História da Revolução Russa

Léon Trotsky


A agonia da monarquia


A dinastia caiu como um fruto podre antes mesmo que a revolução tenha tido o tempo de examinar os seus problemas mais urgentes. A imagem da antiga classe dirigente não seria completa se não nos esforçasse-mos em mostrar como a monarquia chegou à hora da sua queda.

O czar encontrava-se no Grande Quartel General, em Mohilev, onde ele se dirigiu não porque aí tinham necessidade dele, mas para escapar às preocupações que dava Petrogrado. O general Dobensky, memorialista da Corte, que tinha acompanhado o czar ao G. Q. G., escreveu no seu diário:

“Aqui, a vida é tranquila. Tudo continuará como no passado. Nada se espera dele (do czar). Salvo em circunstâncias exteriores que possam, por acaso, provocar alguma mudança...”

No 24 de Fevereiro a czarina escrevia (em inglês, como habitualmente) a Nicolau, no G. Q. G.:

“Espero que o Kendrinsky da Duma (trata-se de Kerensky) seja enforcado pelos seus espantosos discursos: é indispensável (a lei marcial) e será um exemplo. Todos estão extremamente desejosos de te ver mostrar firmeza e imploram-te de a exercer.”

No 25 de Fevereiro, G. Q. G. recebia um telegrama do ministro da Guerra, anunciando que as greves se tinham declarado na capital, que os sarilhos começavam nos meios operários, mas que medidas tinham sido tomadas e que não se passava nada de inquietante. Numa palavra, já se tinham visto outras e ver-se-iam ainda!

A czarina, que tinha sempre exortado o czar a não ceder, tentava ainda de se manter em aprumo. No dia 26 de Fevereiro, com a evidente intenção de inculcar a coragem incerta de Nicolau, ela telegrafou-lhe que “tudo está calmo na cidade”. Mas, num telegrama da noite, ela é já forçada em reconhecer que “na cidade as coisas não estão bem de forma nenhuma”. Em carta, ela diz:

“É preciso declarar claramente aos operários que é proibido entrar em greve e, em caso de infracção, serão enviados para a frente como castigo. Os fuzilamentos são inúteis; só é necessário manter a ordem e impedir os operários de passar as pontes.”

Sim, na verdade, basta pouco: somente ordem! E sobretudo não admitir operários no centro, deixá-los sufocar na raivosa impotência dos arredores.

Na manhã do 27, o general Ivanov é expedido da frente para a capital com um batalhão de cavaleiros de São Jorge e com poderes de ditador que ele só revelará após a ocupação de Tsarskoie-Selo.

“É difícil imaginar uma personagem menos apropriada à situação – brada o general Denikine, que, em seguida, exerceu ele próprio a ditadura militar – um velho caduco, que não tinha em conta a situação política, que não tinha nem as forças nem energia, nem vontade, nem rigor.”

A escolha tinha caído em Ivanov segundo as recordações guardadas na primeira Revolução: onze anos antes, ele tinha reprimido o levantamento de Cronstadt. Mas esses anos não passaram sem deixar traços: os castigadores tinham-se gasto, os punidos tinham-se tornado homens maduros. As frentes do Norte e do Oeste receberam ordens de preparar as tropas para uma expedição a Petrogrado. Evidentemente, pensavam ter bastante tempo. Ivanov, pessoalmente, pensava terminar em breve com sucesso, e não esqueceu mesmo de encargar um dos seus ajudantes de campo em Mohilev dos abastecimentos para os conhecimentos que ele tinha em Petrogrado.

No 27 de Fevereiro, na manhã, Rodzianko expediu ao czar um novo telegrama que terminava assim:

“A última hora chegou: a sorte da pátria e da dinastia está em jogo.”

O czar disse ao conde Frederiks, ministro da Corte:

“É outra vez esse gordo Rodzianko que me escreve toda a especie de futilidades às quais não lhe responderei.”

Portanto, não, não eram futilidades! E seria necessário responder.

Cerca do meio-dia desse mesmo 27 de Fevereiro, o G. Q. G. recebia do general Khabalov um relatório sobre o levantamento dos regimentos Pavlovsky, volhynien, lituano e Preobrajensky, e sobre a necessidade de enviar da frente tropas seguras. Uma hora depois chega, do ministro da Guerra, um telegrama animador:

“Os sarilhos que tinham começado, esta manhã, com certos elementos da guarnição, são reprimidos fortemente e energicamente pelas companhias e batalhões fiéis ao seu dever. ...Estou firmemente convencido de um rápido restabelecimento da calma...”

Portanto, após sete horas da noite, o mesmo Beliaev comunica já que “as poucas tropas que continuam fiéis ao dever não conseguem acabar com a motinaria”, e pede o envio urgente, de tropas verdadeiramente seguras, e em quantidade suficiente” para que elas possam agir simultaneamente nos diferentes sectores da cidade”.

O Conselho de ministros, nesse dia, acreditou na oportunidade de eliminar, do seu próprio meio, aquele que estava suposto de ser o responsável de todas as desgraças: Protopopov, o perturbado que era ministro do Interior. Ao mesmo tempo, o general Khabalov pôs em circulação um documento preparado sem o conhecimento do governo declarando Petrogrado em estado de sítio, com a ordem de Sua Majestade. Foi assim que se tentava ainda combinar o frio e o quente, mas ao que parece sem premeditação e, em qualquer caso, sem esperança de sucesso. Nem mesmo se conseguiu fazer colar na cidade os cartazes anunciando o estado de sítio: o gradonatchalnik (presidente da Câmara) Balka não encontrava nem escovas nem cola. De maneira geral, “nada colava” para as autoridades, porque ela pertenciam já ao reino das sombras.

A maior dessas sombras, no último ministério do czar, foi um septuagenário, o príncipe Golytsine, que tinha antes dirigido certas obras filantrópicas da czarina, e que esta tinha promovido a chefe de governo durante o período de guerra e de revolução. Quando os amigos pediam a esse “bonacheirão russo”, a esse “velho mole” (segundo os termos do barão Nolde, liberal), porquê ele tinha aceite um posto tão cheio de problemas, Golytsine respondia: “Para ter mais uma lembrança”. Contudo ele na chegou a esse resultado. Sobre o estado de espírito do último governo do czar nessas horas, temos como testemunho a narração seguinte de Rodzianko:

“À primeira notícia de um movimento de massas em direcção ao palácio Maria, onde o Conselho de ministros tinha as suas sessões, todas as luzes foram imediatamente apagadas no edifício. Os governantes só queriam uma coisa: não serem notados pela revolução. Portanto,o rumor que corria era enganador, o palácio não foi atacado e quando se acenderam as luzes, um dos membros do governo do czar foi descoberto, “para sua própria surpresa”, escondido debaixo da mesa. Tais eram as recordações que ele juntava aí, não se sabe.”

Mas o estado de espírito do próprio Rodzianko não parecia estar à altura das circunstâncias. Por longos mas vãs chamadas telefónicas ao governo, o presidente da Duma tentava ainda dizer ao príncipe Golytsine. Este respondeu-lhe:

“Peço-lhe de não se dirigir a mim. Já me demiti.”

A esta notícia, Rodzianko, segundo a narração do seu fiel secretário, deixou-se cair no cadeirão e cobriu o rosto com as duas mãos...

“Senhor, é terrível! Não temos mais o poder!... É a anarquia!...É o sangue!...”

E ele chorou docemente. Quando se desvaneceu o fantasma senil do poder czarista, Rodzianko sentiu-se infeliz, abandonado, órfão. Como ele estava longe de pensar que, no dia seguinte, ele devia “meter-se à cabeça” da revolução!

A resposta que Golytsine dava por telefone explica-se assim: na noite do 27, o Conselho de ministros reconheceu-se incapaz de dominar a situação e convidou o czar a meter à cabeça do governo uma personalidade gozando da confiança geral. O czar respondeu a Golytsine:

“No que diz respeito a mudanças de pessoal nestas circunstâncias, julgo-as inadmissíveis. Nicolau.”

Que outras circunstância estava ele à espera? Ao mesmo tempo, ele exigia que se tomassem as “medidas resolutas” para esmagar a revolta. Era mais fácil em dizer que a fazer.

No dia seguinte, 28, é a vez da indomável czarina perder enfim coragem. Ela telegrafou a Nicolau:

“Concessões são indispensáveis. As greves continuam. Numerosas tropas colocaram-se ao lado da revolução. Alice.”

Foi necessário o levantamento de toda a Guarda, de toda a guarnição, para forçar a Hessense, zeladora da autocracia, a reconhecer que “concessões eram indispensáveis”. Então, o czar começa a entrever que “o gordo Rodzianko” não lhe tinha comunicado futilidades. Nicolau decide de juntar-se à sua família. É possível que ele tivesse sido empurrado pelos generais do G. Q. G. que sentiam um certo mal estar.

O comboio imperial passou primeiro sem incidentes; como habitualmente, os chefes da polícia e os governadores vinham saudá-lo às estações. Longe do turbilhão revolucionário, na sua carruagem habitual, rodeado do seu séquito familiar, o czar tinha aparentemente ainda perdido o sentido de um desfecho iminente. A 28, às 3 horas da tarde, quando a sua sorte já está decidida pela marcha dos acontecimentos, ele mandou à czarina, de Viazma, este telegrama:

“Está um lindo dia. Espero que você se sinta bem e calma. Muitas tropas são enviadas da frente. O seu carinhoso Niki.”

Em vez das concessões que a própria czarina pede com insistência, o czar carinhoso envia tropas da frente. Mas, apesar do “belo dia”, o czar vai encontrar-se, dentro de algumas horas, frente a frente com a tempestade revolucionária. O trem imperial chegou à estação de Vichera: os ferroviários não o deixam ir mais longe: “uma ponte em mau estado”. O mais provável foi que esse pretexto foi inventado pelo séquito imperial para dar melhor aspecto à situação. Nicolau tentou passar ou tentaram que ele passasse por Bologoie, que se encontra no caminho-de-ferro de Moscovo a Petrogrado; mas o seu comboio não obteve autorização desse lado. A demonstração tornava-se mais eloquente que todos os telegramas recebidos de Petrogrado. O czar, cortado do seu G. Q. G., não tinha meio de chegar à capital. Como simples “peons”, os ferroviários, a revolução fazia xeque ao rei!

O historiógrafo da Corte, Dobensky, que acompanhava o czar no comboio, notou no seu diário particular:

“Todos reconheciam que a passagem da noite em Vichera tem uma importância histórica... Para mim, está absolutamente claro que a questão de uma constituição está resolvida; certamente a constituição será cedida...Todos dizem que é preciso somente caminhar com eles, com os membros do governo provisório.”

O caminho está cortado por um semáforo para lá do qual há perigo de morte, e o conde Frederiks, o príncipe Dolgouroky, o duque de Leuchtenberg, todos, todos os altos senhores, são agora partidários de uma constituição. Eles nem pensam mesmo na luta. Basta caminhar, isto é, tentar ainda enganar as pessoas, como em 1905.

Enquanto que o comboio errava, não encontrando o caminho certo, a czarina enviava telegramas e mais telegramas, rogando-lhe que volte o mais breve possível. Mas os telegramas eram-lhe devolvidos com a menção em lápis azul:

“Residência do destinatário desconhecida.”

Os empregados do telegrafo não encontravam o paradeiro do czar da Rússia...

Regimentos, bandeiras e música à cabeça, marchavam em direcção ao palácio de Tauride. Os membros da Guarda começavam a movimentar-se sob o comando do grão-duque Kiril Vladimirovitch, o qual encontrou de uma só vez, como testemunha a condessa Kleinmichel, a desenvoltura de um revolucionário. Os funcionários tinham dispersado. Os habituados do palácio abandonaram o lugar. “Foi um salve-se quem puder”, escreveu Vyroubova. No palácio rondavam bandos de soldados revolucionários, examinando todas as coisas com uma ávida curiosidade. Antes mesmo que as altas esferas não tivessem decidido da sorte da monarquia, os elementos da base transformavam o palácio dos czares em museu.

O czar, cujo domicílio era incerto, obliquou em direcção de Pskov, a caminho de estado-maior da frente Norte, que era comandada pelo velho general Roussky. Os membros do séquito imperial fazem proposições em cima de proposições. O czar hesita. Ele conta ainda com os dias e semanas, ainda que a revolução não se calcule senão por minutos.

O poeta Alexandre Blok caracterizava o czar, no decurso dos últimos meses da monarquia, nos seguintes termos:

“Teimoso e no entanto desprovido de vontade, nervoso mas enfraquecido em todas as relações, não confiando em mais ninguém, excedido mas circunspecto nas suas afirmações, ele não se domina mais. Ele tinha deixado de compreender a situação e não dava mais nenhum passo sem se dar conta, deixando-se ir totalmente pela mão dos que ele próprio tinha ergueu no poder.”

A que ponto tiveram que se acentuar os traços particulares, falta de vontade, nervosismo, circunspecção e desconfiança no fim de Fevereiro e no início de Março !

Finalmente, Nicolau decidiu enviar – e portanto, parece nada expediu – um telegrama a Rodzianko que ele detestava: dizendo que, para a salvação da pátria, o presidente da Duma estava encarregado de constituir um novo governo. Porém, o czar reservava-se o direito de distribuir ele próprio as pastas ministeriais dos Assuntos estrangeiros, da Guerra, e da Marinha. Ele queria ainda negociar com “esse gente”; as “numerosas tropas” não marchavam sobre Petrogrado?

Efectivamente, o general Ivanov chegou sem dificuldade a Tsarskoie-Selo: claramente, os ferroviários não ousariam opor resistência ao batalhão de São Jorge. O general confessou mais tarde que a caminho teve de fazer três ou quatro vezes “reprimendas paternais” a simples soldados que lhe tinham falado sem maneiras: ele fazia-os ajoelharem-se. Desde da chegada do “ditador” a Tsarskoie-Selo, as autoridade locais vieram dizer-lhe que um confito entre o batalhão São Jorge e as tropas traziam perigo para a família imperial. Simplesmente, as autoridades, tendo medo pelo seu lado, aconselhavam ao “pacificador” de voltar atrás sem descargar seus vagões.

O general Ivanov colocou ao outro “ditador”, Khabalov, dez questões às quais lhe respondeu com precisão. Reproduzimos-as integralmente – vale a pena.

Questões de Ivanov, respostas de Khabalov

1. Quais são os contingentes que continuam disciplinados e quais são os que se dedicam à desordem?

Tenho à minha disposição, nos navios do Almirantado, quatro companhias da Guarda, cinco esquadrões e sotnias de cossacos, duas baterias de artilharia; as outras tropas tomaram o lado dos revolucionários, ou então, de acordo com estes últimos, são neutros. Há soldados e bandos que rondam pela cidade e desarmam os oficiais.

  1. Quais são as gares que estão guardadas?

Todas as gares estão na posse dos revolucionários e rigorosamente guardadas por eles.

  1. Quais são os bairros da cidade onde se mantém a ordem?

Toda a cidade está na posse dos revolucionários, o telefone não funciona, e deixou de haver ligação com os bairros.

  1. Quem são as autoridades que administram esses bairros?

Não posso responder.

5. Todos os ministérios funcionam normalmente?

Os ministros foram presos pelos revolucionários.

  1. Quais são as forças de polícia que você dispõe actualmente?

Nenhuma.

  1. Quais são as instituições técnicas e administrativas do departamento da Guerra que você dispõe neste momento?

Nenhuma.

  1. Que quantidade de abastecimentos você dispõe?

Não disponho de nenhuma quantidade. Havia na cidade, em 25 de Fevereiro, 5 600 000 libras de farinha de reserva.

  1. É grande a quantidade de armas, de peças de artilharia e de munições que os amotinados se apoderaram?

Tudo o que depende da artilharia está nas mãos dos revolucionários.

  1. Quais são os poderes militares e estado-maiores que continuam às vossas ordens?

Pessoalmente tenho à minha disposição o chefe do estado-maior do corpo do exército; não tenho contacto com os outros centros de comando.

Assim informado, de uma maneira pouco equivoca, sobre a situação, o general Ivanov “consentia” a levar para trás as suas tropas, que não desembarcado, até à estação de Dno.

“É desta maneira – concluiu o general Lokomsky, uma das principais personagens do G. Q. G. - que nada resultou, salvo um escândalo, da missão confiada ao general Ivanov com plenos poderes de ditador”.

Aliás, esse escândalo teve poucas repercussões, ele afogou-se sem deixar traços na vaga dos acontecimentos. O ditador expediu, dever-se-ia acreditar, abastecimentos aos seus conhecimentos de Petrogrado e teve uma longa conversação com a czarina: ela alegou a a abnegação do seu trabalho nos hospitais militares e queixou-se da ingratidão do exército e do povo.

Entretanto chegam a Pskov, por Mohilev, notícias cada vez mas desastrosas. Os guardas-costas da sua majestade, que tinham ficado em Petrogrado, e que cada soldado era conhecido pelo seu nome e era alvo de favores da família imperial, apresentaram-se na Duma do Império, pedindo autorização de prender os seus oficiais que tinham recusado em participar no levantamento. O vice-almirante Kouroch que não via a possibilidade de tomar medidas para dominar a rebelião em Cronstadt, dado que ele não tem nenhum regimento à sua disposição. O almirante Nepenine telegrafava que a frota do Báltico reconheceu o Comité provisório da Duma do Império. O chefe do corpo do exército de Moscovo, Mrozovsky, comunicou:

“A maioria das tropas, com a artilharia, entregou-se aos revolucionários que, em consequência, dominam a cidade; o gradonatchalnik e o seu ajudante abandonaram as suas residências.”

Abandonar significava fugir.

O czar teve conhecimento de tudo isso no 1 de Março à noite. As conversações, exortações sobre um governo responsável duraram até horas tardias, na noite. Enfim, o czar, cerca de duas da manhã, deu o seu consentimento e houve, no seu círculo, um suspiro de alívio. Assim, acreditava-se assim que o problema revolucionário tinha recebido a sua solução, a ordem foi dada de trazer de volta para a frente os contingentes que tinham sido dirigidos para Petrogrado para esmagar o levantamento. Rossky, apressava-se a partir de madrugada, em comunicar a boa notícia a Rodzianko. Mas o relógio do czar atrasava muito. Rodzianko, que, no palácio de Tauride, tinha já sido assaltado pelos democratas, os socialistas, os soldados, os deputados operários, respondia a Rossky:

“O que vocês contam fazer é insuficiente e é a sorte da dinastia que se joga... Em toda a parte, as tropas tomam partido da Duma e do povo, exigindo a abdicação em favor do herdeiro sob a regência de Miguel Alexandrovitch.”

Na verdade, as tropas nem pensavam de forma nenhuma reclamar o herdeiro, nem Miguel Alexandrovitch. Rodzianko atribuía simplesmente à tropa e ao povo uma palavra de ordem com a ajuda da qual a Duma esperava ainda conter a revolução. De qualquer forma, o acordo do czar foi tardio.

“A anarquia, declarou Rodzianko, toma uma tal extensão que fui forçado, esta noite, em nomear um governo provisório. Lamento, o manifesto veio demasiado tarde...”

Estas palavras solenes provam que o presidente da Duma tinha já encontrado tempo de secar as lágrimas vertidas por ele sobre Golytsine. O czar leu o relato dessa conversa entre Rodzianko e Rossky, hesitou, releu o documento e resolveu esperar. Mas, então, os chefes do exército deram o alarme: eles sentiam-se um pouco em causa, eles também!

O general Aleixeiev procedeu durante a noite a uma especie de plebiscito no alto comando das diversas frentes. É bom que as revoluções modernas se realizem com a ajuda do telegrafo, de modo que as primeiras reacções e réplicas dos detentores do poder sejam registadas pela história na fita de papel. As conversações que tiveram lugar entre os marchais-de-campo de sua majestade na noite do 1 e 2 Março constituem um documento humano de um interesse incomparável. O czar deveria, sim ou não, abdicar? Evert, general chefe da frente Oeste, só dava a sua opinião depois de conhecer a dos generais Rossky e Brossilov. O general Sakharov, comandante na frente romena, exigia que se lhe comunicasse previamente as conclusões de todos os outros grandes chefes. Depois de muito fingimento, esse valente guerreiro declarou que a sua ardente ligação ao monarca não lhe permitia, na sua consciência, aceitar a “infame proposição”; contudo, “soluçando”, ele recomendou a abdicação ao czar, a fim “de se poupar solicitações ainda mais abomináveis”. O general Evert explicava de modo convincente a necessidade da capitulação:

“Tomo todas as medidas para que as informações sobre a situação actual nas capitais não entrem no exército, a fim de evitar sarilhos que se produziriam sem dúvida. Não existe nenhum meio de parar o curso da revolução nas capitais.”

O grão-duque Nicolau Nicolaievitch, da frente caucasiana, suplicou de joelhos ao czar de tomar “medidas extraordinárias” e de abdicar; as mesmas súplicas foram feitas pelos generais Aleixeiev e Brossilov, e almirante Nepenine. Quanto a Rossky, ele formulava oralmente os mesmos pedidos. Sete grandes chefes apontavam respeitosamente seus revolveres à cabeça do monarca adorado. Apreendendo o momento de deixar passar a conciliação com o novo poder, temendo além disso as suas próprias tropas, esses altos capitães, habituados a ceder posições, deram ao seu czar generalíssimo um conselho unânime: desaparecer da cena sem resistência. Assim falava não somente o longínquo Petrogrado contra o qual, parecia, ter sido possível enviar tropas, mas a frente sobre a qual foi necessário retirar contingentes.

Depois de ter ouvido um relatório tão convincente, o czar determinou-se a abandonar o trono que ele já não possuía. Um telegrama apropriado às circunstâncias foi preparado, dirigido a Rodzianko:

“Não há sacrifício que eu não possa consentir para o verdadeiro bem e a salvação da nossa mãe Rússia. No seguimento disso, estou disposto a abdicar em favor do meu filho, com a condição que ele fique junto de mim até à sua maioridade, sob a regência do meu irmão o grão-duque Miguel Alexandrovitch. Nicolau.”

Porém, mais uma vez, esse telegrama não foi enviado, porque soube-se que da capital, dirigiam-se a Pskov os deputados Gotchkov e Cholguine. Era um novo motivo de diferir a decisão. O czar ordenou que lhe devolvessem o telegrama. Ele temia evidentemente fazer um mau negócio e esperava ainda notícias consoladoras, ou, mais exactamente, esperava um milagre. Os deputados tendo chegado, Nicolau recebeu-os à meia-noite, entre o 2 e 3 de Março. O milagre não se deu e era impossível de se esquivar. O czar declarou inopinadamente que não podia separar-se do seu filho (que vãs esperanças fermentavam então na sua cabeça ?) e assinou o manifesto de abdicação em favor do seu irmão. Assinou ao mesmo tempo oukases ao Senado, nomeando o príncipe Lvov presidente do conselho de ministros, e Nicolau Nicolaievitch generalíssimo. As suspeitas familiares da czarina justificaram-se assim: o execrado “Nicolacha” voltava ao poder com os conspiradores. Ao que parece, Gotchkov considerava seriamente que a revolução resignava-se a ter um muito augusto chefe de guerra. Nicolau Nicolaievitch, ele também, tomou esta nomeação como algo de sólido. Procurou mesmo, durante alguns dias, dar ordens e lançar apelos ao cumprimento do dever patriótico. Todavia, a revolução procedeu sem dor à sua expulsão.

Para manter a aparência de um árbitro livre, o manifesto de abdicação foi datado das 15 horas, sob pretexto que esta decisão do czar tinha sido primitivamente tomada a essa hora. Mas, com efeito, a “solução” adoptada na jornada, transmitindo o trono ao filho e não ao irmão, tinha sido retirada com a esperança que os acontecimentos lhe fossem favoráveis. Ninguém, portanto, não constatara abertamente o falso. O czar tentava uma última vez salvar a cara diante dos odiosos deputados, os quais, por outro lado, admiraram a falsificação como um acto histórico, isto é, uma impostura diante do povo. A monarquia deixava a cena guardando o seu estilo particular. Mas os seus herdeiros continuavam tão fiéis a eles próprios. É provável que eles considerem mesmo a sua fraqueza como a magnanimidade do vencedor em relação ao vencido.

Abandonando um pouco o estilo impessoal, no diário íntimo Nicolau nota isto, no 2 de Março:

“Esta manhã Rossky veio e leu-me o texto de uma longa conversa que ele teve pelo telefone com Rodzianko. A ouvi-lo, a situação em Petrogrado é tal que um governo composto de membros da Duma do Império será impotente em fazer o que quer que seja, porque ele é combatido pelo partido social democrata representado por um comité operário. A minha abdicação é necessária. Rossky transmitiu o conteúdo desta conversa ao G. Q. G. de Aleixeiev e a todos os comandantes do exército. Ao meio-dia e meia, a as respostas foram recebidas. Para a salvação da Rússia e a manutenção da tropa na frente, decidi dar esse passo. Consenti e um projecto de manifesto foi enviado ao G. Q. G..À noite chegaram de Petrogrado Gotchkov e Cholguine com os quais conversei e a quem remeti o manifesto modificado e assinado. À uma hora da manhã parti para Pskov, com o coração pesado ; à volta de mim tudo é traição, cobardia e engano.”

A amargura de Nicolau II não era, é precio reconhecer, desprovida de motivos. Recentemente ainda, no 28 de Fevereiro, o general Alexeiev telegrafava a todos os comandantes em chefe sobre a frente:

“Nós temos todos a obrigação sagrada, diante do soberano e da pátria, de manter nas tropas da frente a fidelidade ao dever e ao juramento prestado.”

Ora, dois dias após, Alexeiev convidava os mesmos chefes a faltar ao seu “dever”, a violar seus “juramentos”. No alto comando, não se encontrou ninguém que interviesse a favor do seu czar. Todos se apressavam em tomar lugar no barco da revolução, contando aí encontrar lugares confortáveis. Generais, almirantes desfaziam-se das insígnias czaristas e ostentavam fitas vermelhas. Seguidamente, assinalou-se o caso único de um justo: um chefe de corpo de exército morreu de uma embolia no momento de prestar novo juramento. Mas não foi demonstrado que a ruptura cardíaca tivesse lugar no seguimento da ofensa feita ao seu sentimento monárquico e não por qualquer outra razão. Os dignitários civis, pela sua própria situação, não eram tidos em dar provas de coragem como os militares. Cada um se desenvencilhava como podia.

Decididamente, o relógio da monarquia não estava coordenado com o da revolução. A 3 de Março, na madrugada, Rossky foi novamente chamado da capital, pelo telefone. Rodzianko e o príncipe Lvov exigiam que se retirasse o manifesto que vinha ainda demasiado tarde. A chegada de Alexis, diziam evasivamente os novos mestres do poder, poderia ser aceite por quem? - mas a entronização de Miguel é absolutamente inaceitável. Rossky, não sem ser cáustico, lamentou saber que os deputados da Duma chegados na véspera não estavam suficientemente informados sobre o objectivo da sua viagem. Mas os deputados encontraram também a sua justificação:

“De uma forma inesperada para toda a gente eclodiu um motinaria de soldados tal que nunca vi coisa igual”,

explicou o gentil-homem a Rossky, como se ele não tivesse feito outra coisa, toda a sua vida, senão observar motinarias de soldados.

“Proclamar Miguel emperador, seria deitar óleo no fogo e então começaria a implacável exterminação de tudo o que pode ser exterminado.”

Eis que voltaram, sacudidos, curvados, torcidos!

O corpo de generais encaixa ainda sem nada dizer esta nova “pretensão infâme” da revolução. Somente, Alexeiev alivia um pouco a sua consciência telegrafando ao chefes do exército:

“O presidente da Duma sofre a pressão dos partidos de esquerda e dos deputados operários; nas comunicações de Rodzianko, não há franqueza, nem sinceridade.”

Somente, a sinceridade faltava aos generais nessas horas.

Mas o czar mudou de opinião mais uma vez. Chegado de Pskov a Mohilev, ele remeteu ao seu antigo chefe do estado-maior Aleixeiev uma folha de papel a transmitir a Petrogrado: declarava consentir deixar o trono ao seu filho. Evidentemente, esta combinação lhe parecia finalmente mais sedutora. Aleixeiev, segundo a narração de Denikine, leva o telegrama e... não o envia. Ele considerava que já chegavam os dois manifestos precedentes dirigidos ao exército e ao país. A incoerência provinha do facto que não somente o czar e os seus conselheiros, mas também os liberais da Duma pensavam mais lentamente que a revolução.

Antes de abandonar definitivamente Mohilev, no 8 de Março, o czar, que, formalmente, se encontrava já preso, redigiu um apelo às tropas que terminava assim:

“Quem quer que seja que pense neste momento na paz, alguém que a deseje é um cobarde, um traidor à pátria.”

Era uma tentativa feita, instigada por alguém, para desarmar os liberais que o acusavam de sentimentos germanófilos. Esta tentativa falhou: ninguém se atreveu a publicar o apelo.

Assim se terminava um reino que, de uma ponta à outra, tinha sido um encadeamento de descontentamentos, de infelicidades, de calamidades e de actos criminosos, desde da catástrofe no terreno da Khodynka, no dia do coroamento, passando pelo fuzilamento dirigido contra os grevistas e os camponeses revoltados, pela guerra russo-japonesa, pelo impiedoso esmagamento da Revolução de 1905, pelas numerosas execuções, expedições punitivas, progroms nacionais, para acabar pela louca e infâme participação da Rússia na louca e infâme guerra mundial.

Quando chegou a Tsarskoie-Selo, onde ele foi internado com a sua família no palácio, o czar teria dito em voz baixa, se acreditarmos em Vyroubova:

“Não há justiça entre os homens.”

Ora, essas próprias palavras testemunhavam de forma irrefutável a existência de uma justiça da história que, por ser tardia, não é menos real.

A semelhança do último casal dos Romanov e do casal real francês na época da grande Revolução saltou aos olhos. Ela já foi notada, na literatura, mas brevemente e sem deduções. Ora ela não é absolutamente fortuita como parece à primeira vista, e ela dá preciosa matéria para conclusões.

A vinte e cinco lustros de distância entre eles, o czar e o rei se apresentam,em certos momentos, como dois actores que preencheram um só e mesmo papel. Uma traição passiva, expectante mas vindicativa, caracterizava esses dois homens, com a diferença que, do lado de Luís, a falsidade se dissimulava sob a duvidosa bonomia, enquanto com Nicolau ela parecia afável. Um e outro deram a impressão de homens a quem o ofício estava a cargo e que, todavia, não consentiam ceder a menor parcela dos seus direitos, que eles não sabiam dar uso. Os seus diários íntimos, análogos mesmo no estilo, ou por falta de estilo, mostravam igualmente uma sufocante vacuidade espiritual.

A austríaca e a alemã, por outro lado, constituíam uma evidente simetria. As duas soberanas são maiores que os seus soberanos não somente pela estatura, mas pela moral. Maria Antonieta era menos piedosa que Alexandra Fedorovna, e distingua-se dela pela sua paixão dos divertimentos. Mas um e outra desprezavam igualmente o povo, não toleravam a ideia de concessões, não acreditavam na virilidade dos respectivos maridos, olhavam-nos altivamente, Maria Antonieta com uma nuança de desprezo, Alexandra com piedade.

Quando os autores de Memórias que, em seu tempo, tiveram intimidade com a Corte de Petersburgo tentam mostrar-nos que Nicolau II se ele tivesse sido um simples particular, tivesse deixado boas lembranças, eles reproduziriam simplesmente clichés de julgamentos bem intencionados sobre Luís XVI, não nos enriquecendo em relação à história nem ao conhecimento da natureza humana.

Já se leu que o príncipe Lvov, no momento mais alto dos trágicos acontecimentos da primeira Revolução, indignou-se em encontrar não um czar desanimado, mas “um tipo alegre, desenvolto, em camisa de cor framboesa”. Sem o saber, o príncipe reproduzia simplesmente um relatório do governador Morris, enviado a Washington, em 1790, sobre Luís XVI:

“Que esperar de um homem que, na situação, come bem, bebe bem, dorme bem e sabe rir ; que esperar desse bravo rapaz que é mais alegre que ninguém?”

Quando Alexandra Fedorovna, três meses antes da queda da monarquia, vaticina (“Tudo se arranja pelo melhor, os sonhos do nosso Amigo, são de tal forma significativos”) ela identifica-se simplesmente a Maria Antonieta que escrevia, um mês antes da queda do poder real:

“Sinto-me cheia de entusiasmo e qualquer coisa me diz que, brevemente, nós seremos felizes e fora de perigo.”

Afogando-se, elas têm todas as duas sonhos iridescentes.

Certos traços de parecença são, naturalmente, devidos ao acaso e não têm, na história, senão um interesse anedótico. Infinitamente mais importantes são os traços implantados ou directamente impostos pelas todo-poderosas circunstâncias, que deitam uma luz viva sobre as relações reciprocas do indivíduo e dos factores objectivos da história.

“Ele não sabia querer e eis o traço principal do seu carácter”, declara, sobre Luís, um historiador reaccionário francês.

Parecia que foi escrito sobre Nicolau. Um e outro eram incapazes de querer. Mas todos os dois eram capazes de não querer. Na verdade, que teriam bem podido “querer” os últimos representantes de uma causa histórica irreversivelmente perdida?

“Habitualmente, ele escutava, sorria; raramente, tomava uma decisão. Começava por dizer: não”.

Aqui de quem se trata? Ainda de Capet. Mas, nesse caso, a maneira de agir de Nicolau foi constantemente um plagiado. Todos dois vão pelo abismo, “a coroa cai-lhe nos olhos”. Mas é mais fácil caminhar de olhos abertos para o abismo de forma inevitável? Que mudança teria havido, na verdade, se eles tivessem a coroa sobre a nuca?

Poder-se-ia recomendar aos profissionais da psicologia em estabelecer uma crestomatia das simétricas apreciações de Nicolau e Luís, de Alexandra e de Maria Antonieta, assim como dos seus parentes sobre eles. Não são os materiais que faltam e o resultado seria um testemunho histórico dos mais edificantes a favor da psicologia materialista: excitações da mesma natureza (bem entendido, não idênticas, longe disso), nas condições similares, apelam aos mesmos reflexos. Mais o excitante é poderoso, mais rapidamente ele toma vantagem sobre as particularidades individuais. Às cócegas as pessoas reagem diferentemente; à prova do ferro em brasa todos reagem da mesma maneira. Tal como o martelo-pilão transforma indiferentemente em lamela uma bola ou um cubo, assim, sob as fortes pancadas e implacáveis dos acontecimentos, os que resistem são esmagados, perdendo as arestas da sua “individualidade”.

Luís e Nicolau eram os últimos rebentos de dinastias cuja vida foi tempestuosa. Num e noutro, um certo equilíbrio, calma, “alegria” nos minutos difíceis exprimiam a indigencia das suas forças íntimas de pessoas bem educadas, a fraqueza das suas distinções nervosas, a miséria dos seus recursos espirituais. Moralmente castrados, todos os dois, absolutamente desprovidos de imaginação e de faculdades criadoras, não tiveram bastante inteligência senão mesmo antes de sentir a sua trivialidade e eles alimentavam uma hostilidade ciumenta em relação a tudo que é talentoso e considerável. Todos os dois tiveram que governar em presença de profundas crises interiores e do despertar revolucionário das populações. Todos os dois defenderam-se contra a invasão de ideias novas e a ascensão de forças inimigas. A resolução, a hipocrisia, a falsidade foram neles dois a expressão não tanto Duma fraqueza pessoal mas da completa impossibilidade em manterem-se em posições herdadas.

Mas, do lado das esposas, como se passava? Alexandra, ainda mais que Maria Antonieta, tinha sido levada à cimeira dos sonhos de uma princesa, dado que ela casou, simples provinciana do ducado de Hesse, o monarca absoluto de um poderoso país. Todas as duas tomaram consciência máxima das suas altas missões: Maria Antonieta num sentido mais frívola; Alexandra num espírito de hipocrisia protestante transposta em esloveno ortodoxo. As desgraças do reino e o descontentamento crescente do povo destruíam sem piedade o mudo da fantasia que tinham construido mioleiras presunçosas que não eram, finalmente, senão mioleiras de mulheres pretensiosas e estúpidas. Daí uma execração crescente, um ódio devorador em relação a um povo estrangeiro que não se inclinava diante delas; daí a aversão pelos ministros que tinham em conta de certa forma o mundo inimigo, isto é do país; daí o isolamento dessas mulheres na sua própria Corte, e seus perpétuas queixas contra o marido que não tinha justificado as esperanças suscitadas pelo noivo.

Os historiadores e os biógrafos com tendências psicológicas procuram frequentemente e descobrem o elemento puramente individual, ocasional, onde se reflectem, através das individualidades, as grandes forças históricas. É uma ilusão de óptica análoga à das cortesãs que consideravam o último czar da Rússia como um “falhado” de nascimento. Ele próprio acreditava ter nascido sob uma má estrela. Na realidade, os seus infortúnios provinham de uma contradição entre os velhos objectivos que lhe tinham deixado os seus antepassados e as novas condições históricas nas quais ele encontrara lugar. Quando os Antigos diziam que Jupiter, quando quer tomar alguém, tira-lhe primeiro a razão, eles resumiam, sob uma forma supersticiosa, profundas observações de história. Quando Goethe fala da razão que se torna um non-sens , Vernunft wird Unsinn, nós rencontramos a mesma ideia de um Jupiter impessoal da dialéctica histórica que priva da razão as instituições prescritas e condena os seus defensores a toda a má sorte. Os textos dos papeis de Romanov e de Capet eram estabelecidos com antecedência pelo desenvolvimento do drama histórico. Só restava aos actores matizar a interpretação. Os dissabores de Nicolau como os de Luís provinham não do seu horóscopo pessoal, mas do horóscopo histórico de uma monarquia de casta burocrática. Todos os dois eram, antes de tudo, rebentos do absolutismo. A sua nulidade moral, resultado da sua situação de epígonos de dinastias, dava a esta posição um carácter particularmente sinistro.

Pode-se objectar que se Alexandre III tinha bebido menos, ele teria tido maior longevidade ; a revolução encontrou um czar de um outro temperamento e sem associação simétrica com Luís XVI não teria sido possível. Esta objecção não atingiu portanto em nada o que foi citado acima. Nós não temos de forma nenhuma a intenção de negar a importância do elemento individual no mecanismo do processo histórico, nem o significado do fortuito no individual. Uma personalidade histórica deve ser somente considerada, com todas as suas particularidades, não como uma simples soma de aspectos psicológicos, mas como uma realidade viva, saída das condições sociais bem definidas e reagindo a estas últimas. Assim como uma rosa não deixa de dar perfume quando um naturalista indicou quais são os ingredientes que ela obtém do solo e da atmosfera, a nudez das raízes sociais de uma individualidade não lhe retira nem o seu perfume nem o seu fedor.

Se considerar-mos, como é dito mais acima, que Alexandre III pôde atingir uma idade avançada, o mesmo problema esclarece-o por outro lado. É permitido conjecturar que em 1904 Alexandre III não se comprometeu numa guerra com o Japão. Por esse facto, a primeira Revolução tinha sido diferida. Até quando? É possível que a “Revolução de 1905”, isto é um primeiro teste de forças, primeira racha no sistema do absolutismo, foi então o prelúdio da segunda revolução, republicana, e a terceira, proletária. A este respeito, só se pode suposições mais ou menos interessantes. É incontestável, de qualquer forma, que a revolução não foi o resultado do carácter de Nicolau III e que Alexandre III não estava mas habilitado a resolver os problemas. Basta lembrar que nunca, em parte alguma, a transição do regime feudal ao regime burguês não se efectuou sem violentos choques. Ontem ainda, nós observámos na China; hoje, constatamos na Índia. O que se pode dizer é que tal ou tal política da monarquia, tal ou tal monarca podiam aproximar ou afastar a revolução, e dar-lhe, superficialmente, uma especie de carimbo.

Tal foi a obstinação enraivecida e impotente do czarismo ao tentar manter-se nos seus últimos meses, suas últimas semanas, seus últimos dias, quando ele tinha irremediavelmente perdido a partida ! Se houvesse em Nicolau a insuficiência da vontade, a compensação encontrou-se no lado da czarina. Rasputine era o instrumento de uma clique que lutava com determinação pela sua própria salvação. Mesmo nesse quadro estreito, a personalidade do czar é absorvida pelo grupo no qual se concentra o passado e se manifestam as últimas convulsões. A “política” dos dirigentes mediocres de Tsarskoi-Selo, colocados face à revolução, foram reflexos de uma fera perseguida e enfraquecida. Se, na estepe, um automóvel persegue velozmente um lobo, o animal acabará por se cansar e deitar-se-a esgotado. Mas tente-se meter-lhe uma coleira; ele procurará rasgar-vos em pedaços, ou pelo menos ferir-vos. Aliás, que lhe poderia ele fazer, nessas condições ?

Os liberais consideravam que havia qualquer coisa a fazer. Em vez de procurar no momento oportuno um acordo com a burguesia censitária e de evitar assim a revolução (tal era a acusação do liberalismo contra o último czar) Nicolau recusava obstinadamente qualquer concessão, e mesmo, nos últimos dias, sob a faca fatal, quando cada minuto era precioso, hesitava, negociava com o destino, deixava escapar as últimas possibilidades. Tudo isso parece convincente. Mas como é lamentável que o liberalismo, que conhecia tão infalíveis remédios para salvar a monarquia, não tinha encontrado meios de se salvar ele próprio !

Seria absurdo afirmar que o czarismo nunca fez, em qualquer circunstância, concessões. Ele cedeu todas as vezes que se viu obrigado para a sua salvaguarda. Após a desastrosa guerra de Crimeia, Alexandre II procedeu a uma meia-emancipação dos camponeses e a um certo número de reformas liberais nos domínios dos zemstvos, dos tribunais, da imprensa, do ensino, etc. O próprio czar exprimiu então o pensamento sobre as reformas: emancipar os camponeses de cima para que os de baixo não se emancipem. Sob a pressão da primeira revolução, Nicolau cedeu uma metade de constituição. Stolypine tomou a comuna rural para alargar a arena das forças capitalistas. Todas essas reformas não tinham, todavia, sentido senão na medida onde as concessões parciais salvavam o principal, as bases de uma sociedade de castas e da própria monarquia. Quando as consequências das reformas começaram a desferrar para além desses limites, a monarquia recuava inevitavelmente. Alexandre II, na segunda metade do seu reinado, escamoteava as reformas da primeira metade. Alexandre III levou mais longe as contra-reformas. Nicolau II bateu em retirada em Outubro de 1905, diante da revolução, seguidamente pronunciou a dissolução das Dumas que ele próprio tinha criado, e, assim que a revolução enfraqueceu, fez um golpe de Estado. Em três quartos de século, se contarmos a partir das reformas de Alexandre II, desenrolou-se, seja clandestinamente, seja abertamente, a luta de forças históricas superiores às qualidades individuais dos czares, que se termina pela queda da monarquia. É somente nos quadros históricos desse processo que se pode situar os czars, seus caracteres, suas “biografias”.

Mesmo o mais autoritário dos déspotas parece muito pouco à individualidade “livre” que deixaria a sua marca, à sua vontade, sobre os acontecimentos. É sempre o agente coroado das classes privilegiadas que forma a sociedade à sua imagem. Enquanto essas classes não esgotarem a sua missão, a monarquia continua forte e segura dela própria. Ela possui ainda um aparelho seguro de poder, uma escolha ilimitada de executantes, porque os homens mais capazes ainda não ganharam o campo do adversário. Nesse caso, o monarca, pessoalmente ou por intermédio de um favorito, pode tornar-se o realizador de uma grande tarefa histórica, nesse sentido progressista. Passa-se de outra forma quando o sol da velha sociedade cai no poente; as classes privilegiadas, organizadoras da vida nacional, se transformam em excrescências parasitárias: despojadas das suas funções directoras, elas perdem consciência da sua missão e a certeza nas suas próprias forças; do descontentamento que elas têm delas próprias, elas fazem o descontentamento da monarquia; a dinastia isola-se; o círculo dos que lhe continuam fiéis até ao fim diminui; o seu nível baixa; porém, os perigos crescem; novas forças pressionam; a monarquia perde toda a capacidade de iniciativa criadora; ela continua na defensiva, debate-se, recua, os seus gestes tomam o automatismo dos mais simples reflexos. A esta sorte não escapou o despotismo meio asiático dos Romanov.

Se se representar o czarismo na sua agonia, como, digamos, um corte vertical, Nicolau seria o eixo de uma clique cujas bases repousavam sobre um passado irremediavelmente condenado. Em corte horizontal, na história da monarquia, Nicolau era o último elo da cadeia dinástica. Os seus mais recentes predecessores, que tinham pertencido à colectividade da família, de casta, de burocracia, somente mais extensiva, tentaram aplicar diversas medidas, diversos procedimentos de governo, para proteger o antigo regime social contra os destinos que o ameaçavam e, contudo, legaram a Nicolau II um império caótico, que trazia já a revolução nas suas entranhas. Se Nicolau tinha tido escolha, teria sido entre diferentes caminhos de perdição.

Os liberais sonhavam com uma monarquia de tipo britânico. Mas o parlamentarismo à beira Tamisa fosse ele o fruto de uma pacífica evolução ou o resultado da “livre” previdência do monarca? Não, o parlamentarismo estabeleceu-se aí como resultado de uma luta que tinha durado séculos e na qual um rei tinha deixado a sua cabeça numa encruzilhada.

O paralelo histórico e a psicologia esboçada acima entre os Romanov e os Capet pode aliás muito bem ser relacionada com o casal real que se encontrava à cabeça da Grande-Bretanha na época da primeira revolução. Carlos I representava, no fundo, a mesma combinação de aspectos essenciais que os memorialistas e os historiadores atribuem com mais ou menos razão a Luís XVI e a Nicolau II.

“Carlos continuou passivo – escreveu Montégut – cedia quando lhe era impossível resistir, ainda que contra a sua vontade, mas recorrendo à malícia, e não soube conciliar-se nem com popularidade, nem com a confiança.”

“Ele não era obtuso – disse de Carlos Stuart outro historiador – mas faltava-lhe firmeza...O papel de uma malvada fatalidade jogou, em relação a ele, pela sua mulher, Henriette, uma francesa, irmã de Luís XIII, que era ainda mais convencida que Carlos das ideias absolutistas...”

Não insistamos sobre os detalhes desse terceiro casal real – o primeiro cronológicamente – que foi esmagado por uma revolução nacional. Notemos somente que na Inglaterra também a aversão era personalizada pela rainha, francesa e papista, que era acusada de intrigas com Roma, de relações clandestinas com os irlandeses revoltados e de tramas junto da Corte francesa.

Pelo menos a Inglaterra tinha séculos de descanso à sua disposição. Ela foi pioneira da civilização burguesa. Não sofreu opressão de outras nações: pelo contrário, ela impunha cada vez mais a sua dominação no exterior. Ela explorava o mundo inteiro. Isso atenuava os antagonismos interiores, condensava o espírito conservador, contribuía à multiplicação e à estabilidade das camadas de exploradores parasitas sob formas de landlords, da monarquia, da Câmara Alta e da Igreja do Estado. Graças aos privilégios históricos excepcionais da Inglaterra burguesa no seu desenvolvimento, o espírito conservador passou com flexibilidade das instituições aos costumes. É o que suscita ainda hoje a admiração dos filisteus do continente, gente tal que o professor Miliokov ou o austro-marxista Otto Bauer. Mas, precisamente no presente, quando a Inglaterra, incomodada no mundo inteiro, dissipa os últimos recursos dos seus privilégios de outrora, o seu espírito conservador perde a sua elasticidade e mesmo, na pessoa dos trabalhistas torna-se uma reacção colérica. Em frente da revolução da Índia, o “socialista” MacDonald não encontra outros métodos senãos os que se servia Nicolau II contra a revolução russa. É preciso ser cego para não ver que a Grande-Bretanha encaminha-se para formidáveis tremores revolucionários nos quais desaparecerão definitivamente os restos do seu espírito conservador, os restos da sua potência mondial e da sua actual máquina governamental. MacDonald prepara esses tremores de forma especializada tal como Nicolau II e não é menos cego que este último. Temos aí, constatemos, uma bastante boa ilustração do papel de uma personalidade “livre” na história !

Mas como estabeleceu a Rússia, de desenvolvimento atrasado, a última de todas as nações europeias, sobre bases económicas medíocres, teria podido elaborar um “espírito conservador flexível” em formas sociais – sem dúvida especialmente para as necessidades dos professores liberais e da sua sombra de esquerda, os socialistas reformistas ? A Rússia ficou atrasada durante muito tempo, e, quando o imperialismo mundial a prendeu nas suas mordentes, ela viu-se forçada a viver a sua história política com abreviações consideráveis. Se Nicolau tivesse feito boa recepção ao liberalismo e substituido Stürmer por Miliokov, a marcha dos acontecimentos teria sido pouco diferente, mas ela teria sida no fundo a mesma. Porque é o caminho que seguiu Luís XVI, na segunda etapa da Revolução, ao chamar a Gironde ao poder, o que não salvou da guilhotina nem ele próprio, nem os Girondins. Os antagonismos sociais acumulados deviam explodir, e, após a explosão, limpar o lugar. Diante da pressão das massas que manifestavam em fim, abertamente, as suas queixas, calamidades, vexações, paixões, esperanças, ilusões e reivindicações, as combinações superficiais da monarquia com o liberalismo só tinham um interesse episódico e não podiam de forma nenhuma influenciar senão a ordem das sucessões dos acontecimentos, talvez também o número dos actos desempenhados; mas de forma nenhuma o desenvolvimento geral do drama, e ainda menos a terrível conclusão.


Inclusão 11/05/2010
Última alteração 19/01/2013