantemente rudes golpes, tanto mais implacáveis, que elas foram profundas, audazes, mais democráticas.

Diz-se muitas vezes, particularmente em relação à grande Revolução francesa, que a extrema centralização da monarquia permitiu mais tarde à capital revolucionária pensar e agir por todo o país. É uma explicação superficial. Se a revolução manifesta tendências centralizadoras, ela age, não imitando a monarquia derrubada, mas em função de necessidades inevitáveis de uma nova sociedade que não é mais compatível com o particularismo. Se, numa revolução, uma capital desempenha um papel de tal forma dominante e, em certos momentos, concentra de certa maneira as vontades da nação, é precisamente porque ele exprime de modo mais vivo as tendências essenciais da nova sociedade e as empurra até ao seu fim. A província considera o comportamento da capital como resultado das suas próprias intenções, mas já transformada em acção. A iniciativa dos centros não é um prejuízo à democracia, mas a sua realização dinâmica. Todavia, nas grandes revoluções, o ritmo desta dinâmica nunca correspondeu ao da democracia formal e representativa. A província junta-se aos actos do centro, mas atrasada. Em virtude da rapidez característica com a qual se desenvolvem os acontecimentos revolucionários, chega-se a crises graves do parlamentarismo revolucionário, insolúveis por métodos da democracia. Em todas as verdadeiras revoluções, a representação nacional partiu o pescoço, chocando com a dinâmica revolucionária dirigente cujo foco principal era a capital. Foi assim no século XVII na Inglaterra, no século XVIII em França e no século XX na Rússia. O papel da capital é determinada não por tradições do centralismo burocrático, mas pela situação da classe revolucionária dirigente, cuja vanguarda é naturalmente concentrada na metrópole: isso aplica-se tanto à burguesia como ao proletariado.

Quando a vitória da Fevereiro se estabeleceu solidamente, ocuparam-se do recenseamento das víctimas. Em Petrogrado contaram-se mil quatrocentos e quarenta e três mortos ou feridos, desse número oito centos e sessenta e nove militares, entre os quais sessenta oficiais. Comparativamente ao número de homens caídos em qualquer batalha da Grande Guerra, essas números foram insignificantes. A imprensa liberal proclamou que a Revolução de Fevereiro não tinha sido sangrenta. Nos dias de efusão geral e de amnistias reciprocas entre os partidos patriotas, ninguém empreendeu a reconstituição da verdade. Albert Thomas, sempre amigo do vencedor, e mesmo de uma insurreição vitoriosa, escreveu então que a revolução lhe surgiu “completamente ensolarada, cheia de alegria, exempta de qualquer infusão de sangue”! Sem dúvida ele esperava que esta revolução ficaria às ordens da Bolsa de Paris. Mas, decididamente, Albert Thomas não tinha inventado a pólvora. Já a 27 de Junho de 1789, Mirabeau bradava:

“Que felicidade ver esta grande revolução realizar-se sem ter cometido o homicídio, sem ter feito chorar!... A história fala-nos bastante de actos de bestas ferozes... Esperemos ter começado a história humana.”

Quando os três Estados foram constituidos em Assembleia nacional, os antepassados de Albert Thomas escreviam:

“A revolução acabou, ela não custou uma gota de sangue.”

E deve-se conceder que efectivamente, neste período, nenhuma efusão de sangue não teve lugar. O mesmo não se pode dizer dos dias de Fevereiro. Todavia, a legenda de uma revolução não sangrenta foi obstinadamente apoiada, respondendo à necessidade que tinham os burgueses liberais em representar os factos como se o poder lhes tivesse caído nas mãos.

Se a Revolução de Fevereiro não foi exempta de efusão de sangue, só poderemos ficar estupefactos pelo pequeno número de víctimas, tanto no momento da insurreição como no período que se seguiu. Havia um acertar de contas após a opressão, os perseguimentos e humilhações, segundo ignóbeis tratamentos que as massas populares russas tinham sofrido desde séculos ! Daqui, dali, é verdade, os marujos e soldados acertavam contas com os seus piores opressores, com os oficiais. Todavia, o número desses actos de represália foram insignificantes, ao princípio, em relação à quantidade de sangrentos ultrajes outrora ainda recentemente infligidos. As massas só abandonaram a sua bonomia bastante mais tarde, quando constataram que as classes dirigentes procuravam retomar todo o terreno e explorar a seu proveito a revolução que elas não tinham feito, assim que elas se apropriavam dos bens que elas não tinham produzido.

Togan-Baranovky tem razão em afirmar que a Revolução de Fevereiro foi obra dos operários e camponeses, esses últimos representados pelos soldados. Subsiste todavia uma grande questão: quem dirigiu a insurreição? Quem organizou os operários? Quem levou à rua os soldados? Após a vitória, essas questões tornaram-se objecto da luta dos partidos. A solução mais simples consistia nesta formula universal: ninguém conduziu a revolução, ela fez-se sozinha. A teoria das “forças elementares” era melhor que qualquer outra com a conveniência não somente de todos os senhores que, na véspera ainda, tinham tranquilamente administrado, julgado, acusado, pleiteado, comercializado ou encomendado, e que se apressavam, agora, a juntar-se à revolução; mas ela convinha a numerosos politicos profissionais e a ex-revolucionários que, tendo dormido durante a revolução; desejavam acreditar que, nesse caso, eles portaram-se como todos os outros.

Na sua curiosa História dos Sarilhos na Rússia, o general Denikine, antigo generalíssimo do exército branco, disse sobre o dia 27 de Fevereiro:

“Nesse dia decisivo, não houve dirigentes; houve somente elementos enfurecidos. No seu curso impetuoso, não se podia discernir nem plano, nem palavras de ordem.”

O douto historiador Miliokov não aprofundou mais a questão que o general cuja paixão era de rabiscar sobre o papel. Até à insurreição, o líder liberal tinha apresentado toda a ideia da revolução como sugerida pelo estado-maior alemão. Mas a situação complicou-se após a insurreição que levou os liberais ao poder. Desde então, a tarefa de Miliokov não foi mais a de desonrar a revolução ao ligá-la a uma iniciativa do Hohenzollern, mas pelo contrário, de retirar aos revolucionários a honra e a iniciativa.

O liberalismo adoptou completamente a teoria do carácter elementar e impessoal da insurreição. É com simpatia que Miliokov se reclamou meio liberal, meio socialista, Stankevitch, mestre de conferências, que foi por momentos comissário do governo no Grande Quartel General.

“A massa meteu-se em movimento, obedecendo a um apelo íntimo, inconsciente... - escreveu Stankevitch acerca das jornadas de Fevereiro. - Sobre quais palavras de ordem começaram os soldados? O que os conduziu quando se ampararam de Petrogrado, quando incendiaram o Palácio da Justiça? Nem uma ideia política, nem uma palavra de ordem revolucionária, nem uma conspiração e nem um motim, mas um movimento das forças elementares que reduziu bruscamente em cinzas o antigo regime sem deixar nada.”

A força elementar toma aqui um carácter quase místico.

O mesmo Stankevitch traz um testemunho de grande valor:

“No fim de Janeiro, tive ocasião de encontrar Kerensky num círculo muito íntimo. Sobre a possibilidade de um levantamento popular, todos pronunciaram-se de forma nitidamente negativa, de medo de ver o movimento de massas, uma vez desencadeado, cair nas correntes de extrema esquerda e criar assim grandes dificuldades na conduta da guerra.”

Os pontos de vista do círculo de Kerensky não se diferenciavam de forma nenhuma no essencial da dos cadetes. Não era daí que a iniciativa poderia surgir.

“A revolução caiu como um relâmpago num céu azul”, disse Zenzinov, representante do partido socialista revolucionário. “Sejamos francos: ela chegou como uma grande e alegre surpresa também para nós, revolucionários, que para ela tínhamos trabalhado durante muitos anos e a tínhamos constantemente esperado.”

O caso não se apresentava muito melhor com os mencheviques. Um jornalista pertencendo à imigração relata o encontro que ele teve, num trólei, no dia 24 de Fevereiro, de Skobelev, futuro ministro do governo provisório:

“Esse social democrata, um dos líderes do movimento, declarou-me que as desordens transformavam-se em depredações que era indispensável reprimir. Isso não impedia Skobelev, um mês mais tarde, de pretender que ele e os amigos tinham feito a revolução.“

As cores são aqui visivelmente carregadas. Mas, no essencial, a posição dos sociais democratas mencheviques tornou-se de uma maneira que corresponde bastante bem à realidade.

Enfim, Mstislavsky, que mais tarde devia ser um dos líderes da ala esquerda dos socialistas revolucionários, para passar a seguir para os bolcheviques, disse da Revolução de Fevereiro:

“A revolução nos surpreendeu, nós, homens de partido, em pleno sono, como virgens loucas do Evangelho.”

Pouco importa aqui que esses homens se tenham parecido de certa forma com virgens; mas eles dormiam todos efectivamente.

Mas o que aconteceu aos bolcheviques? Em parte já se sabe. Os principais líderes das organizações bolcheviques clandestinas em Petrogrado eram então três: os antigos operários Chliapnikov e Zaloustsky, e o antigo estudante Molotov. Chliapnikov, que tinha vivido bastante tempo no estrangeiro e tinha estado ligado a Lenine, era, do ponto de vista político, o mais maduro e o mais activo dos três que constituíam o Bureau do Comité Central. Todavia, as lembranças do próprio Chliapnikov estabeleciam bem que todo o trio não estava à altura dos acontecimentos. Até à última hora, os líderes imaginavam que se tratava somente de uma demonstração revolucionária, uma entre tantas outras, mas de forma alguma uma insurreição armada. Kaiorov, que já citámos, um dos líderes do distrito de Vyborg, afirmou categóricamente isto:

“Não se pressentia nenhuma directiva do centro do partido... O Comité de Petrogrado estava prisioneiro, e o representante do Comité central, o camarada Chliapnikov encontrava-se impotente para dar as directivas para o dia seguinte.”

A fraqueza das organizações clandestinas foi o resultado imediato das manobras policiais de destruição que deram ao governo vantagens excepcionais diante a opinião patriótica no início da guerra. Toda a organização, e, desse número, uma organização revolucionária, tende ficar atrás da sua base social. As organizações clandestinas dos bolcheviques, no início de 1917, ainda não tinham recuperado da destruição e da sua desagregação, enquanto que, entre as massas, a atmosfera de patriotismo dava lugar, repentinamente, à indignação revolucionária.

Para apresentar mais claramente a situação no domínio da direcção revolucionária, é necessário lembrar que os revolucionários mais autorizados, os líderes dos partidos de esquerda, encontravam-se na emigração, e, parcialmente, nas prisões ou deportados. Mais um partido era temido pelo antigo regime, mais ele se encontrava rigorosamente decapitado no início da revolução. Os populistas tinha na Duma uma fracção cujo líder, Kerensky, era um radical independente. O líder oficial dos socialistas revolucionários, Tchernov, encontrava-se na emigração. Os mencheviks dispunham na Duma uma fracção à cabeça da qual figuravam Tchkheidzé e Skobelev. Martov estava imigrado. Dan e Tseretelli deportados. À volta das fracções de esquerda – populistas e mencheviks – agrupavam-se um grande contingente de intelectuais socialistas tendo um passado revolucionário. Isso constitui uma aparência de estado-maior político, mas que só foi capaz de se mostrar após a vitória. Os bolcheviques não tinham nenhuma fracção na Duma: os cinco deputados operários que o governo czarista considerava como constituindo o centro organizador da revolução tinham sido presos desde dos primeiros meses da guerra. Lenine estava na emigração com Zinoviev, Kamenev tinha sido deportado, assim como os dirigentes tarefeiros, pouco conhecidos então, Sverdlov, Rykov, Staline. A social democrata polaco Dzerjinski, que não pertencia ainda aos bolcheviques, encontrava-se preso. Os líderes que, por acaso, estavam presentes, precisamente porque estavam habituados a agir sob a direcção autorizada e sem apelo, não eram reconhecidos pelos outros como sendo capazes de jogar nos acontecimentos revolucionários um papel dirigente.

Mas, a partir do momento que o partido bolchevique não podia asegurar aos insurrectos uma direcção autorizada, que dizer das outras organizações políticas? Assim se fortalecia a convicção geral de um movimento de forças elementares na Revolução de Fevereiro. Contudo, esta opinião é profundamente errada, ou, no melhor dos casos, sem conteúdo.

A batalha, na capital, durou não uma ou duas horas, mas cinco dias. Os líderes esforçaram-se por travá-la. As massas responderam com uma dinâmica tanto mais forte e levaram por diante. Elas tinham contra elas o velho Estado cuja fachada tradicional dissimulava ainda, poder-se-ia presumir, uma potente força, a da burguesia liberal, com a sua Duma do Império, a União dos zemstvos e das Cidades, os comités das indústrias da guerra, as Academias, as Universidades e uma imprensa ramificada; enfim, dois fortes partidos socialistas que opunham uma resistência patriótica à força vinda de baixo. No partido bolchevique, a insurreição encontrava a organização que lhe estava mais próxima, mas decapitada, os quadros deslocados, fracas células clandestinas. Todavia, a revolução, a qual ninguém esperava nesses dias, se tinha estendido e, enquanto que, nas esferas superiores, acreditava-se na extinção do movimento, esta assegurava-se da vitória através de um violento empurrão e potentes convulsões.

De onde provinha então esta potência sem par de perseverança e de impetuosidade? Não basta alegar a exasperação. A exasperação explica pouco. Tão diluidos que tenham sido os elementos operários de Petrogrado durante a guerra, em virtude da mistura de elementos brutos, eles tinham uma grande experiência revolucionária. Na perseverança e impetuosidade, apesar da falta de direcção e das resistência vindas do alto, havia uma apreciação das forças, nem sempre expressada, mas baseada na experiência da vida e num cálculo estratégico espontâneo.

Na véspera da guerra, os elementos operários revolucionários alinhavam com os bolcheviques e arrastavam as massas consigo. Desde do início da guerra, a situação modificou-se bruscamente: as camadas conservadoras intermediárias levantaram a cabeça e arrastaram consigo uma parte considerável da classe operária; os elementos revolucionários ficaram isolados e silenciosos. No decurso da guerra, a situação começou a modificar-se, lentamente ao princípio, depois, após as derrotas, cada vez mais depressa e mais radicalmente. Um descontentamento activo amparou-se da classe operária completa. Na realidade, esta irritação foi ainda, em largos círculos, patrióticos, mas não havia nada em comum com o patriotismo calculado e cobarde das classes dominantes que adiavam todos os problemas interiores até à vitória. Porque, precisamente, a guerra, as suas vítimas, os seus medos e as suas infâmias empurravam as antigas como as novas camadas operárias contra o regime czarista, levava-os com uma violência temível e à seguinte conclusão: isso não pode durar? Era uma opinião geral que contribuiu para a coesão das massas e deu-lhes uma enorme força para a ofensiva.

O exército tinha aumentado, com milhões de operários e camponeses. Cada um contava na tropa alguém de família: um filho, um marido, um irmão, um parente próximo. O exército não era mais como antes da guerra, um meio separado do povo. Agora, encontrávamos os soldados mais frequentemente; acompanhávamos quando eles partiam para a frente, quando vinham de licença, ouvíamos as suas histórias, conversávamos com eles, nas ruas, nos tróleis, falava-se das trincheiras, íamos vê-los ao hospital. Os bairros operários, os quartéis, a frente e também, numa considerável proporção, as aldeias tornaram-se de certa maneira, vasos de comunicação. Os operários sabiam o que o soldado sente e pensa. Entre eles, haviam intermináveis conversas sobre a guerra, sobre as pessoas que se enriquecem, sobre os generais, sobre o governo, sobre o czar e a czarina. O soldado dizia da guerra: “Maldição!” O operário respondia, falando do governo: “Que eles sejam amaldiçoados!” O soldado dizia: “Porquê calai-vos aqui, no centro?” O operário respondia: “Quando se tem as mãos vazias, não há nada a fazer. Em 1905, nós já afrontámos infelizmente a tropa.” O soldado, após reflexão: “Ah! Se todos se rebelassem conjuntamente!” O operário: “Sim, todos juntos.” Conversas deste tipo, antes da guerra, só tinham lugar entre indivíduos isolados e de maneira clandestina. Agora, era assim que se falava por todo o lado, a propósito de tudo, e quase abertamente, pelo menos nos bairros operários.

A Okhrana czarista conseguia às vezes fazer boas sondagens. Quinze dias antes da revolução, um bufo de Petersburgo, que assinava sob o pseudónimo de Krestianinov, fez um relatório sobre uma conversa longa num trólei que atravessava um bairro operário. Um soldado teria contado que oito homens do seu regimento tinham sido enviados para o degredo por terem recusado, no último Outono, disparar sobre operários da fábrica Nobel e por terem disparado sobre a polícia. Esta conversa teve lugar abertamente, visto que os polícias e os bufos, nos bairros operários, preferiam passar despercebidos. “Nos faremos contas com eles”, concluiu o soldado. O relatório continua assim: “Um operário disse então: “Para isso, devemos organizar-nos, para que sejamos todos como um só homem.” O soldado respondeu: “Para isso, não vale a pena preocupar-nos, há muito tempo que nos organizamos... Eles beberam bastante sangue, os homens sofrem na frente, mas, aqui, as pessoas empanturram-se!...” Não houve qualquer incidente particular. 10 de Fevereiro de 1917. Krestianinov.” Incomparavelmente épico, o relatório do bufo ! “Sem incidentes particulares!” Os incidentes deviam produzir-se, e logo: a conversa no trólei assinala a iminência inevitável.

O carácter elementar da insurreição é ilustrado pelo exemplo curioso que dá Mstislavsky: quando “a União dos Oficiais do 27 de Fevereiro”, constituida logo após a insurreição, tentou estabelecer por inquérito quem, primeiro, tinha trazido para a rua o regimento de Volhynie, houve sete deposições respeitante aos sete iniciadores dessa acção decisiva. É muito provável, acrescentemos, que uma parte da iniciativa pertenceu a alguns soldados; o que não impediu que o principal dirigente tenha podido cair nos combates de rua, anonimamente. Mas isso não minimiza o valor histórico da sua iniciativa anónima. O que é mais importante ainda, é que o outro lado do assunto, pelo qual nós saímos do interior do quartel. O levantamento dos batalhões da Guarda que se declarou, para a grande surpresa dos círculos liberais e dos socialistas legalistas, não foi de forma nenhuma inesperada pelos operários. Se estes últimos não se revoltaram, o regimente “volhyniano” nunca teria saído. O encontro entre operários e cossacos que um certo advogado pôde observar pela janela, par dar parte a seguir, por telefone, a um deputado, pareceu a um e a outro como um episódio de um processo impessoal: os gafanhotos das fábricas tinham afrontado os gafanhotos dos quartéis. Mas pareceu ser outra coisa para o cossaco que ousou piscar o olho do lado do operário, de outro jeito ainda ao operário que decidiu de uma vez que o cossaco “tinha tido um bom golpe de vista”. A interpenetração molecular da tropa e do povo continuou, sem interrupção. Os operários tomavam constantemente o pulso da tropa e sentiam logo se aproximar o ponto crítico. O que lhes deu também ao desenvolvimento das massas, que acreditavam na vitória, essa força irresistível.

Aqui, nós devemos transmitir a impressionante nota de um dignitário que tentou estabelecer um balanço das suas observações em Fevereiro:

“É hábito dizer que o movimento começou pelo desencadeamento das forças elementares, que os soldados saíram para a rua por sua própria iniciativa. Não estou de acordo, de forma nenhuma sobre isso. E o que significa aliás essa palavra: “elementar”?... A “geração espontânea” é, em sociologia, ainda menos apropriada que nas ciências naturais. Se algum dirigente revolucionário de envergadura não atribuiu a sua etiqueta, o movimento, sem ser impessoal, seria somente anónimo.”

Esta maneira de colocar a questão, incomparavelmente mais rigorosa que as alegações de um Miliokov, respeitante os agentes da Alemanha e as forças elementares da Rússia, é devido a um antigo procurador do czar que foi senador quando rebentou a revolução. Talvez, seja a sua experiência judiciária que permitiu a Zavadsky de discernir que um levantamento revolucionário não podia provenir das directivas de agentes do estrangeiro, nem de um processo natural onde as personalidades não interviriam.

O mesmo autor cita dois episódios que lhe permitiram, de certa forma pelo buraco da fechadura, um olhar sobre o laboratório do processo revolucionário. Na sexta-feira 24 de Fevereiro, enquanto que, nos escalões superiores, ninguém previa ainda um levantamento a curto prazo, um trólei no qual o senador tinha tomado lugar voltou-se bruscamente com um tal vacarme que os vidros tiritaram e que um se quebrou, entre a Perspectiva Liteiny e uma rua vizinha, imobilizando-se. O condutor convidou todos os ocupantes a descerem. “ A viatura não irá mais longe”. Os viajantes protestaram, injuriaram mas desceram. “Vejo ainda a cara do condutor, taciturno, sobriamente resoluto: uma cara de lobo.” A circulação de tróleis parou por todo o lado. Esse condutor resoluto, que já dava a um dignitário liberal a visão de uma “cara de lobo”, devia ter uma grande consciência do dever para ousar ser o único a parar a sua viatura, cheia de funcionários, numa rua de Petersburgo imperial, em tempo de guerra. São justamente tais condutores que param o vagão da monarquia, pouco mais ou menos nestes termos: “ A viatura não sairá daqui”, e desembarcou a burocracia sem estabelecer, estando apressada, estando apressados, qualquer diferença entre generais da Guarda e os senadores liberais. O condutor da Perspectiva Liteiny era um instrumento consciente da história. Ele deveria ter sido educado previamente.

Durante o incendio do Palácio da Justiça, um jurista liberal, da mesma maneira que o dito senador, lamentou-se na rua do facto de assistir à destruição do laboratório de especialistas judiciários e dos arquives notariais. Um homem de idade madura, de aspecto aborrecido, aparentemente, respondeu, resmungando: “Nós saberemos partilhar as casas e as terras sem arquivos”. Provavelmente, o episódio foi arranjado literáriamente. Mas os operários de idade madura desta especie e em posição de responder indispensável não eram poucos na multidão. Eles próprios nada tinham a ver com o incendio do Palácio de Justiça: ao que serviria? De qualquer forma, tais “excessos” não poderiam de maneira alguma assustá-los. Eles armariam as massas, inspirando-lhe não somente as ideias indispensáveis contra a polícia do czar, mas também contra os juristas liberais, que temiam sobretudo que o fogo da revolução queimasse os actos notariados da propriedade. Esses anónimos, rudes políticos da fábrica e da rua, não tinham caído do céu; eles deviam ter sido educados.

Registando os acontecimentos dos últimos dias de Fevereiro, a Okhrana dizia também que ele era “elementar”, isto é, não dirigido metódicamente de cima; mas logo acrescentou:

“O proletariado inteiro foi trabalhado pela propaganda.”

Esta afirmação era acertada: os profissionais da luta contra a revolução, antes de ocupar as células dos revolucionários libertados, tinham discernido o processo do momento melhor que não souberam os líderes do liberalismo.

A mística das “forças elementares” não esclarece nada. Para avaliar justamente a situação e determinar o momento do levantamento contra o inimigo, era indispensável que a massa, nos seus elementos dirigentes, colocasse as suas próprias reivindicações face aos acontecimentos históricos, e possuísse os seus próprios critérios, para agir. Noutros termos, não era necessário que a massa em geral, mas a massa dos operários de Petrogrado, e de toda a Rússia, tendo passa pela revolução de 1905, pela insurreição moscovita de Dezembro de 1905 que tinha quebrado o regimento da Guarda, dito Semenovskyl; era preciso que, nessa massa, fossem disseminados os operários que tinham reflectido sobre a experiência de 1905, criticado as ilusões constitucionais dos liberais e dos mencheviks, tinham assimilado as perspectivas da revolução, tinham examinado montes de vezes o problema da tropa, tinham observado atentamente o que se passava nesse meio, e eram capazes de chegar às suas conclusões revolucionárias, e de as comunicar aos outros. Enfim, era preciso encontrar, na guarnição, soldados de espírito avançado, outrora tocados ou não, pela propaganda revolucionária.

Em cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia militar, em cada taberna, nos hospitais da tropa, a cada aquartelamento, e mesmo nos campos despovoados, progredia um trabalho molecular da ideia revolucionária. Em todo o lado existia comentadores dos acontecimentos, principalmente operários, junto de quem informavam-mo-nos e que se esperava a palavra necessária. Os chefes de fila foram muitas vezes abandonados à sua sorte, absorviam pedaços de generalizações revolucionárias que lhes chegavam por diversas vias, descobrindo por eles próprios, nos jornais liberais, o que precisavam ao ler entre as linhas. O seu instinto de classe era disfarçado pelo critério e, se eles não pressionavam por todas as suas ideias até ao fim, o seu pensamento não parava de, trabalhar obstinadamente, penetravam as massas e constituíam o mecanismo íntimo, incompreensível, contudo decisivo, do movimento revolucionário, como processo consciente.

Os políticos presuntuosos do liberalismo e do socialismo domesticado, tudo o que se produz na massa parece ser simplesmente um processo instintivo, como se isso se passasse num formigueiro ou numa colmeia. Na realidade, o pensamento que atormentava a massa operária era mais arrojado, mais perspicaz, mais consciente que as pequenas ideias com as quais se divertia a classe cultivada. Mais ainda: o pensamento operário era mais científico: não somente porque ela tinha sido fecundada em larga medida pelos métodos do marxismo, mas antes de mais porque ela tinha-se alimentado da experiência viva das massas que deviam entrar logo na arena revolucionária.

O carácter científico do pensamento manifestou-se na sua correspondência com o processo objectivo e na sua aptitude em influenciar o processo e regulá-lo. Que faculdade era essa, mesmo no mais pequeno aspecto, pertencendo à mentalidade das esferas governantes, onde se inspiravam do Apocalipse, onde se acreditava nos sonhos de Raspotine? Ou então, por acaso, teriam elas sido científicamente fundadas, as ideias do liberalismo que esperava que a Rússia atrasada, participando na luta dos gigantes capitalistas, poderia ao mesmo tempo vencer e obter um regime parlamentar? Ou, talvez, seriam concepções científicas dos círculos intelectuais que se confundiam servilmente com o liberalismo decrepito desde da sua infância, abrigando assim a sua independência ilusória sob uma verborreia há muito tempo ultrapassada? Na verdade, encontramo-los lá no reino de um entorpecimento espiritual todo poderoso, no país dos fantasmas, das superstições, da ficções, se quisermos, o reino das “forças elementares”.

Em consequência, não temos o direito absoluto de revisar completamente a filosofia liberal da Revolução de Fevereiro? Sim ! Nós temos o direito de dizer: enquanto que a sociedade oficial – esta superstrutura com numerosos andares que constituem as classes dirigentes, com as suas camadas distintas, seus grupos, seus partidos e suas cliques – vivendo dia a dia a sua inércia e o seu automatismo, alimentando-se dos restos de ideias usadas, surda às exigências fatais da evolução, seduzida pelos fantasmas, não previam nada, não se cumpria nas massas operárias um processo espontâneo e profundo, não somente de ódio crescente contra os dirigentes, mas de julgamento crítico sobre a sua impotência, de acumulação de experiência e de consciência criadora que se confirmou no levantamento revolucionário e na sua vitória.

A questão posta acima: quem conduziu a Revolução de Fevereiro? Podemos, por consequência responder com clareza desejada: operários conscientes e endurecidos que, sobretudo, tinham sido formados na escola do partido de Lenine. Mas devemos acrescentar que esta direcção, se ela foi suficiente para segurar a vitória da insurreição, não esteve em posição de colocar, desde do início, a liderança da revolução entre as mãos da vanguarda proletária.


Inclusão 18/05/2010